Por Gabriella Souza

João Alves de Torres Filho ou popularmente ‘Joãozinho da Gomeia’ é reconhecido como o ‘rei do Candomblé’ e sua marcante trajetória de vida será representada pela Acadêmicos do Grande Rio em 2020. O enredo ‘Tata Londirá: o Canto do Caboclo no Quilombo de Caxias’ é assinado pelos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora, estreantes no Grupo Especial. Personalidade viva na memória dos caxienses, o babalorixá Joãozinho nasceu em 1914 na Bahia, lá iniciou a sua longa e predestinada vida no Candomblé, chegando ao Rio de Janeiro através dos ‘terreiros migrantes’ que percorriam cidades do país, onde se fixou e traçou a sua trajetória de vida, de personalidade, deixando seu legado vivo através de seus inúmeros ‘filhos de santo’ do famoso Terreiro da Gomeia que recebia famosos, políticos, personalidades da época e pessoas de todas as classes sociais.

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A relação desta figura com o carnaval também é singular, visto sua energia como agitador social em diversos projetos nas artes e eventos, assim como sempre participava dos desfiles da escolas de samba e nos bailes de carnaval, tornando-se mesmo uma celebridade dos anos 50 e 60. Leonardo Bora conta que a contemporaneidade de Joãozinho foi o que mais os surpreendeu o tempo todo, mesmo que tenha deixado a vida terrena a quase cinquenta anos, falece em 1971, ele expressa uma série de questões que são comuns ainda hoje e estão na ordem do dia, estampando qualquer jornal impresso e site de notícias da internet.

“Falar de Joãozinho da Gomeia em 2020 é falar da luta contra a intolerância religiosa, de racismo epistêmico, de racismo religioso e o quanto eles precisam ser combatidos nas menores coisas, é falar de homofobia porque ele foi uma figura pioneira que se vestia de vedete nos bailes carnavalescos, o que chocava, inclusive, o povo de axé, visto que ele quase foi expulso da Federação Espírita Brasileira por conta disso. É falar de temas urgentes, o que torna o enredo extremamente atual. E nos proporciona também a possibilidade de pensar o Brasil e de continuar pensando as ideia de brasilidade, que é algo que a gente vem desenvolvendo desde os enredos da Intendente Magalhães, quando éramos carnavalescos de escolas dos outros grupos. Joãozinho é uma figura que expressa esses múltiplos brasis, ele nasce no interior da Bahia, se fixa em Salvador, depois migra por inúmeros ditos ‘terreiros migrantes’ para o Rio de Janeiro, enquanto era a capital federal, mais especificamente na Baixada Fluminense, no município de Duque de Caxias ainda recém emancipado, e lá ele replanta o seu axé, fundando a nova Gomeia” declarou.

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Bora fala ainda do legado deixado por Joãzinho tanto para a comunidade de Caxias, a cidade do Rio como para toda a cultura popular brasileira.

“No trânsito permanente desse personagem, que tem hoje inúmeros filhos de santo espalhados pelo país inteiro e até fora do Brasil, a gente consegue pensar diversas facetas da cena política, artística, cultural, por exemplo, ele foi padrinho do teatro folclórico brasileiro. A Gomeia de Caxias recebia comitivas dos maracatus do Recife, dos bumbás do Maranhão, albergava as fadas de copeira e até sediava uma importantíssima festa junina. Falar dele é falar de Mercedes Baptista, do teatro experimental do negro, de Jorge Amado, é um enredo em sentido extremamente rico e inesgotável e tudo isso foi dando para nós um volume de informação, de modo que a nossa grande dificuldade foi fazer uma triagem, uma curadoria mesmo em pensar quais os elementos eram os mais importantes, até porque é um personagem cercado de narrativas míticas, de matriz oral e muitas contraditórias. Ficamos, claro, com a arte, a poesia que mais do que estabelecer uma única verdade, está interessada com o mito, a criação e a invenção, nessas múltiplas versões para uma mesma história”, explicou.

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Gabriel Haddad conta como surgiu a concepção do enredo, assim como se deu o convite para ambos assumirem o enredo de 2020 da verde e vermelho.

“Quando nós fomos chamados para a Grande Rio e convidados pelos presidentes e a diretoria para realizar o carnaval da escola eles já tinham observado nosso trabalho na Cubango e foi solicitado que fosse realizado um enredo ligado a comunidade de Caxias, o que já era algo característico dos trabalhos que nós já vínhamos produzindo anteriormente, de buscar uma ligação forte com a comunidade da escola. Acho que até mesmo pela identidade que a Grande Rio precisava nesse momento, de conseguir fazer com que a comunidade se religasse com a escola de samba. E Joãozinho da Gomeia é uma figura que escolhe Caxias para morar e é quase que um mito para os caxienses. E essa já era uma ideia que estava rondando alguns diretores da escola para ser enredo, o que nos incentivou ainda mais a pesquisar a história dele e decidir levar para a Avenida”, comentou.

Dificuldades na disponibilização de verbas

Leonardo Bora conta quais as alternativas a Grande Rio tem utilizado para driblar as dificuldades dos incentivos financeiros para a feitura deste carnaval de 2020, destacando a experimentação como a principal saída.

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“Acredito que a principal solução é a experimentação, algo que a gente vem desenvolvendo desde os carnavais da Intendente. Nós começamos participando de um coletivo de carnavalescos na Mocidade Unida de Santa Marta no último grupo, desenvolvendo o carnaval de 2013 daquela escola, na época éramos sete autores do projeto e a regra para essas escolas que são historicamente abandonadas, e que não possuem verba alguma é experimentar, é a mão na massa, é ‘dar nó em pingo d’água’. Essa bagagem, experiência do modo de fazer, é mais do que conceber, mas entender cada etapa do processo, mediar as relações entre as diversas etapas é uma característica muito forte do nosso trabalho, de quem não tem medo de experimentar”.

Gabriel Haddad afirma que a dupla possui plena experiência com esse cenário de escassez de recursos, destaca ainda que o planejamento foi o principal foco deles nesse processo.

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“A forma em que temos trabalhado aqui é uma forma muito parecida de quando nós trabalhamos na Cubango, nós não somos carnavalescos de ficarmos sentados na sala, esperando o carnaval acontecer, a gente circula muito pelo barracão e essa experiência que adquirimos no Grupo de Acesso acabou fazendo com que pudéssemos entender mais como funciona o processo de fazer um carnaval sem grana. Claro que aqui é outra estrutura, é Grupo Especial, aqui já temos uma verba boa da televisão, da venda dos ingressos que também entra, mas a nossa busca é fazer o carnaval com a subvenção mesmo já pensada, temos um limite de gastos e planejamos tudo pensando nisso e por isso também que a gente buscou preservar as estruturas de alegorias, porque o gasto para construir uma alegoria do zero é muito alto, buscar materiais alternativos também foi a saída, aqueles que não estão no circuito ‘oficial’ do carnaval, buscando baratear a produção de fato”, contou.

Conciliar os gostos diferentes para um mesmo enredo

Leonardo Bora destaca que no trabalho deles jamais haverá espaço para o medo de provocar, inovar e experimentar e que na verdade são marcas das carreiras de ambos.

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“Há quem diga que a arte é provocação. A gente também gosta de provocar, de propor e dialogar com diferentes artistas e linguagens, dentro de uma mesma obra. A gente não tem medo desses diálogos, que às vezes parecem conflitantes para misturar essas linguagens dentro de uma mesma cenografia, por exemplo, de um mesmo carro alegórico, ou de uma mesma fantasia, bom, são experimentos. Às vezes dão certo, outras não, mas espero que sempre deem, mas é um movimento que parte desse nosso incômodo, dessa nossa postura de não se curvar a receitas prontas. Mais do que apresentar uma obra que seja simplesmente elogiada por todos porque é padronizada, presa a determinados padrões preestabelecidos na história do carnaval, a gente tenta ir além e propor outras discussões, soluções estéticas, formas de se pensar uma narrativa de enredo, e claro, isso demanda tempo, às vezes gera infinitas discussões e justificativas, mas é algo que a gente vem conseguindo realizar nesse nosso ainda curto histórico de trabalhos como carnavalescos”.

Ressalta ainda que essa postura não está sendo diferente na Grande Rio, que irá pisar na Avenida como uma nova estética.

“Aqui na Grande Rio não está sendo diferente, a gente está experimentando muito e todas as nossas alegorias dialogam e levam a nossa assinatura, mas propõe diálogos e apresentam técnicas de confecção bastante diferentes. Então é difícil mesmo mediar todas essas frentes de trabalho, mas é isso que dá um resultado bastante complexo. A gente não tem medo ‘daquela pedrinha que se mistura no feijão e pode quebrar um dente’ como dizia o poeta João Cabral Melo Neto, porque às vezes é essa pedrinha que desperta e que gera um encantamento que foge do comum. Então seguramente o nosso carnaval vai ter algumas soluções visuais que podem causar em um primeiro momento estranhamento, mas que são outras formas de se pensar os festejos carnavalescos, de se traduzir isso visualmente. E a gente espera que todos os diferentes públicos se deixem envolver por essa narrativa e compreendam esses diferentes momentos de um mesmo desfile”.

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Gabriel Haddad completa pontuando que esta postura deles é marca de seus trabalhos e que essa evolução vem desde vários enredos realizados por todas as escolas em que passaram.

“Essa é a principal característica do nosso trabalho, de fazer um enredo que possa ser reconhecido na Avenida. Fizemos dois enredos na Acadêmicos do Cubango, no primeiro ano sobre o artista contemporâneo Arthur Bispo do Rosário e ali a gente questionava o como fazer com que as pessoas entendam a história dele e foi bem complicado. Buscamos primeiro não apresentar a obra dele de fato na Avenida, era então uma interpretação nossa, uma história que a gente estava contando sobre ele. E creio que isso facilita um pouco, a forma que nós buscamos criar as fantasias e alegorias, uma maneira que tanto o componente da escola quanto quem esteja vendo se envolva com aquele trabalho artístico, mas também se envolva emocionalmente, e essa é a forma em que conseguimos atingir todos os públicos presentes na Sapucaí. Temos que conversar com os jurados, com o público presente, com a comunidade que está desfilando, com a diretoria, onde a avaliação é constante, todo dia tem alguém avaliando o nosso trabalho, mas a avaliação final é só na Avenida, e é aquela magia do carnaval que envolve o desfile. Então esse acontecimento, essa emoção para o desfile, essa narrativa que a gente preparou está traduzida em fantasias e alegorias, que são o ponto principal que gera essa conexão”, afirmou.

Entenda o desfile:

A Grande Rio pisará na Avenida com cinco alegorias e três tripé. O que se viu foi um barracão bem ligado com a ancestralidade e a cultura do Candomblé. É uma nova estética para a escola, mas as alegorias, fantasias e adereços se interligam e traduzem a cara do enredo, raiz, sem o luxo mas com muita qualidade e cultura, de boas pinturas, detalhes e referências, o que é marca do trabalho dos carnavalescos. Leonardo Bora explica, setor por setor, a concepção e realização do desfile da escola.

Setor 1: “O nosso desfile começa com as raízes ancestrais de João da Gomeia, que nasce no interior da Bahia na cidade Inhambupe e que tinha visões que ele não compreendia, ao longo de toda a sua primeira infância, visões essas que se ‘materializavam’ durante a noite quando ele deitava uma rede, naquele balanço da rede e com a luz do lampiões ele via espectros dos vultos que não compreendia, se era um homem, um bicho ou um pássaro. Isso o próprio samba canta, o ‘era homem, era bicho-flor, bicho-homem, pena de pavão’ e era um chamado espiritual do caboclo da Pedra Preta que seria o guia dele até o final da vida, um chamado para a vida no candomblé, ele que estava predestinado a ser essa grande liderança que receberia o título de ‘rei do candomblé’. Então a abertura do desfile é essa noite mágica que traz toda a carga ancestral, todos esses mistérios que rodeavam a vida de um menino no interior da Bahia”.

Setor 2: “Teremos aqui o terreiro, João que migra para Salvador e lá é feito no santo, ou seja, é iniciado no candomblé do pai Jubiabá e que dá início a essa trajetória de grande líder religioso na Gomeia de São Caetano nos arredores da cidade de Salvador”.

Setor 3: “Do terreiro de Salvador a gente parte para Caxias onde ele traz toda essa bagagem para a baixada fluminense e replanta o seu axé ali, terreiro esse que se transformava em aldeia durante as grandes festas de caboclo. O candomblé de Joãozinho era bem polêmico pois era híbrido, já que reunia o culto aos orixás e as ‘inquices’ do candomblé de Angola com o culto aos caboclos. E as festas dedicadas aos caboclos eram extremamente fartas e exuberantes, que atraíam a intelectualidade, os artistas, a cena cultural da cidade do Rio de Janeiro que ia para Duque de Caxias participar desses festejos, que são descritos com bastante riqueza de detalhes tanto pela mãe GiselLe Cossard que foi iniciada por ele, como por escritores como José Cândido de Carvalho. Então a gente vai mostrar essa grande aldeia em que a Gomeia caxiense se transformava durante as festas de caboclo”.

Setor 4: “Do terreiro que se transforma em aldeia a gente parte para a rua. E mostra João da Gomeia enquanto grande agente carnavalesco, corpo indócil que participava das múltiplas manifestações carnavalescas da cidade do Rio de Janeiro, como os bailes de travestis, os concursos de fantasias e os desfiles de escolas de samba. Das ruas para os palcos, o João enquanto grande artista que cria um grupo de ballet afro com suas filhas de santo, que se apresenta em palcos importantes como o teatro João Caetano, Copacabana Palace, Cassino da Urca e que faz turnês por todo Brasil. E também como agente múltiplo, que recebia no seu terreiro, as personalidades mais importantes da cena artística, cultural e política brasileira. E as mais variadas histórias que envolvem esse personagem”.

Setor 5: “E por fim, o quilombo. A Gomeia enquanto espaço de resistência, intenso lugar de sociabilidade que a gente espera que reexista nesses tempos de recrudescimento dos preconceitos, da intolerância religiosa. Então a gente entende que a Gomeia foi um espaço dos mais plurais, que albergava as múltiplas manifestações culturais de Caxias, da capoeira, folia de reis e festa junina. Esperamos que toda essa energia rebrote nos tempos contemporâneos e que novamente o espírito de Joãozinho da Gomeia, esse espírito profundamente livre, com a ideia do revoar da liberdade, que a gente apresenta no último setor do desfile, que isso semeie tempos tolerantes, respeitosos, plurais e que diversidade seja uma pedra angular e não algo acessório”.

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