Em 1990, a Lins Imperial levava para a Avenida um carnaval de Sérgio Farias sobre Madame Satã, nome artístico de João Francisco dos Santos, um menino humilde que desde a infância sofreu muito na vida. Drag performer, capoeirista, homossexual, negro e nordestino, Madame Satã tornou-se um simbolo de resistência aos menos favorecidos. Após 33 anos do imponente desfile da Lins Imperial no Grupo Especial, a escola de samba volta a homenagear Madame Satã e promete entregar um belo carnaval na Marquês de Sapucaí. O site CARNAVALESCO visitou o barracão da Lins Imperial para conversar com o carnavalesco Eduardo Gonçalves. Raí Menezes também está na parceria.
Segundo Edu, a ideia de releitura do enredo de Madame Satã já era pensada durante os preparativos do carnaval do ano passado, quando a escola homenageou Mussum na Avenida. Houve a pesquisa de outras dezenas de possíveis enredos, mas a imponente história de João Francisco falou mais alto.
“No início deste ano, após o carnaval do Mussum, começamos a levantar possibilidades de enredos inéditos e, principalmente, de falar sobre os 60 anos que a Lins Imperial vai fazer no dia 23 de março. Os enredos inéditos, obviamente, foram pesquisados. Mas, de todos os 58 projetos que a Lins Imperial levou para a avenida neste período, Madame Satã sempre chamou muito a nossa atenção. Ano passado, no barracão do Mussum, a gente já falava de Madame Satã. Quando vimos que haveria a possibilidade de levarmos de novo Madame Satã com uma releitura, não uma reedição, nos animou bastante”, disse.
De acordo com o carnavalesco, a diferença do deste desfile para o de 1990 é a abordagem que será feita. Desta vez, a escola abordará Madame Satã como um amuleto político e símbolo de resistência. Tal motivo animou a escola e contribuiu para a escolha do enredo.
“A gente ficou bastante animado, principalmente pelo novo momento, já que foi apresentado em 1990 e era outra época, tinha uma narrativa de uma Madame Satã e de um João Francisco dos Santos romântico, bom vivant, de uma Lapa boêmia – o que era incrível – lindo, inclusive, plásticamente. Este ano, a nossa possibilidade de abrir um leque muito maior; de falar de um Madame Satã biográfico, mas, principalmente, como um amuleto político. Isso nos animou bastante. biográficos os dois são. Mas, este ano, temos a questão política. Madame Satã é um amuleto para a gente, é uma bandeira LGBTQUIA+, é uma bandeira negra, uma bandeira nordestina. Isso porque nós tratamos, principalmente no final do desfile, este tema”, enfatizou.
A escola abordará a bibliografia de João Francisco que, em grande parte, teve uma vida sofrida. O carnavalesco Eduardo contou que ainda na infância, João Francisco foi trocado por uma mula para sustentar seus 17 irmãos. A partir daí, João foi escravizado.
“Desde criança ele começa a enfrentar seus ‘infernos’, que começam aos oito anos em Glória do Goitá, sua cidade, quando ele é trocado por uma mula de nome amorosa para sustentar 17 irmãos. Esse senhor que resolveu adotar João o escravizou. Ele consegue fugir desse senhor com a ajuda de uma senhora que se chamava Felicidade, mas que de felicidade não tinha nada, porque ela traz João para a Lapa mas também o escraviza. Daí, quando ele sai da casa dessa senhora chamada Felicidade, ele vai morar nas ruas. Assim ele se torna, aos 13 anos de idade, um menor de rua, começa a trabalhar para ganhar seus primeiros tostões para alugar esquinas de escadas de bordéis para dormir. Isso tudo é apresentado no enredo. Ele sempre esteve à margem”.
Edu e Raí Menezes se baseiam em dissertações, pesquisas e documentos históricos durante a pesquisa de enredo. Ao longo deste estudo, várias coisas chamaram a atenção dos carnavalescos, mas uma se destacou: Madame Satã não foi um criminoso, ao contrário do que muitos pensam. Edu conta que desde a infância, João Francisco sofreu muito e chegou a ser trocado por uma mula. O sonho dele era se tornar artista.
“Ele não pode ser considerado um criminoso, já que cometeu os crimes em sua defesa. Ele sempre falava que o sonho dele mesmo era ser artista. Ele queria ser a mulata do Balacochê, não esse Madame Satã que ganhou essa fama de malandro, boêmio, guarda-costas de boates ou mesmo de capoeirista. Ele ficou conhecido primeiro como ‘caranguejo da praia das virtudes’, por ser um exímio capoeirista, mas ele só se torna capoeirista porque tem que se defender. Durante todo esse tempo houve esse tratamento em cima de João Francisco como um marginal, e isso que estamos tentando mostrar que não é bem assim, não é por aí”, explica.
Proposta visual do desfile
O carnavalesco ainda revelou que o enredo, as cores e o samba serão alguns dos grandes trunfos da escola, além do fato que a Lins é da comunidade. Edu afirma que, quando o Complexo do Lins se junta, um belíssimo desfile acontece. Com o aniversário de 60 anos da escola, a comunidade vem ainda mais disposta.
“Eu acho que o grande trunfo da gente, numa narrativa plástica, são as cores. A gente está trabalhando com um primeiro setor muito quente, depois a gente vai esfriando, em sequência esquenta de novo e, por fim, as cores da escola. Isso é um dos trunfos da narrativa plástica. Mas é óbvio que a força do enredo é muito forte. A figura de João Francisco dos Santos, hoje como amuleto e bandeira LGBTQUIA+ é muito poderosa, porque nós estamos com a participação de muitos desses movimentos para o desfile. Nós temos o trunfo do samba de enredo, que é considerado um dos melhores sambas do grupo. Fora que a Lins Imperial é uma escola de comunidade. O Complexo do Lins, quando resolve desfilar – e ele resolve sempre desfilar – vem muito forte. Além do que, são 60 anos da escola e as pessoas vêm realmente muito dispostas para fazer um grande desfile”, ressaltou.
Homenagear uma figura como Madame Satã nos anos 90 foi algo ousado para um carnaval. Para Eduardo, esse é um dos destaques do enredo de 1990 da Lins Imperial, além da plástica elaborada por Sérgio Farias.
“Em 90 eu assisti ao desfile do Sérgio pela Lins e o que eu achei mais incrível foi a plástica linda, que Sérgio era muito caprichado e talentoso. Inclusive ele é citado e homenageado tanto na sinopse como no nosso desfile. O que mais me chamou a atenção lá em 90 foi a ousadia. Levar uma personagem homossexual em 1990 não era fácil. A gente tinha uma certa abertura política, mas as pessoas tinham muito preconceito – se ainda tem hoje, imagine em 1990. A diferença é óbvia, hoje nós temos muito mais liberdade, essa é a diferença maior. Poder levar um samba com palavras fortes e inéditas. Como diz o samba, é um samba manifesto – muito mais que carnaval”.
Um manifesto sobre Madame Satã e para a vida em sociedade: a importância do enredo para dar voz às minorias. Essa é uma das propostas do enredo. Edu contou que a escola chegou a criar o prêmio Madame Satã para homenagear personalidades LGBTQIA+.
“Falamos de um carnaval com uma bicha preta, nordestina, analfabeta e que viveu à margem de uma sociedade e sempre apontado como um criminoso. Hoje, a importância de João Francisco no desfile da Lins Imperial é justamente isso: a gente poder falar com tanta clareza para a comunidade. Tivemos a oportunidade de fazer o Prêmio Madame Satã, que foi uma feijoada que nós fizemos todo mês na quadra, onde convidamos personalidades importantes para o mundo LGBT que tiveram, em alguns casos, a primeira oportunidade de ter um microfone na mão dentro de uma quadra de escola de samba. Elas podendo contar as suas histórias, vivências e experiências de vida para a comunidade do Lins. Só isso, para nós, já é uma vitória”.
Conheça o desfile da Lins Imperial
A Lins Imperial será a segunda escola a entrar na Avenida no primeiro dia de desfiles da Série Ouro, dia 17 de fevereiro. A agremiação levará entre 2700 e 2800 componentes, três carros alegóricos e dois tripés divididos em cinco setores – os quais o carnavalesco chama de ‘cenários’.
SETOR 1: “João, menino, em Glória do Goitá. O folclore de Glória do Goitá, os bonecos mamulengos – a cidade tem um dos maiores museus de bonecos mamulengos do Brasil – e a gente traz isso, mas com essa narrativa de ‘inferno’, porque ele vive esse ‘inferno’ nessa cidade, nesse início de infância. Portanto, o primeiro setor tem essas vivências de João menino e os seus ‘infernos’, o seu primeiro inferno”.
SETOR 2: “João chegando na Lapa, ainda criança, ganhando seus tostões para dormir em esquinas de escada e a sua experiência com os malandros – como sete coroas e tantos outros malandros – que o transforma em ‘caranguejo da praia das virtudes’. Nesta parte também entram os bordéis, casas de tolerância que João Trabalhou, o seu primeiro emprego, que foi na pensão Lapa, onde ele conheceu as prostitutas, cortesãs e onde ele aprendeu a cozinhar e aprendeu as vivências e experiências sexuais – ainda como criança, com 14 ou 15 anos”.
SETOR 3: “O que chamamos de momento ‘sonhos’. Os momentos em que ele dizia que só queria ser artista. Sendo artista, ele poderia trabalhar na noite, ganhar muito dinheiro e talvez ele realizasse o sonho dele. Ele tinha Josephine Baker como santa para ele, ele dizia que era devoto de Josephine Baker. A Carmen Miranda ele dizia ser muito amigo. E ele teve essa experiência de poder encenar num teatro, que foi a casa de caboclo, uma peça onde ele representou a personagem a Mulata do Balacochê. Isso está neste setor. É um setor muito forte, porque tem a bateria. Também temos surpresas nesse setor. Também nesse setor vem o apelido”.
SETOR 4: “É Mito, Lenda e Legenda, que ele ganha fama muito tempo depois. Apenas quando ele vai dar entrevista para o Pasquim que ele fura a bolha da Lapa, atingindo outros públicos como a burguesia carioca, os paulistas e vira a celebridade Madame Satã. Começou a ser pesquisado, virou tema de filme – A rainha diaba. Ele começa a gostar disso, mas já era muito tarde, ele estava bastante idoso, morando em Ilha Grande e já estava totalmente dedicado a sua vidinha final. Tudo isso é tratado nesse setor”.
SETOR 5: “A gente chama de No Terreiro de Satã, onde convidamos os renegados, vadios, as bonecas e invisibilizados para celebrarem esse culto no bloco manifesto em homenagem e saudação a Madame Satã e aos 60 anos da Lins Imperial”.