“As bruxas estão soltas”. Esse é o enredo da Acadêmicos de Santa Cruz para o Carnaval 2024. O lançamento ocorreu durante a festa da posse da nova diretoria. Novamente, Cid Carvalho é o carnavalesco responsável pela produção do desfile. Leia abaixo a sinopse.
“Hoje as energias ancestrais se manifestam através da Deusa, a Grande Mãe Terra; e como centelhas carregadas de magia, se espalham através do poder dos quatro elementos da criação, e dançam com os mistérios da natureza para coroar o poder feminino, em rituais que glorificam a vida e revelam os caminhos do tempo para celebrar a manhã do mundo.
São raízes e fundamentos que fizeram da natureza a senhora do ventre que nos conecta e une, como frutos de uma mesma árvore ancestral.
São elos que ligam passado e presente, como testemunhas da grande criadora que preencheu de vida, o vazio inicial.
São manifestações do princípio feminino que estava em tudo e se manifestava através das curandeiras, parteiras, e daquelas que detinham os segredos medicinais das ervas, folhas, raízes. E como profundas conhecedoras dos mistérios da vida e da morte, eram também sacerdotisas, profetisas e médiuns que funcionavam como elemento de ligação entre os vivos e os mortos, entre os humanos e os deuses.
Mas, na Europa, o dragão patriarcal se revelou através da penumbra das trevas medievais, contra o poder feminino e, cuspindo o fogo do inconformismo, do medo e da covardia, alimentou a crença em um deus masculino, feito à imagem e semelhança dos homens e, desde então, tudo se inverteu.
Então, a nova religião do Deus Pai, do Filho e do Espírito Santo, fez dos princípios masculinos os seus dogmas e pariu o Diabo como o agente universal de todo o mal sobre o mundo e o principal aliado de todos os opositores, efetivos ou imaginários, da Igreja cristã.
Em nome da Santíssima Trindade, a mulher, herdeira de Eva e do pecado original, responsável pela procriação da vida, mas também pela morte, juíza da sexualidade masculina, dona de uma força misteriosa, passou a ser vista como uma manifestação das forças maléficas que impediam os homens, segundo a visão de mundo do cristianismo, de realizar sua espiritualidade.
Dessa maneira, os martelos da intolerância masculina, símbolos cruéis dos tribunais eclesiásticos, julgavam e condenavam uma mulher de bruxaria até mesmo pela cor diferente dos cabelos, e as fogueiras da covardia medieval, queimavam corpos femininos às centenas, numa tentativa de transformar em cinzas, o poder feminino.
No século XV, diante das descobertas de terras e povos desconhecidos pelos europeus, durante o período das Grandes Navegações, muitos cronistas e eclesiásticos, certos de que estavam reencontrando no Novo Mundo, o velho inimigo satânico, descreviam as práticas mágico-religiosas dessas populações como manifestações do mal.
Aqui, no Brasil colônia, muitas mulheres acuadas pelo Ofício, que de santo não tinha nada, engrossaram o “caldeirão’ com outras bruxas.
Além das mulheres indígenas, profundas conhecedoras das nossas matas e de seus poderes mágicos e medicinais e que usavam as plantas nativas para curar males do corpo e do espírito, por aqui ainda desembarcaram, forçada e cruelmente, as pretas escravizadas que lutaram e morreram para manter vivas suas tradições e a ancestralidade africana, repleta de ritos. Essas também eram consideradas bruxas, feiticeiras, praticantes de rituais heréticos e diabólicos.
Outras tantas, como as ciganas, acusadas em Portugal de bruxaria, foram enviadas para cá como degradadas e se juntaram às nossas Matinta Pereira e Bruxas Mariposas. Até mesmo as Pombas Giras, até hoje fazem o nosso caldeirão ferver.
Mesmo depois de fechados os tribunais inquisitórios na Europa e silenciados os martelos, a imagem da bruxa construída nesse período, permaneceu. Outras representações, igualmente inventadas, foram surgindo através da literatura, do cinema e da televisão, e uma variedade enorme de bruxas de feições grotescas e caricatas, evocando um senso de feiura distorcido, como a velhice, o chapéu pontudo e o nariz grande e enverrugado; que voavam sobre vassouras, preparavam porções em grandes caldeirões ou que possuíam o poder de se transformar no que quiser, como a bruxa da Branca de Neve; a Bruxa Má do Oeste, de O Mágico de Oz e a Malévola, se tornaram famosas.
É bem verdade que hoje, mexer com ervas pode até já não ser considerado heresia ou levar ninguém a morrer queimada em uma fogueira, mas as perseguições continuam e as lutas das mulheres empoderadas, das trans, das ativistas, das prostitutas e das grandes matriarcas pretas, permanecem vivas porque as fogueiras do machismo, do preconceito e da intolerância, seguem acesas!
Também é fato que muitas foram submetidas.
Mas muitas resistiram!
E venceram!
Venceram sim, porque não foram aniquiladas. Nós sabemos que não foram aniquiladas!
Porque hoje nós existimos, e as nossas vidas, o nosso existir, são provas da história delas, da vitória de cada uma e da resistência de todas perante as inúmeras dificuldades que vieram onda após onda, a bordo de embarcações de perseguições.
E continuam vindo!
E elas continuam lutando porque sabem das próprias origens e das raízes que nutrem o sagrado feminino e a capacidade de continuarem avançando apesar do julgo masculino que ainda hoje fere o espírito e tira vida de tantas mulheres.
As bruxas?
Elas, apesar de tudo e graças a Deusa, continuam soltas. E esse enredo é para elas; para cada mulher que sabe do seu poder de voar e ir aonde quiser; que entendeu que o céu nunca foi limite, mas uma possibilidade de alcançar o infinito e brilhar como estrela que é”.