A São Clemente optou por disputar a vaga no Grupo Especial por meio do apelo emocional. A escola promete tocar o coração do público com o enredo “A São Clemente dá voz a quem não tem”, que aborda um assunto sensível e recorrente nos dias atuais: os maus-tratos aos animais de rua. O CARNAVALESCO visitou o barracão e o ateliê da Preta e Amarela para bater um papo com o presidente Renato Almeida Gomes (Renatinho), e com o carnavalesco Mauro Leite, responsável por desenvolver o enredo, que falou sobre o processo de adaptação deste tema tão pertinente na sociedade para a linguagem da avenida.
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“Quando cheguei na escola, o enredo já existia e os compositores já estavam até trabalhando no samba. A partir daí, fiz a minha própria pesquisa com o material que recebi, para criar os carros e as fantasias. Busquei por elementos visuais que conseguissem dar forma a esse texto riquíssimo que me foi entregue, que é sobre a defesa e proteção dos animais de rua contra os maus- tratos dos humanos. Meu trabalho foi tentar traduzir essa mensagem de forma carnavalizada”.
Eternamente, Rosa Magalhães
Mauro chegou na escola por indicação da sua amiga e parceira profissional, a lendária carnavalesca com mais títulos na Sapucaí, Rosa Magalhães, que faleceu aos 77 anos no dia 25 de julho de 2024, em decorrência de um infarto.
“Foi um momento bem complicado. Eu não estava bem de saúde no dia que fui contratado pela escola, que, coincidentemente, foi o mesmo dia que ela faleceu. Fiquei muito feliz por ela ter me indicado, ao mesmo tempo que estava muito chocado com a notícia de sua morte. Tudo isso dificultou o início do meu trabalho, porque convivi com ela esses anos todos, e de repente veio essa mudança na minha vida. Mas acho que o trabalho aqui na escola até me ajudou a passar pelo luto. Eu mergulhei de cabeça e fui levando em frente. Sou eternamente grato por tudo o que vivi e aprendi trabalhando com a Rosa”, desabafou o carnavalesco, emocionado.
Rosa foi a autora do enredo de 2015 da São Clemente, “A Incrível História do Homem que Só Tinha Medo da Matinta Perera, da Tocandira e da Onça Pé de Boi”, que é um dos queridinhos do presidente Renatinho.
“Temos dois enredos que considero gloriosos. ‘Capitães do Asfalto’ nem preciso falar que foi muito bom, mas o enredo da Rosa Magalhães foi um sucesso diferente. São muito interessantes”.
“Capitães do Asfalto”, dos carnavalescos Roberto Costa e Carlinhos de Andrade, foi o enredo de 1987, que trazia a preocupação com os menores abandonados do Brasil, demonstrando que não é de hoje que a escola aborda temáticas sociais e emotivas.
Emoção acima da razão
Mauro Leite considera ter um grande diferencial no seu atual projeto: a capacidade de estimular a criatividade através da sensibilidade.
“Somos a primeira escola do Rio a fazer um enredo sobre cachorros e gatos, o que já nos coloca fora da curva. Pessoalmente, acho esse enredo deve ser elaborado afetivamente. Ele não trata de um assunto intelectual histórico, no qual podemos abrir um livro e tirar todas as informações. Ele também precisa ser sentido. Fala sobre o amor e a proteção aos animais, logo, para desenvolver, fui guiado pelo meu coração. Sou uma pessoa apaixonada por cachorros. Me baseei nesse meu sentimento pessoal e rapidamente entendi que esse era o caminho para montar a narrativa, aproveitando a simpatia que o tema desperta nas pessoas, unida à graça e alegria dos animais. Espero ter conseguido traduzir isso em forma de fantasias e alegorias”.
Gatos e cachorros são os melhores amigos do homem
Apesar do tema falar de maus-tratos aos animais, a escola escolheu dois deles para contar essa história: o cachorro e o gato, também conhecidos como animais domésticos ou “pets”. A decisão foi tomada com o intuito de gerar identificação com o grande público.
“O grande trunfo do nosso desfile é justamente a simpatia dos nossos personagens principais. Todo mundo gosta de cachorros e gatos, e o povo brasileiro, especificamente, adora os vira-latas. Várias pessoas já me falam que ficaram emocionadas com o enredo. Outras disseram que escutaram o samba e ficaram sensibilizadas porque têm pets que já morreram. Todo mundo tem uma história com algum bichinho, por isso seguimos por esse caminho. Não é um enredo intelectual, mas vir com esse diferencial é uma grande vantagem para a nossa escola, que trabalha com a alegria e o envolvimento popular, sempre trazendo narrativas irreverentes”, explica Leite.
“Quando fui apresentar a ideia do enredo, todo mundo queria que falássemos do cavalo Caramelo (que ficou famoso por resistir durante dias em um telhado no período das enchentes no Rio Grande do Sul). Isso quebraria a nossa narrativa. Preferimos focar nos animais que as pessoas têm em casa para chamar a atenção delas para a causa, e está dando certo”, complementa Renatinho.
Sem cavalo Caramelo, mas com cachorro caramelo
Não tem figura melhor para representar os animais de rua do que o vira-lata caramelo. Seja onde formos, encontramos um dele, em todo canto do país. Infelizmente, ele ocupa uma das primeiras posições nas estatísticas dos cães que mais crescem nas ruas, assim como os que mais aparecem em campanhas contra o abandono animal. Por isso, ele foi abraçado pelo nosso povo e ganhou o título não-oficial de mascote do Brasil. É claro que a São Clemente daria o protagonismo para ele no seu desfile.
“O caramelo é um cachorro amado, mas sofrido. Quando o enredo foi montado, pensei no histórico de abandono dele. Com o tempo, ele passou a ser querido. Todo mundo quer adotar um caramelo hoje em dia. O nosso samba o representa como uma figura alegre, que combina muito com a essência do carnaval”, comenta Renatinho, que é apaixonado pelo seu vira-lata Fred.
“O cachorro caramelo é divertido, e traz alegria para quem convive com ele. Um cachorro é sempre um fator de alegria dentro de uma casa. Quando o dono chega, é o cachorro quem o recebe com felicidade, mudando a energia do ambiente. Espero que isso aconteça na avenida também e que consigamos mudar a energia por lá”, acrescenta Mauro.
Altos e baixos
A vontade de emocionar na avenida nem sempre funcionou para a São Clemente. A agremiação permaneceu por 12 anos no Grupo Especial, caindo em 2022, justamente com um enredo que homenageava o humorista Paulo Gustavo, que faleceu em 2021 em decorrência de complicações da Covid-19.
“Nós merecemos este rebaixamento. Aquele não era o momento certo para falar do Paulo Gustavo, que tinha acabado de morrer. Fomos muito frios. Poderíamos ter escolhido outro ídolo já falecido para homenagear, como o Jô Soares, por exemplo, ou o Tim Maia, mas o Paulo não. Além disso, gastamos muito dinheiro porque pensamos que teríamos ajuda da família do homenageado, mas não tivemos. O que tínhamos era muito conteúdo, que foi mal executado no Sambódromo” reconhece Renato.
A importância das cores nas alegorias e fantasias da São Clemente Assim como a maioria das escolas da Série Ouro, a São Clemente também é afetada pelas barreiras financeiras. Com pouca verba liberada para investir nos desfiles, os carnavalescos precisam recorrer a outras alternativas para montar seus carnavais.
“Estamos usando os materiais tradicionais do carnaval e tendo muita dificuldade para achá-los nas lojas. Não encontramos quantidades suficientes do que é necessário para reproduzir o que fizemos nos protótipos, e assim temos que adaptar tudo aos materiais que conseguimos. Mas, fiz um trabalho com base no reaproveitamento de peças que já temos com as cores da escola, que são amarela e preta, pegando o gancho do enredo, que fala bastante do cachorro preto e do caramelo, que tende para um tom de amarelo. Esse é um dos fatores que eu mais aguardo ver traduzido na avenida. Vai ser legal”, explica Mauro Leite, com muito orgulho.
Ele também fala sobre a desigualdade nas condições de trabalho entre as agremiações do Acesso.
“Encontrar formas para driblar a dificuldade financeira faz parte do dia a dia das escolas da Série Ouro. Já estamos acostumados com o dinheiro que chegando só em cima da hora, depois de já termos quase tudo pronto. Esse incêndio que teve agora (na fábrica Maximus Confecções, em Ramos) deixou essa questão bem clara. É difícil para todas as escolas do Grupo de Acesso, mas algumas têm mais possibilidades, como por exemplo, as que têm uma melhor estrutura. Felizmente temos o nosso próprio ateliê no Centro da Cidade e não fomos afetados, mas é difícil”.
Se por um lado Mauro usa a criatividade para superar a limitação financeira, Renatinho aposta no empreendedorismo.
“O dinheiro do Grupo de Acesso saiu agora em janeiro, mas como vocês acham que tocamos durante esses quatro meses que estamos preparando o nosso desfile? Já investi mais de 200 mil reais na escola, sem ter. Eu alugo a nossa quadra e o espaço do ateliê para eventos durante o ano, porque quando acaba o carnaval, esses espaços ficam livres. Me preparo para o que pode vir. Sou inteligente e tenho experiência, e isso é diferente de ser rico. Sou pé no chão. A idade faz isso. O Roberto, meu irmão mais velho, me ensinava muito”.
O líder clementiano aproveitou a conversa para rebater as críticas que vem recebendo da imprensa, que diz que ele não tem mais a mesma vontade de fazer carnaval como antes.
“Estou mais velho, e agora começo a pensar mais nas minhas escolhas. Ainda tenho a mesma empolgação, mas não sou mais aquele Renatinho louco que fazia qualquer coisa. Mas se eu prometer alguma coisa, faço acontecer. Inclusive, quero desfilar”, diz ele com determinação, e garante que o desfile de 2025 será memorável, pois sua escola está vindo com força para brigar pelo título.
“Estamos no caminho certo. Se vamos ser campeões? Não sei e nem quero saber. Não estou focado nisso. O que sei é que faremos um carnaval gigantesco, e espero que as outras escolas também façam, apesar de toda essa tragédia que aconteceu (ele fala sobre o incêndio na Maximus Confecções). A única certeza que tenho é que estou nessa disputa. Já temos fantasias muito bonitas, temos um apelo interessante, nossos componentes são unidos como uma família. Todos entrarão na avenida com vontade de desfilar, como um trem-bala. Parar a São Clemente é impossível. Temos um fanatismo bom, que nos faz ter garra. Mandei aumentar as alas, o som da bateria nos nossos ensaios está infernal (no bom sentido). Nossa comissão de frente está fantástica com a coreografia do David Lima, a harmonia é fera, os carros alegóricos maravilhosos. A São Clemente vem gigante, pois eu não aceito vir mais ou menos. Foram muitos anos no Especial, agora quero voltar a ocupar o espaço que merecemos”.
Conheça o desfile da São Clemente
A São Clemente vem em 2025 com 3 carros alegóricos e 1 tripé na comissão de frente. Mauro Leite, ao CARNAVALESCO, fez a setorização do desfile da escola.
Setor 1: Se chama “o lar da felicidade”, que representa a vida ideal de um animal de estimação, em uma casa boa, sendo bem tratado e amado. Abordamos também o amor dos animais pelos seus donos. E tudo isso com a presença de São Francisco de Assis os amparando.
Setor 2: Neste, mostramos o lado sombrio, que são os maus tratos. Trazemos as pessoas que não dão valor ao amor dos animais e que os deixam com fome, os criam em situação de aprisionamento, dentre outras questões.
Setor 3: Aqui falamos dos protetores dos animais, que são os veterinários, os representantes da legislação e os cuidadores. Falamos um pouquinho também dos moradores de rua que têm cachorros e gatos como amigos, e cuidam deles, mesmo em condições precárias. E por fim, falamos dos santos protetores dos animais, como São Francisco de Assis.