O quadro de Pedro Américo “Grito do Ipiranga” que está no Museu do Ipiranga em São Paulo retrata uma ideia de independência que por quase dois séculos foi ensinada nas escolas e moldou a forma como a ruptura oficial entre o país e a Monarquia Portuguesa chegou foi passada de geração em geração. Ainda aproveitando as discussões acerca do Bicentenário da independência comemorado em 2022, a Beija-Flor, de maneira nenhuma está atrasada, ao retomar o tema no carnaval 2023, mas aproveitando para colocar nos debates a ideia de uma nova data a ser lembrada para formação de uma ideia de independência. O dia 2 de julho de 1823 até hoje é feriado na Bahia comemorando justamente a data conhecida como independência do estado. A Soberana de Nilópolis vem propor um novo olhar sobre este e outros movimentos similares e o seu lugar na história do Brasil. André Rodrigues, que em 2023, fará seu trabalho, agora com o status de carnavalesco ao lado de Alexandre Louzada, explicou como surgiu a ideia do enredo e a mensagem que o desfile pretende passar.
“Esse enredo surge a partir de uma provocação da própria Flávia Oliveira sobre as escolas acabarem perdendo o time de falar sobre o bicentenário da independência. Acho que a maior mensagem deste enredo talvez seja a manutenção da esperança do povo brasileiro. Seja sobre a gente se manter sonhando, se manter esperando um país melhor e criando maneiras de driblar esse sistema, esse bloqueio, essa hegemonia na construção do país, construindo outros Brasis a partir daquilo que a gente tem para construir. Valorizar essa manutenção da esperança que parte muito através da arte, da cultura”, acredita o carnavalesco.
Alexandre Louzada lembra que a construção do enredo foi desenvolvida por André Rodrigues e o pesquisador Mauro Cordeiro. O carnavalesco multicampeão, que agora terá oficialmente companhia na execução do trabalho, conta o que mais lhe encantou no tema escolhido.
“Este enredo é de autoria do André Rodrigues e do Mauro Cordeiro, porque aqui na Beija-Flor acontece de forma democrática, todos podem apresentar uma ideia de enredo. O que mais me encantou realmente é que eu conhecia todas as insurreições, mas ainda não tinha me aprofundado no assunto, e achei bastante interessante, como acho a formatação de uma proposta diferente de visual da Beija-Flor. Mostra a preocupação da escola com os anseios da sociedade como um todo, da sua comunidade principalmente. Acho que qualquer enredo que vai tocar o coração das pessoas, ou que vai despertar o orgulho, a alegria, isso aí vai me contagiar”, define Louzada.
André Rodrigues revela que o trabalho ao lado do pesquisador Mauro Cordeiro foi uma construção coletiva acerca de um tema que lhes trouxe algumas descobertas para o desfile durante o processo de pesquisa.
“Eu pesquisei o enredo junto com o Mauro Cordeiro, nós escrevemos a sinopse de maneira coletiva, e foi muito legal isso porque nós queríamos encontrar um tom para o desfile. Pegamos cinco pessoas diferentes, escrevemos cinco sinopses diferentes, analisamos o que seria a visão de cada um sobre essa sinopse e depois acabamos juntando em um outro texto que virou a convocação e transformamos como sinopse. E a sinopse oficial que está indo para os jurados também é uma junção destes cinco textos. Tudo neste carnaval tem sido construído de maneira muito coletiva. O que tem dado a dimensão das diferenças de visões que existem sobre o que é para cada um a perspectiva de independência. O nosso trabalho tem sido juntar tudo isso em um desfile só e que tenha uma leitura clara, objetiva e que abrace todas essas ideias. Acho que o que a gente não esperava encontrar foi o final desse desfile. Todo o restante, não era óbvio, mas nas primeiras pesquisas a gente já entendia o que viria por aí. Mas o final do desfile tem algo de muito interessante como desfecho da narrativa. Ele explica na verdade que é uma narrativa que não tem desfecho mas ele consegue concluir muito bem o pensamento”, esclarece André.
Louzada acredita que o uso de teatralizações e o clima de ato cívico presente na forma da construção do desfile serão diferenciais neste carnaval da Beija-Flor e vão mexer muito com o público.
“A gente não pensou em nada mirabolante. A gente pensou na mensagem, em passar a verdade. O que eu acho das teatralizações que vão acontecer na Beija-Flor, é que vão despertar esse clima de manifestação, ou seja de ato cívico. É uma convocação que a gente está fazendo. O enredo se torna claro com essas teatralizações”.
Desfile de 2023 será completamente diferente de 2018 e de Mangueira 2019
Com o cunho político e com a intenção de trazer um novo olhar, uma nova perspectiva de um fato histórico, o enredo da Beija-Flor 2023 poderia ser confundido com outros enredos que também partilharam dessa concepção. Em 2019, a Mangueira, com Leandro Vieira trouxe uma nova construção da história do Brasil a partir das perspectivas de povos excluídos historicamente, como indígenas e populações pretas, reescrevendo fatos como o descobrimento, a colonização, a abolição da escravidão, a atuação dos bandeirantes, entre outros. O carnavalesco André Rodrigues acredita que a Beija-Flor 2023 não tentará reescrever nenhuma história, mas trazer alguns fatos importantes para o seu devido lugar.
“Tem um pouco de a gente reconstruir a história que sofreu uma dominação hegemônica na forma que ela é contada, mas eu cheguei a conclusão que não é só sobre uma história não contada. Porque essas histórias, acho que boa parte das pessoas conhecem. Mas existe um fio, que é a construção da narrativa do Brasil que não coloca essas histórias em seu devido lugar de construção. Não é só sobre essa história ser contada ou não. Por exemplo, muitas pessoas conhecem a história da cabanagem a partir da história do Pará, mas não conseguem compreender o tamanho que é a cabanagem para essa construção amazônica de cultura, e não conseguem colocar a cabanagem dentro do fio da construção da independência do Brasil. Não é um enredo sobre história inéditas. Mas é um enredo sobre uma abordagem inédita a partir de uma outra perspectiva”, explica o artista.
Neste pensamento, André continua e entende que a Beija-Flor, neste enredo, pretende mostrar uma nova construção coletiva de país. “A gente não se propõe a contar uma história que a história não conta. O foco do enredo é mostrar uma construção coletiva de país, mostrar como a hegemonia daquilo que tocou esse país até então fez com a gente de violência no trato da história. Sempre digo que um dos nossos maiores desejos é que as pessoas compreendam o tamanho que é a violência da construção das narrativas. Não tem a ver com tentar contar histórias inéditas. Tem um outro viés, uma outra história, a construção do desfile é completamente diferente”, aponta o carnavalesco.
Outro desfile que vem a lembrança, mas dessa vez na própria Soberana, é o titulo de 2018 com “Monstro é aquele que não sabe amar”. Naquele ano, a Azul e Branca de Nilópolis colocou o dedo na ferida, expôs as mazelas do país, criticou a corrupção por parte de políticos, isso tudo em paralelo com uma versão da história do clássico literário ” O monstro de Frankenstein”. Apesar da permanência do tema político, Louzada rechaça a comparação e entende que até esteticamente, a concepção de desfile é completamente diferente para este ano.
“A Beija-Flor naquele ano desfilou com uma proposta estética bem diferente do que ela estava acostumada, mas naquele momento era tudo aquilo que o povo queria dizer, queria gritar, e o desfile contagiou e aconteceu aquela catarse. Mas hoje será uma concepção estética completamente diferente, é outra visão, até porque os assuntos tratados são diferentes. Eu digo que ela vai passear por vários estilos, será possível ver quando ela entrar na Avenida, porque precisa, não é uma opção, porque são fatos relatados completamente diferentes. A gente não pode retratar uma manifestação, uma passeata com plumas e paetês. Tem momentos em que ela traz a realidade, tenta se fantasiar mais perto da realidade”, esclarece Alexandre Louzada.
Estética opulenta estará presente, mas Beija-Flor vai mostrar estilos diferentes
Em 2022, o abre-alas da Beija-Flor em tons de azul e preto, trazendo o símbolo da escola e fazendo referência a opulência do antigo Egito foi um dos pontos altos do desfile. O luxo, o impacto, a manutenção e ao mesmo tempo o resgate de uma agremiação imponente em um passado recente desejado pelo torcedor da Azul e Branca de Nilópolis e do mundo do samba, como um todo, segue presente para 2023. No ano passado, André Rodrigues, ainda que não fosse oficialmente carnavalesco, era o braço direito de Louzada e teve bastante autonomia no processo de desenvolvimento do carnaval da escola. Agora como carnavalesco, o artista segue ao lado de Louzada, nessa intenção de trazer uma agremiação rica e opulenta para a Sapucaí, a fim de satisfazer o desejo da comunidade e componentes.
“É uma Beija-Flor grande, opulenta, rica, mas que presa muito por passar a mensagem. A construção estética do desfile faz parte da construção da história. A gente não trata igual todos os momentos do desfile porque há mensagens diferentes. A gente não deixa pasteurizado as mensagens. Cada uma tem uma tratativa, uma abordagem, uma concepção, mas todas elas estão completamente ligadas. O desfile da Beija-Flor tem que estar dentro do imaginário do componente porque é uma escola que tem uma cara não é de hoje. Existe uma identidade que vem desde 1976 quando ela ganha o primeiro campeonato, que é de se tornar a escola mais rica que todas as outras. A Beija-Flor foi tendo vários tipos de luxo ao longo da história. E os componentes se identificam com isso, uma escola robusta, opulenta, amedrontadora. Tudo isso faz parte do ego do desfilante. Eu percebo que esse ego deles não é só da fantasia ou da alegoria bem feita, mas do impacto também. Acho que o desfile desse ano vai atender bastante a comunidade”, espera o artista.
Sobre a divisão de trabalho da dupla de carnavalescos, André explica que a concepção visual inicial foi sua por ter desenvolvido o enredo, mas que o processo se desenrolou sempre existindo com muito diálogo e com a anuência de Alexandre Louzada.
“No início, como o enredo foi meu, o Louzada me deixou livre para criar as primeiras páginas, primeiras folhas desse visual, e depois de criado ele vinha e dava a cara dele. Funcionou mais ou menos assim, a concepção inicial artística acabou sendo minha, e depois ele vinha e dava a cara dele daquilo que achava que cabe, ‘isso aqui precisa mais daquilo’, etc. Algumas coisas voltaram. Ele dava sugestões. Foi construído através do debate, da conversa principalmente. A divisão na verdade foi feita para que não existissem dois desfiles. Apesar de ser um desfile que de forma provocativa ele tem uma inversão de abordagem estética, mas a nossa preocupação era não ter dois desfiles. Começou a partir de uma cabeça e depois a outra cabeça foi tornando aquilo mais real”, indica André.
Já Louzada fala de uma escola para 2023 não tão homogênea por conta da diversidade do enredo, mas que não vai perder a sua força, o seu luxo e a suas características imponentes que estão presentes na história da agremiação.
“Ela passeia por vários estilos visuais. Mas não vai perder a imponência não. No abre-alas da Beija-Flor a gente ergue um monumento a quem acreditamos que seriam os heróis da nossa independência. O povo, os caboclos, os índios, os brasileiros daquele levante do ‘dois de julho’. A Beija-Flor abre ‘grandona’ como sempre veio e por uma característica do André Rodrigues, ele sempre tem muita teatralização. A Beija-Flor se utiliza de várias cenas isoladas de carros alegóricos, tripés, elementos cênicos utilizados pelos próprios componentes na ala para ilustrar cada passagem do nosso enredo. Acho que a comissão é uma parte importante da leitura do nosso enredo. Eu confio muito nesta mensagem, através desses fragmentos que são inseridos em nosso desfile, a opulência do abre-alas que muda completamente a estética de um ano para o outro. Não vai ser uma escola reconhecida por uma marca estética, mas uma marca de opulência, de grandeza, mas ela prova que é capaz de passear por outros estilos também, mais modernos, mais de vanguarda”, define o carnavalesco.
Mensagem mais uma vez será um dos grande trunfos da Beija-Flor
Se em 2022, claramente a escola tinha uma mensagem para deixar como legado no final do desfile, em 2023 não será diferente. Dar uma nova perspectiva aos movimentos retratados neste enredo e recolocar o seu devido lugar na história é uma das intenções da Beija-Flor. O carnavalesco André Rodrigues espera que a mensagem possa sair do universo das escolas de samba e atingir novos contextos como as salas de aula.
“Acho que será um desfile muito bem amarrado e cada setor tem algo diferente, cada carro tem uma abordagem diferente, cada conjunto de fantasias por setor é diferente. Acho que isso é o grande trunfo. De como a escola não fica monótona, mas ao mesmo tempo ela tem uma linearidade de impacto. Toda hora ela vai te levando para lugares diferentes, para sensações diferentes, sem perder o nível de desfile. Acho que é uma outra formação de brasileiros e brasileiras. E, se isso realmente for uma nova perspectiva de abordagem da independência nas escolas, se isso ajudar, nós vamos ter cidadãos diferentes crescendo. Não é só uma questão de empoderamento a partir da informação, mas é uma questão de você realmente mudar o seu espaço. Você olhar dentro da sua casa e entender que a minha vida é assim por causa disso e daquilo. Eu não posso mais ser passivo desse sistema por causa disso e disso. Isso é o que para mim talvez seja o mais bonito. Se esse desfile ganhar essa coisa do ensino, e ir realmente para as escolas, acho que é formar uma nova geração”, aposta o artista.
André revela que o enredo que fala de uma temática nacional também infere implicações do tipo regionais. A escola trará movimentos do seu próprio entorno para falar da independência do Brasil.
“A gente está conversando muito com movimentos sociais da Baixada Fluminense. Esse enredo tem uma preocupação de nível nacional, mas a escola de samba trouxe isso para a realidade dela. Nós fomos atrás dos coletivos e movimentos sociais da Baixada, trouxemos eles para a escola e debatemos a independência do Brasil a partir da perspectiva da Baixada Fluminense. Aconteceram três reuniões muito produtivas e agora a gente usa a escola de samba para falar desses coletivos da Baixada porque eles vão desfilar com a gente. Vão passar na Avenida coletivos sociais que atuam na Baixada, território da Beija-Flor, e isso volta para eles. É uma coisa de usar o espetáculo para fazer coisas que importam também fora dele”, acredita André.
Sem o tão esperado título desde 2018, a Beija-Flor já tem o seu maior jejum neste século. Em anos corridos já é o maior. Em termos de carnavais iguala ao período sem ganhar entre as conquistas de 2011 e 2015. Por isso é de se imaginar uma certa ansiedade pela vitória. O carnavalesco Alexandre Louzada minimiza uma possível pressão pela conquista por conta do jejum, definindo o próprio tamanho da agremiação como uma fator pertencente ao sempre desejo do torcedor pela vitória.
“Acho que a pressão é inerente ao fato de estarmos na Beija-Flor. Ano passado nós raspamos, perdemos por erros nossos. Talvez o jejum não seja tão doloroso diante do quase campeonato do ano passado. Estamos no caminho, e a Beija-Flor é uma escola que sempre está na briga pelo título. Só que os tempos são outros também. Hoje nós temos grandes potências disputando carnaval. Não está fácil para ninguém. Espero que no dia do desfile da Beija-Flor, a agremiação seja tudo aquilo que o povo quer gritar como foi no ano do monstro(2018)”.
Conheça o desfile da Beija-Flor
A Soberana de Nilópolis vai levar para Sapucaí neste carnaval, seis carros, 3 tripés e 23 alas. Os carnavalescos Alexandre Louzada e André Rodrigues falaram mais sobre como estão divididos os setores de “Brava Gente! O grito dos excluídos no bicentenário da independência”.
Abertura: “A gente começa fazendo uma alusão ao quadro de Pedro Américo, ali mesmo você não enxerga o povo. É uma cena militar da época e essa data que é escolhida para ser o marco da independência. No ano seguinte, durante esse período, várias insurreições aconteceram no Brasil que culminaram com esse levante na Bahia em 2 de julho. O Abre-alas da Beija-Flor ergue um monumento a quem acreditamos que seriam os heróis da nossa independência. O povo, os caboclos, os índios, os brasileiros daquele levante.
Primeiro Setor: “É uma provocação entre o ‘7 de setembro’ e o ‘2 de julho’ “.
Segundo Setor: “São as principais revoltas depois de 1823 até a abolição da escravidão e consequentemente a virada para a república”.
Terceiro Setor: “É a república e a negação da nossa cidadania”.
Quarto Setor: “São os movimentos sociais que atuam na nova República até os dias de hoje nessa busca por direitos”.
Final do Desfile: “A cultura como mecanismo de sobrevivência brasileira”.