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Série Barracões: Mangueira busca fazer justiça histórica aos apagamentos das influências bantu no cotidiano carioca

A Estação Primeira de Mangueira trouxe para o Carnaval 2025 um talento da Terra da Garoa para comandar seu carnaval. Sidnei França já exerce o ofício de carnavalesco desde 2009 em São Paulo, onde conquistou cinco campeonatos pela Mocidade Alegre e pela Águia de Ouro, e atualmente é responsável há dois carnavais pelo Vai-Vai. Foi com essa bagagem que ele foi convidado pela presidente Guanayra Firmino para assinar o carnaval da Verde e Rosa. Cria da Morada do Samba, Sidnei buscou fazer do seu trabalho no Rio uma folha em branco por conta das diferenças entre os carnavais das duas maiores cidades do país, e enquanto pensava em qual seria o melhor enredo para a Mangueira, foi apresentado por um amigo a um livro, nascido como uma tese de mestrado, que propõe uma investigação sobre a origem dos escravizados que chegaram ao Cais do Valongo, Zona Portuária do Rio, que eram em sua imensa maioria bantus. A partir deste fato, o carnavalesco encontrou a história a ser contada na Sapucaí, em forma de homenagear o legado deixado por esses povos na construção da cidade e da identidade carioca, com o enredo “À Flor da Terra – No Rio da Negritude Entre Dores e Paixões”.

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Carnavalesco Sidnei França, da Mangueira
Carnavalesco Sidnei França, da Mangueira

No início da série de barracões do Grupo Especial, o CARNAVALESCO entrevistou Sidnei França, que deu os detalhes de como foi esta busca pelo enredo na Mangueira e como ele viu a necessidade de falar sobre a contribuição dos bantus para a cultura carioca.

“Quando a Mangueira me contratou, eu falei, vou ter que pensar uma coisa muito legal. Primeiro que é uma escola potente para discursar, a narrativa da Mangueira sempre ressoa de uma forma muito forte, trata os assuntos e aquilo sobe e vira um acontecimento, tanto que poucas escolas homenageiam como a Mangueira. Tem Bethânia, Chico Buarque, Alcione. Ela tem uma força narrativa que faz com que algo que em outra escola fosse apenas um bom enredo vire algo gigantesco. Já morando aqui no Rio, frequentando o barracão, montando equipe de trabalho, e sempre pensando, eu tenho um amigo aqui do Rio que é professor de história e, nessa fase de definir enredo, ele me entregou a dissertação de mestrado do professor Júlio César Medeiros que escreveu “A Flor da Terra”. Depois, ele publicou em livro e queria investigar quem era e de onde vinham os pretos que desembarcavam no Cais do Valongo. O trabalho dele começou a criar números e estatísticas a respeito de quem eram e de onde vinham aquelas pessoas, e 80% dos pretos que chegaram no Rio escravizados através do Cais do Valongo eram bantu. Se você pensa que mais de três milhões de pretos foram desembarcados, 80% é muita gente. Foram escravizados e ocuparam a cidade do Rio de Janeiro. Estavam nas ruas trabalhando, falando, comendo, produzindo, dialogando, se divertindo também, porque a gente precisa parar com esse estigma de que o preto escravizado era só passivo e submisso. Não, ele também trapaceava, jogava, se divertia, tinham uma vivência que é o contexto da Pequena África”, dissse Sidnei ao falar do pensamento para concepção do enredo.

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O carnavalesco explicou o processo de pegar essas informações, organizar um desfile em homenagem e em reparação ao desconhecimento que se tem da influência bantu nos hábitos do Rio de Janeiro. Foi pontuando palavras, alimentos e tradições que são corriqueiras dos moradores da Cidade Maravilhosa.

“Por que todo mundo diz da onde veio a cultura indígena?, todo mundo diz da cultura europeia, e não tem uma entrega justa para contribuição bantu. Eles já apareceram em outros carnavais, só que não era falar sobre o bantu, mas a contribuição, e, principalmente, entregar a autoria de muita coisa, fazer justiça através de um desfile de escola de samba, para o povo saber que se você fala bunda, quitute, quitanda, quilombo, samba, chamego, xodó, dengo, são palavras bantu. Está no nosso dia a dia. É bonito você entregar autoria e saber porque e de onde vem aquilo que você fala, o que você come. Vários alimentos são bantu, questões religiosas, e se hoje se veste de branco no Réveillon, em Copacabana, vem dos omolocôs, e eles eram de uma casa ligada à ancestralidade bantu. A tradição bantu está diretamente ligada ao fato de todo mundo estar de branco estourando champanhe. Esse desfile da Mangueira não é para simplesmente falar da tradição bantu de uma maneira iconográfica, mas apresentar na prática esses valores, para que a sociedade reflita e comece a valorizar a quem de direito. A força da tradição bantu na cidade do Rio é muito grande, mas isso é apagado, não é cultuado. Você começa a entender que desde a chegada desses pretos tem um apagamento dos seus corpos, das suas identidades, mas isso perdura até os dias de hoje, quando você não reconhece essa identidade, você apaga. Ser carioca é viver entre dores e paixões, principalmente, na negritude, porque você tem que conviver com a marginalidade, a violência, com as balas perdidas que sempre acham os mesmos corpos. A vulnerabilidade social é histórica. Houve o fim da escravização no papel, mas não houve políticas públicas de trabalho, de moradia, de acolhimento, de oportunidade para essa população preta. São sempre as populações mais vulneráveis”, pontuou Sidnei.

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Para o artista, a história dos bantus deixa como legado também o carnaval, e desta forma se conecta com a Mangueira, e a figura do cria como personificação dessa identidade das comunidades e dos morros cariocas.

“A gente faz um diálogo entre toda essa construção dos bantus com a negritude atual personificando a figura do cria, que está na logo do enredo, camisetas, identidade visual, porque é onde a Mangueira se torna tão ela dentro desse contexto, quando você apresenta um morro como o da Mangueira, que já é tido como um patrimônio geográfico da cidade do Rio. A figura do cria sintetiza tudo isso que “A Flor da Terra” propõe, que são herdeiros de uma tradição banto direta na cidade do Rio. É um quilombo moderno, porque o morro da Mangueira é um quilombo, resistência, identidade, pertencimento. Se você chega na Zona Sul do Rio e fala onde você mora, no morro da Mangueira, a pessoa pode te olhar assim, mas sabe o que é, qual é o tamanho da representação, confere identidade, e você não precisa falar mais, se sabe que você deve ser uma pessoa de muita luta, aguerrida. O cria dialoga desde o preconceito que a elite tem para com as figuras do morro, de não entender sua música, jeito de se vestir, jeito de falar, sua própria apresentação visual, seu tom de pele, porque tinge o cabelo, descolore, o nevou. É uma série de questões de construção identitária que não são compreendidas por uma parcela da população que não quer nem entender o que é um morro, e desvaloriza, ou seja, mudam os tempos, mudam os mecanismos, mas esse apagamento dos 80% dos bantus que chegaram no Valongo permanece. O que a Mangueira traz com orgulho são os seus crias, valores, como a possibilidade de oferecer criatividade, potência, samba e carnaval para a cidade do Rio de Janeiro, ou seja, tudo isso que vocês aplaudem a cada fevereiro também é bantu, também é Mangueira, também é cria, também é nosso. O nosso samba fala, quer imitar meu riscado, descolorir o cabelo, bater cabeça no meu terreiro. Quer dizer, você me critica, mas você usa tudo que é meu, e o samba e o carnaval da Mangueira é o cartão de visitas dessa cidade chamada Rio de Janeiro”.

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Sidnei França falou também sobre como está sendo trabalhar no Rio, na Mangueira, e da concepção prática do carnaval mangueirense, destacando as mudanças em relação ao trabalho na folia de São Paulo.

“O carnaval do Rio, para mim, é uma novidade no aspecto de criação, trabalho, de entender que hoje eu tenho a responsabilidade de criar e dirigir o desfile da Estação Primeira de Mangueira, e que é uma grande responsabilidade, mas eu não vejo como uma surpresa, como se eu não entendesse o que acontece na Sapucaí. Tem uma curva de 90 graus que em São Paulo não tem, tem um viaduto, tem a torre da TV, tudo isso eu acompanhei quando nem existiam arquibancadas dos dois lados, era um paredão de camarote. Dentro desse contexto todo, o carnaval do Rio é muito natural para mim, até mesmo as diferenças entre o Rio e São Paulo. Eu nunca pensei eu quero ser carnavalesco no Rio, até porque eu tenho uma trajetória em São Paulo, uma história no carnaval de São Paulo, alguns títulos conquistados lá, e vir para o Rio é começar do zero, como se fosse uma folha em branco e as pessoas falarem: ‘em São Paulo ele domina um estilo de fazer carnaval, é um outro padrão de iluminação, o enquadramento de arquibancada é diferente’. A escola passa na avenida em uma visualidade muito diferente. O Rio tem uma outra maneira de enquadrar a escola na pista e o trabalho acontecer. Aceitar o convite da Mangueira é recomeçar, é uma nova etapa, e eu tenho consciência disso. Também tenho consciência do tamanho da Mangueira, e não bastasse estrear no carnaval carioca, eu estou estreando simplesmente na Estação Primeira de Mangueira. Isso requer uma responsabilidade dupla, porque eu tenho que entregar para o Carnaval do Rio, mas eu também tenho que entregar para a comunidade da Mangueira, que é exigente, é chata, cobra, questiona. Na Mangueira nada é pouco, se é alguma coisa para o bem ou para o mal, tudo reverbera muito, e não só para o mundo, para dentro também, o mangueirense ele é enjoado, ele é exigente, ele é vaidoso com a sua escola”.

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Sidnei falou da concepção das fantasias para 2025, e o que o torcedor da Verde e Rosa pode esperar da forma que a escola vai estar vestida para desfilar na Passarela do Samba, destacando o uso de materiais mais diferenciados

“Foi um processo de muita liberdade, uma criação muito consciente, em que procurei colocar meu estilo a serviço da Mangueira. Eu tenho um estilo de figurino, muita modelagem no corpo, roupas muito bem compostas. Eu não gosto de roupa larga em componente, eu gosto de tudo muito enquadrado na estética da anatomia humana. Quase não uso penas, não gosto muito de pluma, e vai ter pouquíssima pluma no desfile da Mangueira, porque eu aprendi em São Paulo a trabalhar muito bem com a volumetria de materiais alternativos. Eu não sou aquele carnavalesco do galão dourado e da pluma. Acho que até isso para a Mangueira também desconstrói um pouco, já que é uma escola romântica e clássica. O que eu estou fazendo é um desfile mais cenográfico do ponto de vista das alegorias e da indumentária teatral para as fantasias. É muito mais teatro do que carnaval o que a Mangueira vai apresentar, é muito mais roupa do que fantasia, porque isso é muito meu, eu gosto dessa linha. O verde e rosa aparecem no final, no último setor do desfile, a escola encerra chegando na figura do cria com muito verde e rosa, mas os outros setores nem tanto. Eu tive liberdade total até porque a presidenta me falou que quer fazer um grande carnaval para a Mangueira e eu aposto muito em mim como uma mente criativa, para não ficar preso se o material é caro, se é barato. E eu tive liberdade para fazer. Eu tenho buscado isso há anos em São Paulo e eu acho que eu cheguei no limite disso aqui na Mangueira, que é de buscar uma variação de volumetria de fantasia onde você olha uma ala e a próxima não tem nada a ver e a outra nada a ver. Isso vai gerar, em quem está assistindo, um estímulo do que vem aí, até para não cansar e ele falar que todos os costeiros têm a mesma pena, todas as cores vão se repetindo sistematicamente. Cores, formas, eu venho trabalhando isso, isso já desde São Paulo há alguns anos, intencionalmente. Todo o processo criativo foi muito consciente para entregar uma Mangueira diferente, mas para que o meu trabalho também fosse respeitado no sentido da autoria”.

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Ao comentar sobre trazer inovações sem perder a tradição que a Estação Primeira possui, Sidnei retoma a primeira conversa com a presidente Guanayra Firmino, onde o assunto foi tratado por ela, casando com o estilo que o artista gosta de trabalhar em seus carnavais.

“Esse desfile da Mangueira, não é só de mim, parte da própria diretoria da escola, logo na primeira conversa, no dia do desfile das campeãs, quando eu venho de São Paulo para o Rio, me reuni com a presidenta Guanayra e ficamos uma tarde inteira conversando, e uma das coisas que a presidenta me falou foi que a Mangueira precisa se modernizar na estrutura dos seus carros, na maneira de apresentar o carnaval, e eu fiquei com aquilo na mente. Eu já tenho um estilo de trabalho de flertar com tecnologia, não sou high tech, mas eu gosto de tecnologia em desfile, de formas arrojadas, eu sempre fiz em São Paulo carros vazados, muito desconstruídos. Os famosos caixotes, que as pessoas falam, eu nunca gostei desde o começo lá. Juntou um perfil meu, com uma vontade da escola. O carnaval que eu estou projetando e que está se materializando para a Mangueira, são carros muito desconstruídos do ponto de vista estético, muito vazados, cheios de formas e volumes, mais altos do que o que a Mangueira tem apresentado ultimamente, a volumetria muito mais preenchida. Não estou falando que é melhor ou pior, estou dizendo que tem uma ideia diferente do que a escola vinha apresentando. Vai ter muito momento de movimento, de tecnologia, de iluminação para fora do convencional, até porque hoje a Sapucaí propicia, e todas as escolas estão entrando nessa era de luminotécnica, de um projeto de luz muito diferente do que se fazia antes. Vai juntando tudo isso, e eu acho que as pessoas vão entender a necessidade de modernizar a Mangueira sem perder a tradição”.

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Fotos: Divulgação/Mangueira

Por fim, o carnavalesco respondeu o que o mangueirense pode esperar da sua agremiação no Carnaval 2025, destacando que a garra que a comunidade está tendo durante os ensaios é a mesma que a diretoria e o barracão estão trazendo na montagem do desfile da escola.

“Uma escola muito madura artisticamente na pista, tenho certeza absoluta. É algo que eu falo com muita tranquilidade. Não estou falando de resultado, eu estou falando da certeza do que foi projetado e está sendo finalizado agora entre janeiro e fevereiro. É uma escola de uma maturidade, de chão, e de discursos muito fortes que agora se alia com uma plástica que vai chegar acabada, porque como a escola está terminando tudo no seu tempo, não vai ter aquela aceleração de última hora. De tal coisa faltou, desde uma luva, a pena de um chapéu, uma gola que deveria ser bem trabalhada e não deu tempo de terminar. A escola vai se apresentar em alto nível, não só chão, bateria, quesitos clássicos, em que a Mangueira é sempre muito boa, que depende da quadra e do chão, mas o que vem do barracão eu também tenho certeza que vai dar muito certo. O mangueirense pode esperar um desfile muito coeso entre discurso e materialidade, entre aquilo que se diz e aquilo que se vê. Me emociono a cada domingo, quando a gente vai para os ensaios de rua da Visconde de Niterói, que eu fico vendo e ouvindo a comunidade cantando, e eu começo a fazer link com tudo que a gente está produzindo no barracão e que vai naquela potência para a Avenida. É muito bonito pensar que a Mangueira vai dar conta de levar algo que a comunidade já abraçou e canta com verdade. Acho que o que eu posso dizer para o mangueirense é que a mesma garra que ele tem lá fora para ir para a rua, para pisar no asfalto com vontade, é a determinação que a atual diretoria está tendo, que eu como carnavalesco tenho entregado, Dudu Azevedo diretor de carnaval, também é incansável, está dia e noite no barracão, não tem hora para entrar, não tem hora para sair. Se criou uma energia dentro da Mangueira de que vai dar certo, e eu quero muito que o mangueirense sinta essa confiança que a gente está sentindo”, finalizou o artista diretamente para o torcedor da escola.

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Conheça o desfile da Mangueira

A Estação Primeira de Mangueira vem em 2025 com cerca de 3 mil componentes em 27 alas. A Verde e Rosa virá com cinco carros alegóricos, dois tripés, e um pede passagem, além do elemento alegórico da comissão de frente. Sidnei França, ao CARNAVALESCO, fez a setorização do desfile da escola.

Setor 1: “O primeiro setor é encerrado pelo carro abre-alas, toda a abertura do desfile, fala muito sobre a aventura Atlântica, que é chamado no contexto antropológico, o entender o Oceano Atlântico não só como uma rota, porque às vezes comparam o Atlântico na travessia diaspórica mais ou menos como a Dutra que liga Rio e São Paulo. Tenho em uma ponta África e tenho a superfície do mar, só que existe uma profundeza do Oceano Atlântico que guarda corpos que se lançaram ao mar ou foram lançados ao mar. Pensar o Atlântico como um local de mistério, é por isso que o samba da Mangueira canta “mistério das kalungas ancestrais que o tempo revelou no cais”, ou seja, nesse mistério, entende-se o Atlântico como uma grande kalunga, um grande depósito de almas, que algumas se lançaram, tendo muito relato de preto escravizado que se rebelou, resistiu à escravização e se lançou ao mar, porque o povo bantu não acredita na morte como um fim. Para ele é assim, se eu me lançar aqui, eu vou renascer em África e vou retomar meu elo com os meus ancestrais, porque a morte para o banto não é ausência da vida, é ausência da identidade, é quando você apaga a história dele, como a escravização faz, para ele isso é a morte e não se lançar ao mar. Para ele é um ato de resistência, tanto que os pretos eram presos nos tumbeiros para não se jogar no mar. O que a frente da escola conta é sobre esses mistérios das kalungas ancestrais que transformou o Atlântico em um grande depósito de histórias e almas que acreditavam no pós-morte e não no fim por ali. É muito bonito pensar resistência dessa forma”.

Setor 2: “Uma vez já no Rio de Janeiro, falando da Pequena África como território de acolhida dos bantos. O segundo setor, fala muito sobre a chegada do preto na cidade do Rio de Janeiro, como ele foi acolhido ou muitas vezes apagado nessa cidade, e também fala principalmente da primeira grande contribuição de sociabilidade preta, que é a religiosidade. A maneira do brasileiro entender a fé é totalmente atravessada pelos bantus. Até porque os Nagô-Iorubá, eles eram mais de Pernambuco e Bahia, muito depois, na fase Tia Ciata, que a Bahia veio aportar no Rio de Janeiro. Esse Rio preto, lá dos séculos XVIII, XIX, de 1700 a 1800, ele não era baiano, era um Rio ainda muito bantu. Não se falava em orixá, era inquice. Orixás vêm com as tias baianas, com os terreiros da Bahia aportando no Rio de Janeiro. Isso é muito para cá, na historicidade. Esse segundo setor fala dessa mescla do carioca como uma figura nativa atravessada pela fé e pelas crenças das inquices, as ervas, os omolocôs, que deu origem a Umbanda. E o segundo carro é o Afrocatolicismo, o encontro das crenças pretas, ancestrais, com a sistematização da fé católica, e coisas que só o Brasil explica e o Rio de Janeiro. Por exemplo, São Jorge. Tem carioca que hoje olha para São Jorge e não sabe se você está falando de algum orixá, se é o santo guerreiro, vira tudo uma coisa só. Isso é um fenômeno muito carioca. Isso vem da tradição bantu diretamente, através dos omolocôs, das tradições bantu que fundaram os terreiros de erva no Rio de Janeiro, as benzedeiras”.

Setor 3: “O terceiro setor avança no tempo, e fala sobre a força da sociabilidade, a presença preta no território carioca. Entra a questão da capoeira, o lundu, as danças, a presença preta nas rodas de jogatinas. Tem muitos relatos de jogatinas no Rio de Janeiro, na Pequena África, carteado, tem essa questão de quebrar com esse entendimento que o preto só trabalhava, trabalhava, trabalhava, trabalhava. Não, ele também se divertia, e ele começou a construir aqui na Pequena África uma cidade à parte. E é o que a gente vai mostrar, como era a Pequena África, nesse terceiro setor. E o terceiro carro que resume essa Pequena África, apresenta o que, eu fiz uma pesquisa, nunca apareceu num desfile de escola de samba do Rio, casas de zungu. Na Pequena África, Santo Cristo, Gamboa, Saúde, Providência, o Valongo, toda essa região que vai desde ali da Praça Mauá até onde hoje é a rodoviária, tinham as casas de zungu, que eram uma espécie de quilombos urbanos. Apesar de chamar casa, era um vilarejo, uma espécie de cortiço, um grupo de casas, e nesse agrupamento de casas, os pretos faziam práticas religiosas, faziam batuques, danças, jogos, tinha benzedeira, era um coletivo de amparo para o preto. Quando na cidade do Rio de Janeiro, um preto fugia do seu senhor, ele já ia para uma Casa de zungu, porque ela tinha acolhida. E se chamava casa de zungu porque servia angu, que era o prato barato que tinha para todo preto fugido e acolhido naquele lugar, e a polícia não entrava, não quebrava, não arrebentava porque ia transformar o preto em herói. Eles preferiam controlar e conviver do que exterminar e ter um levante, porque a cidade era muito preta, tinha muitos pretos. As casas de zungu eram verdadeiras embaixadas negras dentro do Rio de Janeiro. É muito bonito pensar que tinha um local de resistência dentro do Rio de Janeiro. O terceiro carro é uma casa de zungu, uma Casa de Angu, onde as tias pretas ofereciam pratos de Angu para alimentar os pretos fugidos e eles passavam a morar nessas casas de zungu. E como você sabia que ali era uma casa de zungu? Qual era a mensagem? Eles colocavam um pano branco no lençol, algum pano branco na janela, porque era a ligação com Zambi, que é Oxalá. Aqui é um lugar de paz, que vai te acolher. É sempre nós por nós. É bonito pensar nisso e o terceiro carro tem essa questão do pano branco, essa vivência valente das Casas de zungu, tem uma cozinha nesse carro que oferece angu para esses pretos que buscam acolhida nesse local”.

Setor 4: “O quarto setor fala sobre a contribuição bantu na cultura carioca. O quiabo é um prato trazido pelos bantus. Por isso que hoje tem o ditado quem come quiabo não pega feitiço, isso vem dos bantos, porque o quiabo é um alimento sagrado entre Angola, Congo, Moçambique. São regiões do centro-africano onde os bantus se estabeleceram, e nós vamos mostrar a ala do quiabo. Nesse setor que a gente tem os gurufins. Para o bantu, se alguém morre, não é o fim, você não tem que chorar, você tem que celebrar o tempo que você viveu com aquela pessoa. Por isso que no subúrbio carioca tem os gurufins, que é o vamos beber o defunto, vamos celebrar mesmo, porque ele foi feliz. Não vou chorar meu amigo não, meu irmão. É uma coisa que Zeca Pagodinho traz muito forte, essa prática do gurufim, porque ele quer viver a vida. Chorar tem motivos para chorar. Quando meu irmão morre, claro que é um motivo de abatimento, mas eu preciso tirar força e gastar energia celebrando a vida dele do que lamentando. O próprio Réveillon de Copacabana. Tudo que é carioca, que a gente mal sabe e vem dos bantus, está nesse setor quatro. A cuíca, que é um instrumento, e cuja origem da palavra também é bantu, vem de puita, e nós vamos mostrar um tripé que vem nesse setor, que são as cuícas. Se hoje é um instrumento super importante para as baterias da escola de samba, veio dos bantus. E o carro que fecha, ele é o carro do funk, que fala dos funk cariocas, que também é outra coisa que as pessoas não sabem, mas a batida do funk vem de Angola, não veio para o Brasil, foi para os Estados Unidos, virou beat do funk americano. Mas como o Brasil importou, veio via bantu através dos Estados Unidos, e por isso que o samba fala, meu som por você é criticado, sempre censurado pela burguesia. Esse som criticado é o funk. Antes era o samba, por muito tempo o samba não era assimilado. E depois, quando o samba é assimilado, o funk passa a ser criticado: é coisa de morro, é coisa de preto do morro”.

Galeria de fotos do ensaio técnico da Mangueira na Sapucaí

Setor 5: “O último setor é quando mostra o legado bantu para a construção do Rio atual, da negritude carioca e principalmente da figura do cria. Toda a visualidade do último setor, eu me baseio no conceito do afrofuturismo, que é pensar no ontem para ressignificar o hoje e reconstruir a possibilidade do amanhã. Toda a estética do último setor é afrofuturista, como visto nas redes sociais, uma fantasia cheia de tomada, que tem uns girassóis. O último setor é todo neste contexto, pensando que a estética africana não é europeia. Você não tem que ficar esperando volutas, arabescos, em uma fantasia. Você tem que pensar a vida como a África enxerga, em uma diversidade de cores e de formas. Na África, um sinal de romance, um namorado não entrega uma rosa, entrega um girassol, o símbolo de chamego e de afeto é o girassol, não é um botão de rosa. Isso é cristão e é religioso, vem da Guerra das Rosas, Inglaterra e França. A gente precisa decolonizar, precisa reutilizar signos que tragam tudo pra dimensão africana para entender um novo Rio de Janeiro, um Rio preto. E esse último setor termina com a figura do cria, como uma possibilidade de um futuro, de um amanhã conectado com a realidade do Rio de Janeiro e não aquele Rio que a gente tenta ser e nunca vai ser porque nós não somos europeus”.

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