Por Diogo Sampaio
Líder abolicionista, defensor da República, escritor expoente do romantismo, jornalista, rábula, maçom. Luiz Gama foi um dos raros intelectuais negros do Brasil no século XIX. Baiano de nascença, filho de um fidalgo português com uma negra liberta. Aos dez anos, foi vendido como escravo pelo próprio pai, como forma de quitar uma dívida de jogo. A liberdade, porém, veio aos 17. Autodidata, estudou Direito e usando as palavras frias da lei, conseguiu a alforria de centenas de cativos, sem cobrar nada por isso. Morreu ainda novo, aos 52 anos, vítima das complicações de uma diabetes. Entretanto, seu legado permanece vivo até hoje.
No carnaval de 2020, a Acadêmicos do Cubango resgata sua identidade, tão ligada as raízes negras e africanas, e reverencia a história de Luiz Gama através do enredo “A Voz da Liberdade”. Assinado pela dupla de carnavalescos Alexandre Rangel e Raphael Torres, estreantes na agremiação niteroiense, a homenagem a Gama será pautada em uma carta autobiográfica enviada por ele para o escritor e jornalista carioca Lúcio de Mendonça, em 1880.
“Durante a pesquisa, vimos que precisávamos seguir uma linha histórica que falasse desde os ancestrais até a homenagem propriamente. Por isso, a gente baseou o nosso enredo na carta que o Luiz Gama fez e começou a encaixar a história dele com a da mãe, que ele narra na carta. Então, colocamos a Revolta dos Malês e a Sabinada, movimentos os quais a mãe dele teve participação e devido a eles teve que deixar Luis Gama com o pai, que era viciado em jogo e vendeu o filho para ser escravizado. Então assim, todo contexto da história, bate com a história fora da carta. As únicas coisas fora dela que a gente acrescentou no enredo foi o trabalho dele ao qual libertava os escravos e o nosso encerramento, que é justamente com uma grande homenagem a ele por ter sido rábula. Afinal, só mais de 130 anos depois da sua morte que ele recebeu da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) o reconhecimento como advogado”, relatou Raphael Torres para reportagem do site CARNAVALESCO.
Anteriormente a essa homenagem da Cubango para Luiz Gama, a Alegria da Zona Sul havia feito, em 2018, o enredo “Bravos Malês! A Saga de Luiza Mahin”, contado a história de Luiza Mahin, mãe de Gama, também pela Série A. Porém, Raphael refuta qualquer similaridade entre os dois trabalhos e frisa que Mahin está restrita a um único momento do desfile da verde e branca.
“Luiza Mahin tem que entrar no desfile porque o contexto do enredo é todo em cima da carta de Gama em que ele cita a mãe. Mas, ela entra apenas em uma alegoria para representar a Revolta dos Malês. Ela não caminha até o final no enredo. É só uma passagem. Nem chega a ser um setor. Só no segundo carro que tem uma escultura representando ela”, destacou.
Resgate de identidade
O enredo sobre Luiz Gama tratou-se de uma proposta da própria dupla de carnavalescos, que apresentou o projeto para direção da escola, logo após a contratação. Segundo Raphael Torres, na época, outras duas opções, todas elas autorais, foram avaliadas, mas a homenagem ao herói negro foi a grande escolhida.
“Como a gente trabalha muito com enredo cultural, nós já tínhamos esse enredo guardado para alguma possível escola. Quando a gente foi contratado, o presidente pediu para apresentar três ideias e dessas escolheu Luiz Gama. Destas três propostas, uma apenas não era afro e o presidente descartou. A outra, nós guardamos para um futuro. A Cubango é uma escola que tem essa pegada negra, africana, então acho que se encaixou o nosso trabalho com o trabalho da escola”, declarou.
Porém, não será apenas o enredo que fará jus a identidade histórica da Cubango. O gigantismo das alegorias, o uso de muitas esculturas, que são característicos da escola, mas também da dupla de carnavalescos, serão marca do desfile de 2020.
“A Acadêmicos do Cubango é uma escola que gosta muito dessa estética africana. Gosta de falar do negro, de falar sobre a história do negro, então essa escolha casou. E eu acho que cada carnavalesco tem sua característica. A gente vai falar de África, mas dentro da nossa característica de falar de África. Nós estamos falando de África, mas de uma forma limpa, uma coisa bem moderna”, antecipou Alexandre Rangel.
“Vai ser uma Cubango com bastante escultura e volume. A gente quis fazer esse tipo de trabalho aqui, grandioso, justamente porque a escola veio de um vice-campeonato, então a gente teve que dar uma aumentada nos carros, nas esculturas. Não vai vir uma Cubango cenográfica, vai vir carnavalizada mesmo. Leve, mas requintada. Graças a Deus a gente teve condições de colocar um setor inteiro da escola com plumas. Vai ter requinte, tanto nas fantasias, quanto nas alegorias”, complementou Torres.
Pressão para continuar ascendendo
Anunciados como os novos carnavalescos da Cubango em junho do ano passado, Alexandre Rangel e Raphael Torres terão a missão de manter a trajetória de ascensão da agremiação, que ano passado teve a melhor colocação de sua história, ao ficar com vice-campeonato da Série A. Porém, para a reportagem do site CARNAVALESCO, a dupla assegurou não se intimidar com o desafio.
“A gente não trabalha com pressão, mas sabemos que é uma escola que foi vice campeã. Estamos fazendo o trabalho com o intuito de fazer o melhor, pela Cubango, pelo carnaval, independente de pressão. Não ficamos nos comparando com ninguém. A gente está fazendo um trabalho que a gente tem que fazer, que a gente sempre fez”, defendeu Torres.
“O mesmo trabalho que a gente está fazendo por amor aqui na Cubango, nós estávamos fazendo na Renascer de Jacarepaguá também. Então, quando você faz carnaval, óbvio, o lado financeiro tem que partir, mas se você não trabalha com amor, as coisas não vão fluírem. Então, tem que ter o carinho, tem que ter a dedicação ao projeto. Quando você se dedica, você se empenha e tudo acontece”, completou Rangel.
Apoio em meio a crise do carnaval
Em um ano de profunda crise financeira na folia carioca, devido ao corte completo do repasse de verbas da Prefeitura do Rio para as agremiações do Grupo Especial e da Série A, a Cubango consegue respirar um pouco mais aliviada. A verde e branca de Niterói, assim com a Viradouro e o Sossego, conta com um aporte financeiro vindo da administração municipal da “cidade sorriso”. Estima-se que, sozinha, a escola receberá R$ 1,8 milhão de ajuda total.
“Aqui a gente tem uma subvenção, graças a Deus, mas não temos aquela questão de trabalhar só em cima disso. Estamos trabalhando com reciclagem também, para tentar adequar esse valor que a gente tem para tentar construir nosso carnaval”, frisou Raphael.
“A gente não veio só dá Renascer de Jacarepaguá, a gente é cria da Intendente Magalhães. Tenho muito orgulho de ser da Intendente, porque se hoje eu estou na Cubango, galgamos todos os grupos, ganhamos todas as premiações que poderíamos ganhar no carnaval também, e hoje em dia temos, o presente de realizar o carnaval da Cubango. Então, para gente, dificuldade no carnaval sempre teve e sempre vai acontecer. O artista é contratado para isso. Daí que sai o verdadeiro artista do carnaval. A gente trabalhar onde não tem. Se tiver, é tentar melhorar as coisas, conforme o andar da escola”, declarou Alexandre em seguida.
Mudanças no regulamento
A Acadêmicos do Cubango levará para Marquês de Sapucaí, no carnaval de 2020, aproximadamente 2300 componentes, espalhados por 22 alas, três alegorias (sendo o abre-alas acoplado) e um tripé. De acordo com Raphael Torres, o projeto inicial da escola precisou sofrer alterações após as mudanças no regulamento da Série A, que entre outras medidas, reduziu o número máximo de carros permitido. Todavia, a setorização do desfile permaneceu a mesma.
“A gente vai com quatro setores, sendo que invés de ter o carro, a gente colocou o tripé no lugar. Tivemos que tirar uma alegoria, mas infelizmente tem que ser assim, a gente tem que seguir o regulamento. Mas poderia ser os quatro carros, que seria mais uma alegoria gigantesca que a gente ia apresentar. Infelizmente, não depende só da gente”, afirmou Torres.
Segundo Alexandre Rangel, as mudanças no regulamento pegaram a dupla de surpresa. Porém, o que já havia sido projetado não foi descartado e sim transformado ou adaptado.
“Quando a gente recebeu a notícia, algumas esculturas que a gente já tinha começado a desenhar, ao invés de riscá-las, utilizamos de outra forma. Porque a gente ia utilizar cinco alegorias e pedir autorização para levar mais um tripé. E aí, com essa mudança no regulamento, a gente tirou a alegoria e ficou aquele tripé, que justamente vai ser nosso encerramento do terceiro setor. Estamos acreditando muito nesse tripé”, revelou Rangel.
Entenda o desfile
Para reportagem do site CARNAVALESCO, Raphael Torres resumiu como será essa divisão do enredo “A Voz da Liberdade”, que irá narrar a trajetória de Luiz Gama. A verde e branca de Niterói será a quinta agremiação a se apresentar na sexta-feira de carnaval, primeiro dia de desfiles da Série A.
Setor 1: “O primeiro setor vem abordando os ancestrais de Luiza Mahin e Luiz Gama. Então, a gente vai iniciar o desfile lá no Reino de Benin, na África”.
Setor 2: “Abrimos o segundo setor com a chegada dos negros escravizados e vamos fechar com a Revolta dos Malês, que foi um fator principal para que Luis Gama fosse escravizado”.
Setor 3: “A partir daí, entramos para o terceiro setor que traz justamente o nosso tripé, que vai falar sobre o trabalho escravo”.
Setor 4: “No quarto e último setor, já vamos falar do Luiz Gama advogado, escritor, jornalista. O último carro é uma grande homenagem a ele, no qual vamos ter o ator Déo Garcez como Luiz Gama. Nesse carro vamos ter também diversas personalidades negras, como jornalistas, desembargadores, juízes, advogados, dentre outras áreas”.