Por Gabriella Souza
A Viradouro vem desde 2018 em uma ascensão impressionante quando em sua retomada ao Especial conquistou o vice-campeonato de 2019. Na busca do título em 2020 a vermelho e branco representará a cultura, história de vida e trabalho das ganhadeiras de Itapuã, que como contam os carnavalescos Tarcísio Zanon e Marcus Ferreira, são reconhecidas como as primeiras feministas do Brasil.
“As ganhadeiras se autodenominam como as primeiras feministas do Brasil, porque no período do século XVIII ao XIX elas enriqueceram muito e conseguiram dominar o comércio entre Itapuã e Salvador. Essas mulheres andavam 50 km por dia na areia para vender os seus produtos e conseguir o pecúlio, que era a forma de ganho que se tinha na época, e para assim conquistar sua alforria, de suas parceiras e familiares. Elas conseguiram alforriar muitas pessoas e a ponto de, no período, o governo começar a se preocupar com esses ganhos expressivos. Com isso, foi feita a poupança da Caixa Econômica Federal justamente por conta delas, para que se pudesse controlar as finanças dessas mulheres”, conta Zanon.
Para ditar o ritmo de seus árduos trabalhos, as ganhadeiras e lavadeiras entoam cantos que carregam como cultura particular desde de suas ancestrais, que o cantavam à beira da Lagoa do Abaeté. Músicas essas que são de domínio público e que em 2015 vieram a se materializar em um CD denominado “As Ganhadeiras de Itapuã” que solidificaram o trabalho deste grupo cultural de mulheres, já formado há 15 anos.
Marcus Ferreira conta como surgiu a ideia de trazer as ganhadeiras como enredo e como foi a recepção da proposta pela presidência e diretoria da escola.
“Esse enredo surgiu para nós em 2015 quando a ganhadeiras fizeram um circuito em homenagem à Chica da Silva, era um espetáculo chamado “Toda mulher é Chica da Silva”, que a Zezé Motta também participou. Criamos uma amizade com ela, que nos presenteou com este CD. A partir disso, nós passamos a escutar e acompanhar tudo o que saía delas. E durante esses cinco anos, fomos amadurecendo essa ideia de trazer as ganhadeiras como enredo por carregar uma grande força cultural. Quando chegamos na Viradouro, o apresentamos junto com mais três propostas e a presidência de cara escolheu esse”, declara.
Estilo próprio e referenciais estéticos dos carnavalescos
A Viradouro tem um histórico de enredos sobre mulheres, já foram Tereza de Benguela, Dercy Gonçalves e Bibi Ferreira. Segundo Marcus, é uma escola que tem uma alma feminina, que eles procuraram achar e resgatar. Destaca que com o enredo, tentam traduzir essa delicadeza e ao mesmo tempo adicionar o arrojo da juventude, que é necessário nesse momento de mudanças para o carnaval.
“A gente quis primar por um enredo que fosse inédito, algo que sempre procuramos em nossos trabalhos, o carnaval necessita de temas diversos e que as pessoas desconheçam. É uma das nossas marcas, sempre querendo trazer uma história nova para o carnaval, uma página desconhecida. Como fez muito bem na década de 70, o carnaval trouxe à tona Chica da Silva, Zumbi dos Palmares, por exemplo. E que hoje fazem parte dos nossa biblioteca nacional, o carnaval tem que ter essa contribuição”, enfatiza Marcus.
Zanon explica que o estilo deles é de sempre tentar aliar o moderno com o clássico, onde eles possuem um olhar carinhoso com a história do carnaval e com os ensinamentos de seus mestres, daqueles que construíram a identidade artística carnavalesca.
“É claro que quando as pessoas observarem o nosso carnaval na Viradouro elas vão ver características e traços da identidade histórica da festa. Mas também não podemos esquecer das características da escola, que também devemos nos adequar”, ressalta.
A dupla de carnavalescos formada pela Viradouro já possui uma larga trajetória na Série A com passagens por diversas escolas e com a conquista de títulos. Zanon estava anteriormente na Estácio de Sá, já há seis anos e Marcus no Império da Tijuca. A responsabilidade deles é grande, em defender um pavilhão onde já estiveram figuras como Joãozinho Trinta, marco do carnaval, e também do renomado Paulo Barros. Marcus destaca o peso deste posto e comenta desta responsabilidade.
“A Viradouro é uma das grandes escolas do carnaval carioca e a nossa responsabilidade é fazer o melhor, já viemos com a nossa maturidade da Série A e estamos muito conscientes de tudo. E sempre sonhamos em alcançar esse objetivo, de chegar no Especial e de estar em uma escola que é muito estruturada e organizada, que dá uma tranquilidade para qualquer artista”.
A geração nova de carnavalescos que vem despontando no carnaval possuem a marca de propor e realizar carnavais com temas mais contemporâneos, muito devido ao suporte da internet. Zanon fala que quando o enredo foi revelado eles tiveram uma resposta muito boa do público.
“Recebemos mesmo muitos elogios e aplausos por estarmos trazendo um enredo cultural e social, uma página da história brasileira que poucas pessoas conheciam e que é tão importante para todos nós, creio que conseguimos agradar 98% do público”, conta.
Dificuldades de verbas para o carnaval de 2020
Em meio a dificuldades na disponibilização de verbas para a viabilização do carnaval de 2020, Zanon ressalta a situação em que se encontra a preparação da Viradouro.
“A Viradouro nesse sentido tem um certo privilégio por ser uma escola de Niterói e termos um aporte financeiro de lá. Mas isso não é o suficiente para se construir um grande carnaval, temos uma organização estrutural muito boa, a diretoria e presidência possuem um pensamento de gestão empresarial que faz com que o carnaval comece muito cedo. Com isso, podemos planejar o nosso cronograma de uma forma muito tranquila e conseguir fazer tudo com um custo muito menor”.
Ele ressalta também que o foco das confecções será na parte mais artesanal, visto ser um enredo regional. A parte artesanal será realmente o foco da escola, como forma de retomar, homenagear e representar as confecções das ganhadeiras artesãs.
“Nós temos um estoquista que já é da escola há muito tempo e que possui guardado materiais até da época do Joãosinho Trinta. Conseguimos reciclar esses materiais e com isso trazer mais mão de obra para o nosso trabalho, empregando mais pessoas, que é um papel muito bacana. Será um enredo extremamente artesanal, se você me perguntar se o carnaval da Viradouro é caro eu te digo que não em material e sim em mão de obra”, explicou Zanon.
Carnavalescos falam da mensagem principal que o enredo pretende passar
Zanon ressalta que a “nossa grande responsabilidade é trazer dentro desse enredo sócio-cultural a mensagem dessas mulheres, da força e da garra delas que lutaram muito e continuam lutando por liberdade, espaço e oportunidade, que representam todas as mulheres brasileiras. No fundo, nosso enredo é uma grande homenagem a todas as mulheres, o que elas sempre dizem, “no fundo toda mulher é ganhadeira” e é o que a gente acredita de verdade, é o que nós queremos passar para a Avenida. E como grandes lavadeiras que são, poder lavar a alma do brasileiro, do carioca e dos sambistas”.
Marcus diz que o tom do desfile é social mas que o ‘Viradouro de alma lavada’ é um enredo de uma escola que nunca se enxergou partidária.
“O repertório delas em nenhum momento fala de escravidão e de dor, fala sim de bravura e de enfrentamento, de luta pela vida. E até independente da Viradouro, a gente nunca vai querer levantar bandeira, claro que a gente só vai levantar bandeira do geral e é o que a gente está fazendo. Estamos falando da mulher, da força das primeiras heroínas brasileiras, uma linguagem motivacional. Durante todo o processo de construção do carnaval a gente se encontrou chorando, se arrepiando com essas histórias de superação. A gente não quer tocar nosso carnaval de uma forma partidária, mas um carnaval que luta pelas classes populares do país, através da história delas”.
Entenda o desfile:
A Viradouro virá com 6 alegorias, sendo o abre-alas acoplado e com 4 tripés, o limite máximo permitido. Algo que é um grande desafio, visto ser um carnaval grandioso e com uma volumetria, mas Zanon afirma que as equipes estão muito bem preparadas e seguras do que estão produzindo.
O que se viu no Barracão da Viradouro foi uma extrema organização, limpeza e mesmo uma qualidade do espaço. Embora ainda estivesse com alguns carros em confecção, os que estavam sendo finalizados mostraram uma qualidade de pintura e estética. Destaque para delicadeza dos detalhes nas alegorias.
Setor 1: A Viradouro abre seu desfile contando sobre a lavagem e a pesca, as primeiras formas de ganho, o primeiro contato delas com a água . Representarão o grande “prelúdio das águas”, que é uma de suas músicas.
“Resolvemos dar uma sutileza e sensibilidade maior para esse setor porque é a abertura da escola e justamente porque essas mulheres acordavam muito cedo para ir lavar. E se tem toda uma mística envolvendo isso, porque enquanto elas lavavam, também cantavam sob o nascer do Sol. Segundo os relatos delas, ouviam a voz da sereia cantar e a partir daí elas replicavam as músicas dessas sereias, com isso elas começaram a compor esses cantos entoados à beira da lagoa”, conta Zanon.
Setor 2: O ‘fuá da mercação’ contará a história de como começou esse ganho. ‘Fuá’ é um termo que elas utilizam para designar ‘bagunça da mercação’ e remete ao ato delas de pegar produtos da natureza, principalmente caranguejos, cocos, frutas, para poder fazer o comércio de rua, que serão representadas pelas baianas da escola. Junto disso também será representada a bica de Itapuã, local onde essas mulheres se encontravam para poder confabular as alforrias, onde também elas pegam a água para poder vender.
“Mostramos aqui as primeiras formas de ganho das quituterias, que são essas figuras baianas tão conhecidas, as que fazem o acarajé, o quindim, o vatapá. Elas são as primeiras ganhadeiras que vem na representação da ala de baianas. Após isso, chegamos na bica de Itapuã, nesse período do século XVIII não se tinha água encanada, então existia esse ponto de encontro. E a gente termina esse setor com as vendedoras de água, conhecidas como as aguadeiras”, explica Zanon.
Setor 3: Será o último momento do ganho, onde as ganhadeiras recebem uma nova denominação, que são as ganhadeiras ‘caxinheiras’, quando a manufaturas passam a fazer parte da venda dessas mulheres. Onde iniciam a venda do artesanato de retalhos, de aviamentos, muito do que os senhores tinham em casa e a negritude e os povoados de Itapuã não podiam ter em seus cotidianos.
“A gente fecha o setor falando da principal manufatura que o negro trouxe da África para Salvador, que é a arte do metal, a metalurgia. As mulheres alforriadas criam as ‘joias de crioulas’ para poder mostrar a sua autoridade e liberdade, o seu empoderamento frente a sociedade, que eram feitas pelas descendentes de africanas já alforriadas. Os balangandãs e toda aquela arte de pulseiras que a gente conhece, como os colares da Bahia”, conta Marcus.
Setor 4: Será quando as ganhadeiras conquistam a liberdade nas ruas de um bairro de Itapuã, e, com isso passam a fazer parte das grandes entidades culturais e rítmicas do bairro. A primeira manifestação cultural é o ‘rancho das flores, um local onde se tinham raízes negras, indígenas, cafuzas, o terno de reis que persiste até o hoje, e a primeira folia de reis de Itapuã que vem com a figura dos palhaços.
“Falaremos aqui dos afoxés que é um ritmo muito disseminado na Bahia e principalmente em Itapuã, o ‘Malê Dêbalê’ que influenciou culturalmente muito o repertório musical das ganhadeiras e o ‘Oyá Odê” que é um afoxé que fazia menção as entidades do candomblé. Falamos também das cheganças marítimas que é uma procissão de marujos, uma espécie de marujada em que eles encenavam à beira-mar de Itapuã. Fechamos esse setor com o quarto carro que faz menção a contribuição desses grupos para a formação do sambas das ganhadeiras de Itapuã, que elas denominaram como ‘samba de mar aberto, já que a praia de Itapuã é a primeira em que se tem a total ligação com o Oceano Atlântico. Esse carro faz menção a imagem que temos das ganhadeiras no carnaval de Itapuã, o carnaval de orla, abaixo do farol de Itapuã, que também é vermelho e branco. Ou seja, a cultura delas sendo a síntese de tudo o que elas tiveram como contribuição cultural do bairro, de Salvador e do Nordeste também, com as cirandas, o samba batido na palma da mão, o pé na areia, os grupos de afoxés e os sambas de roda”, afirma Marcus.
Setor 5: É um setor religioso de representação das festas religiosas e como um espaço de agradecimento delas, que elas são muito gratas por tudo o que conquistaram: “A maioria delas é católicas e parte são candomblecistas. Mas elas são anti-sincréticas e não gostam de utilizar palavras do sincretismo, que para elas só as afasta. No entanto, todas participam de ambas festividades, quando se faz um balaio pra Oxum, as católicas participam e quando se faz a lavagem da igreja de Nossa Senhora da Conceição, todas as candomblecistas comparecem, é uma relação muito respeitosa. Nesse setor passamos por todas essas festas, o bando anunciador que especificamente em Itapuã passa para anunciar as festas religiosas; a missa de São Tomé que elas são devotas; a Missa do Anzol de São Pedro que é o santo pescador; um mar de flores para Iemanjá, porque a primeira forma de economia dessas ganhadeiras foi a extração do óleo da baleia e hoje isso é proibido, então elas participam de um bloco chamado de “a festa da baleia” onde um artista de Itapuã constrói uma grande baleia para ofertar à Iemanjá como se fosse uma oferenda, devolvendo para o mar tudo aquilo que elas retiraram no passado. Termina o setor com a lavagem da escadaria Nossa Senhora da Conceição, onde teremos uma grande surpresar nesse carro”, destaca Zanon.
Setor 6: Consagram, por fim, outros grupos de mulheres que assim como as ganhadeiras, possuem suas identidades locais e culturais com a musicalidade em seus trabalhos: “Abrimos aqui uma grande ciranda para que essas mulheres, junto com as ganhadeiras, possam celebrar a força da mulher brasileira. Citamos aqui as destiladeiras de fumo; as quebradeiras de coco babaçu do Maranhão; as farinhadas de Barrocas; as cantadeiras do sisal, que são dois grupos baianos; as lavadeiras de almenara que assim como elas lavam e mantém até hoje o sustento de suas famílias. Encerramos o desfile da Viradouro trazendo as ganhadeiras de Itapuã como esse símbolo de empoderamento feminino e visão para o futuro, de mulheres que hoje remontam a sua história na afirmação da identidade da mulher brasileira”, finaliza Marcus.