O povo da região da Leopoldina está obcecado pelo bicampeonato. Lá para os lados de Ramos só se fala nisso. E com um time estrelado e premiadíssimo em 2023 com nomes como Pitty de Menezes, mestre Lolo, Marcelo Misailidis, entre outros, o holofote segue com o carnavalesco Leandro Vieira que nos últimos quatro carnavais comemorou títulos. Em 2019, no Grupo Especial com a Mangueira, em “História para Ninar Gente Grande”, e em 2022, com o Império Serrano na Série Ouro com “Besouro Mangangá”. Com a Rainha de Ramos, os títulos, de 2020 no “Só dá Lalá”que rendeu o retorno à elite do carnaval após amargar rebaixamento, e, finalmente, 2023, coroando a trajetória na Verde e Branca, campeã com “O aperreio do cabra que o excomungado tratou com má-querença e o santíssimo não deu guarida”. Este último, foi o nono da Imperatriz após um jejum de 21 anos sem levantar o caneco. E engana-se, quem pensa, que o título acalmou a sede dos gresilienses. A comunidade quer “Lá Décima” para comemorar mais ainda. Já Leandro Vieira, não vai ficar triste se emplacar a quinta conquista de carnaval seguido, mas o artista reforça que vem celebrando diversas coisas na sua carreira além dos títulos.

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Fotos: Divulgação/Imperatriz

“Estou comemorando muitas coisas, não estou comemorando só campeonato não. Acho que a possibilidade de participar da história de grandes escolas é motivo de comemoração. Não é o campeonato o único motivo para eu comemorar não. Eu tenho que comemorar ter participado da história da Mangueira, ter participado do Império Serrano, de participar da história da Imperatriz subindo com a escola. Antes de qualquer resultado que a Imperatriz possa vir a ter no carnaval de 2024, já estou cheio de coisa para comemorar, poder participar desse momento da escola, de ver a escola como está, da comunidade como está, isso já é motivo de comemoração. O campeonato é muito pouco diante daquilo que a gente às vezes vive e participa”, define o artista.

Com uma carreira relativamente recente que ainda não completou dez carnavais, Leandro fez história na Mangueira, produzindo seis carnavais, em que apenas um não figurou entre as campeãs. Indo para o seu terceiro desfile na Imperatriz, contando 2020 no Grupo de Acesso, Leandro tem em comum desde sua estreia na Caprichosos em 2015 a predileção por falar de Brasil, por buscar temas que deem destaque àquilo que se vive dentro do país.

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“O Brasil, a cultura brasileira, o povo brasileiro são muito ricos. Quem trabalha com carnaval, você está sempre se esbarrando em alguma coisa que vem da gente, porque também faço parte desse povo, que brota da gente com a possibilidade de a gente está enredando. Eu continuo olhando para a cultura brasileira, para manifestações populares, para imaginários brasileiros com a expectativa de criar visualidade. O meu trabalho é esse, olhar para imaginários brasileiros com a perspectiva de produzir visualidade. É o que tenho feito em todos os meus carnavais. E é o que farei certamente com a cigana Esmeralda”, indica Leandro.

Aposta do carnavalesco para 2024, “Com a sorte virada para a lua, segundo o testamento da cigana Esmeralda” é mais uma vez Leandro produzindo uma ficção carnavalesca, assim como foi o enredo de 2023 campeão sobre o pós morte de Lampião. O trabalho deste ano, assim como o do ano passado, se construiu com a inspiração a partir da literatura de cordel.

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“O enredo da Imperatriz se debruça sobre um testamento fictício, o testamento da cigana Esmeralda. É uma obra do cordelista paraibano Leandro Gomes, um cordel para lá de centenário e que fala sobre um testamento de uma cigana que ele vai chamar de Esmeralda por influência da cigana Esmeralda do Victor Hugo, o célebre escritor, e ele juntou imaginários ciganos para dizer que a cigana Esmeralda morreu na Europa e deixou escrito um testamento e o conteúdo deste testamento gira em torno de possibilidades de prenúncio da sina, e interpretações da sina que as pessoas podem ter de forma prévia. Eu peguei todo esse conteúdo para fazer algo parecido com o que fiz do Lampião. ‘O aperreio do cabra que o ex comungando tratou com má querença e o santíssimo não deu guarida’ é uma ficção sobre a ficção do José Pacheco que escreveu o cordel ‘A chegada do Lampião ao inferno’, é uma ficção sobre o cordel ‘a chegada do Lampião ao céu’ , é uma ficção com o cordel ‘O grande debate que Lampião teve com São Pedro’. Para o Lampião eu peguei esse conjunto de cordéis que tratam do pós morte do Lampião e fiz uma segunda ficção sobre a ficção, foi quando imaginei que se ele não foi aceito nem no céu e nem no inferno ele teria que ter ido para algum lugar. A minha ficção foi que ele voltou à terra para viver no imaginário das coisas do homem do nordeste, se escondeu embaixo do gibão do Luiz Gonzaga, no barro do mestre Vitalino, se transformou em uma carranca que navegava no Rio São Francisco e voltou para Ramos”, explica o carnavalesco.

Citado pelo artista como inspiração, Leandro Gomes de Barros é considerado como o primeiro escritor brasileiro de literatura de Cordel, tendo escrito aproximadamente 240 obras. O autor do “Testamento da Cigana Esmeralda” morreu ainda no século passado e teve seus trabalhos inspiração para obras famosas como o “Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna. No clima de produzir uma realidade delirante, de usar a literatura como inspiração para fazer criar novas interpretações e produzir novos finais para história contadas na cultura popular, Leandro Vieira pretende envolver a Rainha de Ramos neste percurso e criar uma possibilidade de prenúncio de um possível bicampeonato.

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“Eu estou em uma vibe de curtir um pouco a ficção carnavalesca. O carnaval como uma possibilidade de ficção. O carnaval como uma possibilidade de invenção e reinvenção de realidades que não se debruçam sobre o real. Eu peguei um autor que inventou uma cigana, que inventou um testamento para essa cigana e transformei esse testamento em um manual da boa sorte, que é o que o testamento da cigana é de fato. Fiz uma ficção sobre a ficção. Eu tratei a Imperatriz Leopoldinense como um indivíduo e peguei a data de fundação da escola como se fosse a data de nascimento desse indivíduo. Com a data de nascimento da Imperatriz eu fiz a ficção de que ela estaria submetida a uma influência astrológica e buscaria boa sorte. Com o céu astrológico da Imperatriz nas mãos, eu realizei um pensamento de que a Imperatriz é uma pisciana, ela tem a lua em Aquário, a partir do mapa astral da escola, portanto, regida por Netuno, tem a água como elemento que rege a sua poética, vamos dizer assim, e montei meu carnaval”.

Estética cigana presente com enredo brincando muito com a busca pela sorte

Depois de surpreender e impressionar com um desfile sobre Lampião que se mostrou bastante diferente de outros carnavais de Leandro Vieira, em termos de narrativa, mas apresentando muito da força visual que o artista possui e já é conhecida, o desfile de 2024 reserva uma nova história delirante e a produção de uma ficção carnavalesca baseada em outra ficção que faz parte da literatura popular. Essa nova ficção dentro da ficção vai permitir novas realidades visuais que sirvam a temática deste desfile.

“‘Com a sorte virada para a lua, segundo o testamento da cigana Esmeralda’ é uma ficção sobre a ficção do Leandro Gomes de Barros, é uma possibilidade de construção carnavalesca delirante que é um delírio próximo ao Lampião no carnaval de 2023. Só que é um próximo e ao mesmo tempo super distante, porque mergulhado em um ambiente de estética cigana, eu justamente estou mergulhado nesta plasticidade, que é essa visualidade exuberante, luminosa, colorida, brilhante, bem própria dos ciganos. Estou caminhando por esses territórios”, revela o carnavalesco.

A parte visual, como colocado pelo carnavalesco, vai trazer esta exuberância e singularidade bem própria da cultura cigana, mas não vai se resumir só a isso. Leandro preparou muitas surpresas, está bastante motivado e animado com o que está produzindo, e quem teve acesso ao barracão da Imperatriz viu a qualidade de sempre do trabalho do artista tricampeão do Grupo Especial, agora também se aventurando por caminhos que ele ainda não apresentou em carnavais passados.

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“Vai ter também essa estética cigana, mas não só isso.É um testamento que fala sobre a interpretação dos sonhos, o sonho como prenúncio de algo que pode vir a acontecer. Fala sobre a questão da leitura das mãos como algo que você pode consultar previamente do que vai acontecer a partir de uma leitura das linhas que traçam a palma da mão e o formato dos dedos. Fala sobre a influência dos astros na vida humana. Fala sobre a influência do Zodíaco sobre a vida das pessoas, o quanto que o céu, os movimentos dos astros, da lua ele pode influenciar a vida das pessoas”, explica o profissional.

Trabalhando um enredo que vai focar muito nessa vontade humana de conhecer o futuro, de buscar a boa sorte, pode se pensar que o carnavalesco é uma pessoa muito preocupada e interessada nestes caminhos. Mas a ideia de encontrar a sorte não mexe muito com a cabeça de Leandro Vieira. Adepto do trabalho, da entrega ao máximo, o carnavalesco conta que não associa o sucesso à sorte, mas sim ao esforço e à dedicação.

“Eu não acredito na sorte não. Às vezes credenciar as coisas a sorte é tirar também o crédito do sacrifício. Quando a gente credencia as coisas à sorte, a gente tira todo o crédito do sacrifício. O êxito na minha cabeça só pode resultar de trabalho. Eu não acredito no êxito que resulta de boa sorte. Pelo menos para mim, nunca desfrutei de êxito nenhum que não tenha sido resultado do trabalho, que não tenha sido resultado da entrega, que não tenha sido resultado de noites sem dormir, que não tenha sido resultado do fazer e desfazer, no achar que não está bom para fazer de novo até ficar bom. Se a sorte existe eu não credito meu trabalho à ela não”, confessa o artista.

Referências visuais diversas para uma Imperatriz que segue delirante e com uma pitada de picardia

Dentro do enredo que também vai apresentar a estética cigana, é fácil pensar em termos de carnaval, em algumas referências que já passaram na Sapucaí. Em 1992, a Viradouro apresentou o enredo “E a magia da sorte chegou” de Max Lopes e Mauro Quintaes. Em 1980, pelo Grupo de Acesso, Maria Augusta apresentou, pelo Tuiuti e foi campeã, o enredo “É a sorte”. Mas, o enredo de Leandro Vieira, como o próprio artista explicou acima, é muito mais do que uma exaltação à cultura cigana, é também, mas tem outros pontos: a revelação da sorte através da leitura das mãos, da observação dos astros, os signos do zodíaco, entre outros. Por isso é curioso imaginar quais as referências visuais que o profissional utilizou para produzir este carnaval. Leandro conta que olhou para diferentes direções.

“As referências visuais para este desfile vem de lugares muito diversos. Existe um imaginário cigano que todo mundo tem, uma referência de visualidade, mas existem outras possibilidades de construção de imagem. Tem questões zodiacais, esotéricas, tem questões que o próprio carnaval visualmente me deu, tem questões visuais que são do trabalho da Maria Augusta, tem questões visuais que são do trabalho do Renato (Lage), tem questões visuais que são do trabalho dessas pessoas que vão habitando a cabeça da gente. Também tem as questões visuais da minha infância mesmo, você vai juntando coisas e quando você vai produzir a visualidade você vai colhendo as coisas que você juntou ao longo de uma vida dedicada à produção visual, e também as coisas que você juntou enquanto realizou pesquisas específicas do enredo”, esclarece o carnavalesco.

Independente das referências utilizadas, é certo que a gente pode esperar, assim como foi com o Lampião, uma Imperatriz quente, abrasada, com muita picardia. Leandro sempre brinca nas redes sociais usando o termo “ex Certinha de Ramos”, uma alusão ao apelido que a Imperatriz recebeu no final dos anos 90, início dos anos 2000, por conta do excesso de tecnicidade da agremiação que para muitos vencia carnavais ancorada em mecanismo de desfile engessados e rígidos, que fazia com que perdesse poucos décimos, mas que deixava um pouco a desejar na conexão com o público. Ainda que a Imperatriz de hoje seja uma escola que trabalha de forma muito séria, ensaia bastante, e busca, como lá atrás, gabaritar os quesitos, o carnavalesco quer a Rainha de Ramos sendo uma escola em que o seu componente coloque para fora toda aquela alegria que está dentro de si, e com uma pitadinha da jocosidade que faz parte do carnaval.

“O Lampião meteu o pé na porta para que a cigana Esmeralda pudesse ficar de campana na Imperatriz. A Esmeralda armou a tenda depois que o Lampião meteu o pé na porta. São aquelas questões das apostas que a gente vai fazendo enquanto vai desfrutando do prazer de conviver com a comunidade. E você vai descobrindo também o que que essa comunidade deseja, qual ambiente que essa comunidade quer desfrutar. Acho que acertei com esse enredo porque tenho visto a Imperatriz super feliz, a escola tem cantado com entusiasmo e acho que esse entusiasmo tem a ver com o que o samba propõe, que é o que o enredo propõe, que se juntou com a boa fase da escola. Esse enredo tem uma qualidade que é a ideia de que todo mundo deseja boa sorte. Esse canto que é coletivo, ele também é o canto que é individual. As pessoas cantam desejando boa sorte, cantam desejando que a maré mude, que as coisas melhorem. Todo mundo canta porque deseja estar, como o samba fala, com a sorte virada para a lua. Não é só a Imperatriz que quer viver com a sorte virada para a lua. É todo mundo. Isso tem a brincadeira do enredo e de alguma forma traz o gostinho da picardia que vai ter na visualidade. O Lampião era jocoso, tinha essa picardia e a cigana também tem”, avalia Leandro.

Cada vez mais entrosado com a comunidade, e entendendo do que o pessoal de Ramos gosta, Leandro Vieira procura produzir visualmente aquilo que acredita que tenha identidade com os componentes que vai vestir. E, de uns tempos para cá, tem se encantado com a voz que vai cantar o carnaval que vai produzir. O artista é só elogios para Pitty de Menezes, enfatizando a importância do intérprete para este processo que a Imperatriz Leopoldinense vive desde antes do título do ano passado, se tornando uma escola mais aberta não só para o mundo do samba, mas, principalmente, para sua própria comunidade.

“Acho o Pitty um arraso em termos de potência vocal. Mas acho que ele não é só um arraso porque ele canta bem. Acho que o Pitty carrega um carisma muito acima da média. Muito acima mesmo. Porque cantar bem tem uma porrada, mas com o carisma que o Pitty tem, são poucos. Juntou tudo, as coisas quando tem que dar certo, dão certo de qualquer maneira. Juntou a Imperatriz que deseja carisma, acabou encontrando no momento em que uma voz muito carismática, além de potente, se encontrou com a escola. Para mim é maravilhoso viver o tempo em que o Pitty de Menezes canta na Imperatriz, que o Loló comanda a bateria e que eu estou assinando a produção visual. Fico feliz de participar, de vestir a mesma camisa para entrar em campo com esse time, porque são dois craques”.

Carnaval acontece na Avenida

Sobre mais detalhes do desfile, o carnavalesco procura não entregar muita coisa. Leandro é adepto da ideia de que o carnaval só se expressa em sua totalidade na Marquês de Sapucaí. Por isso, o artista busca não revelar muito como a escola vai pisar na Sapucaí já na manhã de segunda-feira, para não encorajar julgamentos antecipados.

“Acho que as coisas acontecem muito no dia. O falar e o mostrar no desfile da escola de samba ele se caracteriza enquanto manifestação artística e espetáculo com uma característica muito particular. Ele só se apresenta na totalidade no dia. Qualquer coisa diferente da totalidade, é pré-julgamento. A alegoria no barracão é uma coisa. A alegoria na concentração de manhã é uma segunda coisa. A alegoria na concentração iluminada à noite é uma terceira coisa. A alegoria iluminada a noite com as composições em cima é uma quarta coisa e a alegoria em desfile é uma quinta coisa. Isso ocorre da mesma forma quando o componente está no ensaio técnico de calça branca e blusa do enredo, o ensaio é uma coisa. No desfile oficial, quando as mesmas pessoas que uma semana antes, quinze dias antes passaram de calça branca e blusa do enredo, quando eles passam fantasiado, eles já não são mais a mesma coisa que eles eram. O que eu disser para você sobre a quantidade de alegorias ou quantidade de alas, ou o que representa o primeiro, o segundo, o terceiro ou quarto setor dito é uma coisa, no dia do desfile é uma segunda coisa, uma coisa completamente diferente. É uma característica do desfile das escolas de samba, só existir a totalidade , e que será a totalidade que será julgada, porque o júri não tem acesso a material antecipado. Ele vê no desfile o que julga. É no dia do desfile que o trabalho se apresenta no todo”, define o artista.

O carnavalesco entende a importância dos ensaios, mas acredita que jogo é jogo e treino é treino, e isso no carnaval é uma máxima que se dá de forma ainda mais certeira. Até porque o time completo das escolas de samba, aí considerando segmentos e comunidade, não consegue treinar com a roupa que “vai entrar em campo”.

“É até um exercício que as pessoas poderiam fazer de entender que o barracão é uma coisa e o desfile é outra, que o samba que é muito cantado de blusa e calça, poderá ser pouco cantado se a fantasia no dia for um figurino que não contribua para a evolução, para o canto, para a liberdade do componente. A fantasia na internet e a fantasia no desfile não existe parâmetro para o que funciona ou não funciona, ou o que é belo no individual e só foi pensado para ser conjunto. No modo geral eu adoro falar sobre carnaval, sobre os enredos, mas não com essa coisa específica que as pessoas criaram como um spoiler e que elas começam a julgar algo que está parado. A fantasia e a alegoria só conseguem ser ‘todas’ no dia. É bacana deixar para o dia”, finaliza o carnavalesco da Imperatriz.

Em busca do décimo título na elite do carnaval carioca, a Imperatriz Leopoldinense vai encerrar a primeira noite de apresentações do Grupo Especial com o enredo “Com a sorte virada para a lua, segundo o testamento da cigana Esmeralda”.