Por Diogo Sampaio
Camisa 10 do Brasil. Seis vezes melhor do mundo. Maior número de gols em Copas do Mundo e na Seleção Brasileira. Não é a toa que Marta Vieira da Silva, ou simplesmente Marta, é a “Rainha do Futebol”. A história da menina que deixou o sertão nordestino para conquistar os gramados do mundo, superando a pobreza e o preconceito, é o enredo da Inocentes de Belford Roxo para o carnaval 2020.
“Marta do Brasil – Chorar no começo para sorrir no fim” conta com a assinatura de Jorge Caribé que, após doze anos, retorna a Caçulinha da Baixada com um enredo e uma estética fora dos seus padrões, muito ligados a temática negra e ao uso de materiais alternativos. Para o site CARNAVALESCO, o artista contou como está sendo essa experiência:
“Saí da minha zona de conforto para assumir esse carnaval, que para mim também é novidade. Até eu estou doido para chegar o dia e vê se tudo deu certo, porque nunca tinha feito um enredo assim, sobre jogador de futebol ou ligado a esse universo. Mas a gente está levando numa boa, faltam três semanas para chegar o dia do desfile, como todas as escolas esse ano, não só dá Série A, estamos passando dificuldades financeiras, mas fazendo um carnaval digno, arrumadinho, direito. Por não ser nenhum carnaval africano, eu não consegui fazer a minha ‘xepa’: pegar uma escultura aqui, outra ali. Então, o presidente teve de se desdobrar, porque é tudo novo. Não teve nenhuma escola ano passado que falou de nada perto do nosso assunto, que eu pudesse pegar uma bola ou uma chuteira ou uma trave. Tudo foi construído a partir do zero. Muitas pessoas podem até não entender: ‘Estão sem dinheiro e colocando um carnaval desses?’. Mas vamos passar com dignidade, bonitos para brigar pela tabela de cima. Estou confiante!”, garantiu.
Acerca do desenvolvimento do enredo, Caribé afirmou não ter encontrado dificuldades. Ele ainda destacou que abordará não só a carreira futebolística de Marta, mas também sua trajetória de vida.
“É um enredo fácil, porque ela é uma pessoa de domínio público, e a história dela não é nada diferente da de qualquer outro brasileiro. Então, não foi preciso viajar para terra dela e nem nada do tipo. Até porque não estamos falando só do futebol, mas da vida dela: como menina, lá na cidade de Dois Riachos, quando ela já sonhava em ser uma grande jogadora de futebol no futuro… Tanto que a nossa abertura, muita gente vai estranhar, pensando que já vem bola, mas é o Nordeste. São carros de boi e outros elementos que ela convivia na infância. Dois Riachos é uma cidade conhecida por feira de venda de gado e cavalo, e ela era carroceira, que lá se chamava de carroça: era a pessoa que trabalhava na feira com carrinho para levar a bolsa das pessoas para casa, que descarregava caminhão de feijão… Tudo isso vem no carro abre-alas que é um sol inclemente, um sol escaldante, o sol de sertão. Nesse carro também vêm o ônibus, que é o ônibus que ela conseguiu juntar um dinheirinho e vir de Dois Riachos para o Rio de Janeiro. Chegando ao Rio, já tinha entrevista marcada no Vasco e no Fluminense. Não precisou, fazer no segundo, porque ela já no Vasco ficou. E aí a gente começa a contar a história dela, toda carreira profissional, como ela fez para lidar com esses times longe da realidade dela, até que ela consegue viajar pra fora do país e enfim… É escolhida seis vezes a melhor jogadora de futebol do mundo, ganhou a Prêmio Bola de Ouro, embaixadora da ONU… Aí vem toda uma história dela profissional, tudo entrelaçado com o futebol”, explicou.
Caribé faz questão de enfatizar que o desfile irá além de uma simples biografia ou homenagem a uma jogadora de futebol. Para ele, a vida de Marta serve como exemplo para falar e exaltar tantas outras mulheres do dia a dia.
“Na verdade, a Inocentes aceita fazer esse carnaval com o objetivo de falar de várias mulheres brasileiras, das mulheres empreendedoras, das mulheres guerreiras. Quem não tem uma na sua família? Quem não tem uma na sua vizinhança? Então resolvemos eleger a Marta, por ela ser um retrato de uma brasileira que emoldurou o Brasil, fora do Brasil. Ela é retrato da nossa história, é de uma família humilde, de uma mãe honesta, de uma mãe guerreira. Se tornou uma mulher vencedora, empreendedora, realizou o sonho dela, sustenta a mãe. A Marta nada mais é do que a xerox de vários rostos, de várias personalidades que a gente talvez conheça. Por isso resolvemos falar dela, não só da Marta jogadora de futebol, óbvio que foi através do futebol que ela ficou mundialmente conhecida, mas é pra falar dessa Marta guerreira, dessa Marta mulher, discriminada… A mulher em si, pela história, ela já é sempre diminuída diante do homem. Como ela mesmo fala: Por que os jogadores masculinos tem um salário bem acima do que as mulheres?”, apontou.
‘Pular com gato duro ou fazer um chute com dinheiro?’, indaga carnavalesco
Em abril do ano passado, a tricolor de Belford Roxo contratou Caribé como seu novo carnavalesco e, na ocasião, anunciou o enredo “O pulo do gato” para o carnaval de 2020. No entanto, três meses depois, a agremiação surpreendeu ao comunicar uma mudança de planos, decidindo levar para Marquês de Sapucaí uma homenagem à Marta.
Durante conversa com site CARNAVALESCO, o artista discorreu como foi o processo da troca de enredos e como surgiu a proposta de se falar sobre a jogadora. De acordo com ele, apesar das expectativas de patrocínio, não houve nenhuma ajuda de custo ao desfile, até o momento.
“Primeiro eu vim pra cá e fui contratado pra fazer um enredo meu, autoral. Estava quase tudo já desenvolvido, entregue inclusive, e aí houve essa proposta de um amigo de um amigo do presidente e de um rapaz que é até intérprete da escola, o Tem Tem. Trouxeram essa proposta e, como sempre, veio com promessas de patrocínios milionários. E aí, tem gente que fala: ‘Caribé, você trocou o teu enredo que era maravilhoso…’. O que é melhor: pular com gato duro ou fazer um chute com dinheiro? Claro que ia aceitar! E mesmo que eu não aceitasse, o presidente já tinha. Só que até agora, faltando duas semanas praticamente, eu não vi nenhum centavo. Eu não vi entrar aqui nada. Não vi um patrocínio, um ajuda, absolutamente nada. Só se esse dinheiro ainda vai chegar, igual aquele que o prefeito do Rio está prometendo para as escolas da Intendente. De repente, vai chegar faltando 24h. Mas aqui, até agora, não tem patrocínio. Mas é aquela história: já caiu, já estamos, por ela, que merece todos os aplausos, e a gente tá dando o nosso jeito. De certeza, só temos a presença dela, confirmadíssima. Vem ela, vem a mãe dela, vem umas amigas de futebol feminino… E posso dizer que ela está envaidecida e muito emocionada. Há de se ver isso quando ela chegou no aeroporto. A escola estava lá, esperando ela que cantou, sambou, tocou cavaquinho, chorou. Ela de vez em quando manda vídeo para o presidente. Falou que vai chegar uns dias antes do carnaval pra gente comemorar o aniversário dela na Sapucaí. Enfim, para escola de samba, como eu aprendi lá atrás com os professores, qualquer coisa, qualquer assunto, qualquer pessoa, qualquer história, dá enredo. Basta você ter competência pra fazer. Então a gente está feliz. Agora a Marta é nossa. Vamos tentar fazer um gol junto com ela”, afirmou.
Como vem a Marta?
Questionado pela reportagem sobre como e aonde virá a grande homenageada do desfile, Caribé resolveu fazer mistério quanto ao local. Mas, em compensação, adiantou como ela estará vestida: “Ela vem de Marta. Eu não posso botar uma fantasia nela, se não está arriscado dela passar e ninguém reconhecer. Não posso colocar a Marta com vestido longo. Ela tem que vir com roupa de jogadora de futebol”, argumentou.
Estéticas fora dos padrões, mas com toques característicos
Segundo Caribé, as referências ao universo do futebol estarão fortemente presentes na plástica da escola, em 2020. Em meio a isso, o uso de materiais alternativos e incomuns, característicos do carnavalesco, também poderá ser visto no trabalho, entretanto, em menor escala que o habitual.
“Tem algumas coisas que a gente está inovando, vamos dizer assim, mudando essa estética tradicional do carnaval ao falar de temas ligados ao futebol. Como não tem grana pra você encher os carros de esculturas, de neon e coisas holográficas, eu tenho esse dom também de buscar elementos fora carnaval, de buscar coisas inusitadas e soluções baratas. Então, tenho um carro que vem com oito mil bolas de futebol de verdade, que vão se transformar em decoração. Nós vamos fazer elementos com essas bolas. E o restante, não tem como sair desse clichê, porque o futebol é uma coisa meio engessada. Você tem que ter bolas, tem que ter chuteira, tem que ter campo de futebol, tem que ter trave, senão corre o risco de não conseguir passar a mensagem. Então, não é que não saiu da linha dos outros homenageados, mas tanto Ronaldinho, como o Zico, e agora a Marta, é o mesmo mundo. O que diferencia é que no do Zico falou do galo, e no dela vai falar do Nordeste. Essa coisa muda um pouco a visão do futebol por inteiro no desfile, mas as coisas que vão falar de futebol vão ter elementos de futebol, inevitavelmente”, disse.
Outra mudança no trabalho de Caribé este ano, em comparação aos últimos, está na paleta de cores empregada. Os tons amarronzados e escuros, muito utilizados nos desfiles de temática africana, dão lugar a uma vasta gama de cores mais vibrantes.
“Escola vem bem colorida. Primeiro que a cor da escola já ajuda, que é azul, vermelho e branco. Você já pode desmembrar isso em vários tons. E tem muito verde amarelo, porque é Brasil. A gente também tem alas que vão homenagear os países e os times aonde a Marta jogou, então cada um já vem com uma cor. Abrimos com um carnaval nordestino que vem com tons terrosos, afinal para você falar da seca lá de Dois Riachos tem que ter marrom, bege, laranja… É uma escola que está setorizada com muitas cores”, assegurou Caribé.
Já a volumetria e o gigantismo dos carros, que também são marcas do carnavalesco, ganham ainda mais destaque no trabalho atual: “Nosso abre-alas tem 62m de comprimento, estamos quase finalizando ele. São chassis bem grandes, tem avancê… Apesar de agora o limite serem três carros, a gente vai com quatro porque é permitido no abre-alas colocar acoplamento”, revelou. “Eu tento seguir essa linha de carros grandiosos, rico em detalhes, e estou conseguindo manter isso este ano. Mesmo não tendo dinheiro, dá pra gente caprichar. E eu vou levar o resultado pra Avenida com orgulho”, completou o artista.
‘Não me preocupo muito com o resultado’, diz Caribé
Após a breve passagem pelo Grupo Especial em 2013, a Inocentes de Belford Roxo fez uma série de desfiles irregulares e acumulou resultados intermediários na Série A, sendo o quarto lugar, em 2018, sua maior colocação desde então. Em contrapartida, Jorge Caribé vive um momento de ascensão. No carnaval passado, seu trabalho no Império da Tijuca, junto com o de Tarcísio Zanon na campeã Estácio de Sá, foram os únicos a alcançar os 40 pontos dos jurados no quesito Alegorias e Adereços.
“Esse ano fazem 20 anos que eu assino como carnavalesco. Eu tenho que me preocupar com a minha parte. Esse ano, em que estão muito mais difícil de se fazer, estou preocupado em botar as alegorias, as fantasias na rua. Negócio de nota, de posição, se é justo quando ganha, se não é justo quando perde, se fica mal colocada, isso a gente sabe que é uma coisa além das nossas forças. Claro que cada vez que tenho um campeonato ou que sou vice, fico feliz da minha vida. Óbvio que não gosto de ficar em nono ou décimo. Mas isso é mais preocupante para o presidente, porque ele está fazendo a história dele. Às vezes você está em uma escola e ela foi campeã, mas seu trabalho não tem reconhecimento. Às vezes, você fez uma escola e ela foi mal colocada, mas alguém reconheceu o seu trabalho. Então, não me preocupo muito com o resultado. A gente sabe que tem muita coisa que envolve até a hora do desfile. É realmente uma questão de logística, como escutei uns anos atrás. Aí, não é comigo. Eu quero botar na rua, chegar inteiro na concentração, passar bonito na Avenida, para alguém falar: ‘Poxa, bacana. Caribé se superou, falou de Marta e tal…’. Isso que eu quero pra mim e desejar boa sorte para Inocentes, é claro”, pontuou Caribé.
Entenda o desfile
A Inocentes de Belford Roxo será a segunda escola a desfilar no sábado de carnaval. A agremiação levará para Marquês de Sapucaí uma média de 1800 a 2000 componentes. Ao todo, serão 22 alas, três alegorias, sendo o abre-alas acoplado, um tripé e um elemento cenográfico na comissão de frente.
Apesar das mudanças no regulamento da Série A, a apresentação da Caçulinha da Baixada está divida em quatro setores. O carnavalesco Jorge Caribé justificou: “Você pode até tirar o carro, mas não tem como tirar os componentes. Então, a gente segue mais ou menos nessa linha: nascimento, início de vida e sonho; realidade; seus prêmios e suas conquistas; terminando com suas vontades futuras”.
Setor 1: “O primeiro setor é o Nordeste, é a cidade de Dois Riachos, e fala exatamente sobre tudo isso que ela passou na infância”.
Setor 2: “O segundo setor já é a vinda e a chegada dela ao Rio de Janeiro, o encontro com a profissionalização do futebol. Ela agora deixa de ser a Marta pra virar a jogadora Marta”.
Setor 3: “A gente vem falando sobre tudo isso que ela galgou e superou até chegar no terceiro setor, que já são as vitórias conquistadas, os prêmios, tudo que ela conseguiu adquirir”.
Setor 4: “O final da nossa escola é uma grande apoteose brasileira, em verde e amarelo. Uma festa para ela, que é uma representante fiel do nosso esporte e dessa mulher empreendedora”.