Embalada pelo vice-campeonato, por critério de desempate, no último carnaval, em 2020, com a homenagem ao zelador de santos Joãozinho da Goméia, também desenvolvido pela dupla de carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, a Grande Rio dobrou a aposta para o próximo carnaval e mostrará as diversas faces de Exu na avenida Marquês de Sapucaí. Em busca de desmistificar estigmas que rondam a entidade, a Tricolor de Duque de Caxias quer reforçar sua mensagem contra a intolerância religiosa.

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Foto: Site CARNAVALESCO

“Eu acho que existe uma mensagem grande, que é um grito contra a intolerância religiosa e o que hoje se debate como racismo religioso. Então, cantar Exu na Marquês de Sapucaí, com um corpo desfilante de mais de 3000 pessoas para todo público na Avenida e reverberando em lares do mundo todo é um ato político, por excelência e é um ato de afirmação em defesa das religiões de matriz africana, desse complexo de saberes que o Simas nomeia “afroameríndio”, se a gente pensar na Lélia Gonzalez, a gente pode pensar em “amefricanidades”, que nos ajudam a compreender quem somos enquanto nação, que tantas vezes é reduzida, esquecida e perseguida. Os casos de intolerância religiosa estão aí nos jornais, na ordem do dia. Então, é mais um enredo da Grande Rio, e se engana quem pensa que é o segundo porque a escola já cantava isso lá trás, em “Águas claras para um rei negro”, etc e, mais uma vez, a escola sentindo orgulho de saudar sua ancestralidade, essa divindade tão poderosa, esse complexo de saberes tão poderoso, essa energia tão intensa, em defesa do povo de axé e, para além disso, a mensagens se desdobram, é uma grande defesa da nossa capacidade fazer festa, de ser feliz, de ocupar as ruas, enquanto corpos livres, diversos. O enredo celebra isso, destaca a importância de Exu para as manifestações carnavalescas, para as próprias escolas de samba e é, no meu entendimento, um grande passeio por espaços, por tempos, por cenários que falam muito da nossa humanidade, da nossa capacidade festiva, foliônica. Então, acredito que vai ser algo muito potente nesse sentido.”, afirmou Leonardo Bora.

Além disso, ao apontar a mensagem que a escola pretende passar com o enredo, o outro carnavalesco da Grande Rio, Gabriel Haddad, destaca a importância da energia de Exu e do que classifica como “visão exuzíaca de mundo”.

“São as sete chaves, uma delas é a importância dessa grande energia, do poder desta energia Exuzíaca de mundo, no último setor, na última chave, que é olhar para aqueles que muitas vezes são excluídos do convívio, da sociedade, por serem consideradas loucas, mas na verdade, são grandes pensadores, grandes artistas. Eu acho que essa visão Exuzíaca de mundo, essa mudança na visão, que é, por exemplo, o que Elza Soares propões com Exu na escolas, não é só o ensino de Exu nas escolas, mas sim uma mudança de pensamento em relação ao ensino, ao convívio social e isso passa por Jardelina, como Leonardo falou, Bispo do Rosário, Estamira, quando eles se comunicam com Exu, quando fazem essa conexão, tanto artística quanto filosófica, com essa energia Exuzíaca, essa necessidade de olhar para o outro e pensar nessa comunicação, nessa religação a outra pessoa.”, afirmou.

Escolha do enredo

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Foto: Site CARNAVALESCO

Cada carnavalesco tem seu processo e tempo de tomada de decisão para a escolha de um enredo. No enredo da Grande Rio, como bem à Exu, a tomada de decisão ocorreu na rua, logo após a apuração do desfile vice-campeão de 2020. A partir dali, os carnavalescos encorparam a ideia e pensaram um enredo sobre Exu para a Grande Rio, uma escola da Baixada Fluminense, de Duque de Caxias.

“Exu já aparecia em diversos enredos nossos, desde 2018 na Cubango, passando por 2019 e, de certa forma, já estava em nosso imaginário de pesquisa, eu sou neto de um homem que tinha um terreiro de umbanda dentro de casa e acompanhava isso tudo. Essa energia de Exu já me acompanhava, eu já era encantado com tudo e, no dia da apuração de 2020, quando a gente sentou na rua, em uma encruzilhada, nós conversamos e decidimos que o próximo enredo tinha que ser Exu e, dali em diante, a gente começou a pesquisar, a montar o enredo, já que todo enredo é pensando para uma escola de samba específica, nós começamos a pensar no desfile da Grande Rio, para uma escola de samba de Duque de Caxias e isso gerou o “Fala Majeté”, disse Gabriel Haddad.

“A pesquisa do enredo de 2020, a homenagem a Joãozinho da Goméia, levou a gente a um estudo muito profundo sobre a energia de Exu. Então, o casal de mestre-sala e porta-bandeira vinham expressando o padê de Exu libertador, um poema de Abdias do Nascimento, e a gente reuniu um material muito vasto, que possibilitou que essa idéia se fortaleceu muito e tão logo a apuração terminou, a nossa ideia de fazer um enredo dedicado a Exu, em que Exu fosse o protagonista e não apenas um ponto do enredo, ganhou corpo e a gente já começou a pensar possibilidades narrativas, estéticas”.

As diversas possibilidades de Exu

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Foto: Site CARNAVALESCO

Depois de escolhido o enredo, Bora e Haddad partiram para a pesquisa e montagem da obra sobre Exu. Durante esse processo, os carnavalescos constataram algo que os surpreendeu: o caráter inclassificável e multifacetado da entidade, o que abriu diversas possibilidades estéticas para a parte plástica do desfile da Grande Rio.

“O que mais surpreendeu e surpreende, na verdade, não é uma surpresa, mas é uma constatação. Já era o que a gente vinha pensando e a cada dia se torna mais forte, que é o caráter inclassificável de Exu, o caráter multifacetado dessa entidade, dessa energia, desse conjunto de divindades, porque não tem apenas uma cara, uma forma de se celebrar, cultuar e celebrar, é muito próximo da diversidade humana. É um enredo que, a cada etapa da pesquisa, se desenhava um novo cenário, uma nova possibilidade estética. Nas nossas pesquisas, a gente procura o máximo de interlocutores possíveis, não fica restrito só a livros, internet, filmes, músicas, mas, principalmente, a gente busca o diálogo e as narrativas orais, o que já foi explorado no enredo de 2020. Então, é impressionante como é um enredo que mexe com o imaginário coletivo e que mexe com as pessoas, sejam elas iniciadas na religiões de matriz africanas ou não, é um enredo que não passa de maneira despercebida, de alguma forma, ele afeta e mexe com a visão de todo mundo, algo muito forte e envolvente.”, falou Leonardo Bora.

Além disso, também durante o processo de pesquisa, Bora e Haddad se depararam com diversas obras, de músicos, cineastas, etc, que produziram e produzem diversas coisas acerca de Exu. Com tanto material sendo produzido sobre o enredo, ao montar o desfile da Grande Rio, os artistas agregaram coisas até o último minuto possível.

“É muito interessante ver artistas contemporâneos, de diversas áreas da música, do cinema, passando por Exu. Quantos lançamentos ligados a Exu, como livros, a gente tem hoje a narrativa fortíssima do Simas(Luiz Antonio) e, a cada dia, surge uma nova ideia. E é muito parecido com a pesquisa do Joãozinho da Goméia, em que as coisas foram se agregando até quase o dia do desfile e tem acontecido isso com Exu a todo tempo.”, disse Gabriel Haddad.

“A gente foi percebendo que Exu é um grande tema, uma grande potência para se pensar a contemporaneidade. É uma grande chave, como a gente traz no enredo, para se pensar outras formas de enxergar o mundo, pensar outras formas para sociedade contemporânea, Exu é um complexo de saberes, conjunto de conhecimentos que pode pensar novas pedagogias, como propõe o Luis Rufino, que deve ser cantado e ensinado nas escolas, como cantou Elza Soares e que está ocupando os museus e as galerias e nunca saiu das ruas, dos bares, espaços que sentimos tanta falta ao longo do isolamento social. Então, a gente percebeu aquela obviedade que é fascinante, que é o fato de que Exu está em tudo, é uma energia múltipla, que se desdobra, expande, circula, é movimento, é comunicação e essa conexão com personagens que nos fascinam, que nos interessa muito como narradores, como artistas, que é o caso de Jardelina, Stela do Patrocínio, Bispo do Rosário e Estamira. E, no caso da Estamira, não apenas pela ligação evidente com Duque de Caxias, no antigo lixão de Gramacho, mas por essa proposição de uma nova visão de mundo, de um entendimento de uma nova sociedade, lixo, questionando essa ideias e buscando a possível recriação, uma religação com valores ancestrais a partir da evocação de Exu”, completou Bora.

Desafio de fazer Exu

Oxum, Oxóssi, Iemanjá, Ogum e tantos outros orixás já foram homenageados por diversas escolas nas passarelas do samba. Porém, nenhuma escola ainda havia encarado o desafio de fazer Exu, por toda misticidade por trás da entidade. Na entrevista ao Carnavalesco, Leonardo Bora e Gabriel Haddad falaram sobre esse desafio.

“A gente está tocando em questões muito sensíveis e, em um contexto tão inflamado, onde a gente vê um recrudescimento do conservadorismo, inúmeros casos de perseguição, de demonização, a gente sabe que tem um quê de coragem e ousadia nisso, porém, desde o início, a gente quis e não teve nenhum questionamento por parte da escola, nada nesse sentido, ao contrário, a escola abraçou o enredo, que também era um pedido da escola, continuar na linha de enredos que tocam em religiosidades afro-brasileiras”, disse Bora.

“Ao mesmo tempo que é um desafio, é muito prazeroso, pela descoberta de algo novo a cada dia, um artista que esteja produzindo algo novo sobre Exu e a gente não consegue mais colocar no enredo porque o livro já foi entregue e os jurados já estão lendo, mas é sempre gostoso ver que o enredo que a gente está desenvolvimento, está na boca do povo”, afirmou Haddad.

Eu acho que é um enredo que, no geral, possibilita um processo criativo, seja no texto escrito, no visual, no dia a dia de barracão, muito intenso e ao mesmo tempo, muito festivo. É interessante que, às vezes, e isso é um resquício do preconceito e do racismo religioso, a gente escuta que o enredo da Grande Rio é pesado e, no dia a dia de trabalho, barracão, ensaios na quadra, na rua, essas mesmas pessoas falam que, ao mesmo tempo, está tudo tão leve, o trabalho está leve, o clima está leve, a escola está feliz e, aí, a conta não fecha, como a coisa é pesada e leve ao mesmo tempo? Tudo bem que Exu também é ambiguidade, dualidade, é essa dança de opostos, mas o que está por trás dessa noção de peso? Isso é uma coisa que a gente tem questionado muito. É um enredo denso, complexo e, ao mesmo tempo, muito simples. Eu tenho certeza que qualquer espectador, na Sapucaí, em casa ou em qualquer lugar do mundo, vai se identificar com o que vai passar na avenida e é também muito intenso, esse talvez seja um trunfo da escola, é um enredo que nos leva para uma linguagem, uma estética e uma proposta cromática de mais impacto que o Tata Londirá, afinal de contas, é a energia de Exu. Não tem como desenvolver visualmente na avenida, um Exu sem buscar uma linguagem que seja pura energia, que seja uma dose de energia ali na avenida, seria um pouco incoerente com tudo aquilo que a gente tem aprendido com os saberes que envolve essas entidade”, completou Bora.

Trunfos

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Foto: Site CARNAVALESCO

Para buscar o décimo que foi perdido no carnaval de 2020, a Grande Rio não tem um único trunfo, mas sim diversos trunfos. Para os carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, além do enredo, o samba, a comissão de frente, o casal e a força da comunidade também serão trunfos da Tricolor da Baixada em 2022.

“O primeiro trunfo eu acho que é Exu de enredo, é Exu puxando o desfile da escola, o grande samba que a escola escolheu, eu acho que o trunfo é esse, o enredo escolhido, que teve uma aceitação incrível dentro da própria escola e, com essa aceitação, a gente já imagina um grande samba, a comunidade comprando esse barulho do desfile, de entrar com garra, os ensaios têm sido incríveis. Então, eu acho que o trunfo do desfile é a escolha do enredo, que levou a um grande samba e, hoje, a comunidade compra e canta a plenos pulmões.”, afirmou Gabriel Haddad.

“O samba é um grande trunfo, uma comissão de frente muito afinada, competente, que tem uma coerência, do Hélio e da Beth Bejani, admirável, um casal de mestre-sala e porta-bandeira, o Daniel e Thaciane, que está voando e o que diz respeito ao nosso trabalho específico, a gente confia muito no trabalho plástico, a gente entende que será um desfile com uma dose de experimentação, de provocação mais acentuada que o Tata Londirá, então, a gente está dobrando a aposta nesse sentido para esse próximo carnaval, é um carnaval muito diferente do que se imagina. Eu acho que são alguns trunfos que podem gerar um bom jogo, já que Exu também rege os jogos, também é o senhor da sorte. Eu acho que também é um grande trunfo essa mensagem que a gente quer passar, a questão da intolerância religiosa, a importância de se cantar Exu e desmistificação dos estereótipos negativos geralmente atribuídos a essa entidade, que é óbvio que tem a ver com o processo colonial e de estruturação da nossa sociedade, extremamente racista. Se o enredo conseguir desconstruir esse estereótipo negativo para essas pessoas que estão vendo, vivendo e vibrando, ao som de um samba profundamente festivo, entendo aquele visual, se entregando, porque o desfile é o todo, a gente espera que tudo se integre e funcione na hora, que a gente tem certeza que a comunidade caxiense fará um grande espetáculo”, disse Bora.

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Entenda o desfile

A Acadêmicos do Grande Rio contará o enredo “Fala Majeté! As sete chaves de Exu” através de cinco alegorias e dois tripés, com um corpo desfilante de aproximadamente 3.200 componentes. No desfile, cada setor representará uma das “sete chaves de Exu”.

Abertura/Primeira chave: “Mar de dendê, a grande encruzilhada, que é o oceano atlântico e o quanto esse cruzo de saberes, essa potência de Exu, essa força dessas diversas energias de Exu, porque, em África são diversas energias, não tem uma só energia poderosa Exuzíaca e a vinda dessa energia cruzando a maior encruzilhada do mundo, que é o oceano Atlântico, que, para Exu, é o mar de dendê”, disse Haddad.

“É uma abertura em movimento, em trânsito e em transe, que pensa nessa ideia de encruzilhada, de cruzos culturais, de atravessamentos. É uma abertura descolada da realidade, é uma leitura muito intensa, poética, dessa vinda, de todo esse complexo Exuzíaco, de diversos Exus africanos, que vão se espraiar no Brasil”, declarou Bora.

Segundo setor/chave: “Exu enquanto símbolo de liberdade/corpo coletivo, que se materializa na leitura do Alberto Mussi e da Conceição Evaristo, no mito de Zumbi dos Palmares, que mais do que uma pessoa, é uma ideia, que se organiza e Exu se torna um símbolo de liberdade e resistência”, disse Bora.

Terceiro setor: “Mostra a energia Exuzíaca, já espraiada no Brasil, se manifestando no espaço de troca dos mercados, das feiras, nesses lugares para onde se vai, não apenas para adquirir um produto no sentido capitalista, mas pra se trocar saberes, conhecimentos, histórias e memórias. Para se preparar o padê, que é oferecido a Exu, se vai à uma feira comprar os produtos. Então, é um setor que vai falar desse terreiro,que também é mercado e do mercado, que também é terreiro. Esses espaços se misturam e também expressa essas cruzas culturais”, comentou Bora.

Quarto setor: “Depois dessa afirmação do candomblé enquanto uma religião afro brasileira, a gente vem pensando nas macumbas cariocas, nas umbandas, nas religiões afro brasileiras do nordeste, que fazem esse cruzo, já na manifestação dos Exus-catiço, que é o que mais se aproxima do imaginário popular em nosso enredo. Então, a gente vai ter homenagem ao povo da calunga pequena, Seu Tranca-Rua, Maria Padilha, a Pomba-Gira cigana e tudo mais que está no refrão do meio do samba da Grande Rio”, disse Haddad.

Quinto setor: “É esse povo que pensou essas religiões, pensou umbanda, candomblé e todas as outras religiões que têm Exu como fundamento. A gente apresenta as festas, o que é o povo brasileiro sem festejar? Então, são festas relacionadas a Exu e a essa energia poderosa das ruas. A gente vai desde o maracatu, passando pelas festas populares como os mascarados, os bate-bolas, o bloco Seu sete da Lira, que o Exu rei da Lira puxava um bloco de carnaval, incorporado, no centro do Rio, até uma homenagem a João 30, que foi um dos que levou Exu para avenida em 89, ao surdo de terceiro, que faz a comunicação entre o surdo de primeira e o de segunda”, disse Haddad.

Sexto setor: “Saúda Exu enquanto a “boca que tudo come”. Então, a gente mostra nesse setor, o quanto esse complexo de saberes e essa divindade foram assimilados por artistas e transformados em música, literatura, pintura. Então, nós vamos exaltar figuras como Jorge Amado, que tinha como símbolo da fundação de sua casa um Exu do Caribé e criou uma revista chamada Exu e falava que Exu planta em suas antenas. É nesse setor que a gente saúda a importância de Elza Soares cantar Exu nas escolas e vamos falar de uma série de artistas contemporâneos que estão pensando Exu, ocupando os museus com Exu. A gente falando do texto profundamente Exuzíaco, não à toa o símbolo dele é o infinito, de Grande Sertão Veredas e o samba canta “É poesia na escola e no sertão”, romance esse que nos ajuda pensar a energia de Exu. É um setor que pretende reverberar essa mensagem de Exu para todo cosmo”, disse Bora.

Sétimo setor: “Depois de festejar no terreiro, ocupar as ruas nas noites da Lapa, brincar carnaval e comunicar os saberes para todo mundo, a gente pensa essa ideia de lixo, a linha do lixo é muito comum nas umbandas, todo mundo conhece Maria-Farrapo, Maria-Mulambo e a gente pensa no poder dessa visão Exuzíaca de mundo para pensar”, finalizou Bora.

 

 

 

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