Por Diogo Sampaio
O homem criou, projetou e construiu espaços, desde as primeiras civilizações, seja como forma de abrigar e proteger a si e a seu povo, ou de ostentar e exaltar uma divindade. Ainda na Antiguidade, obras monumentais como as pirâmides do Egito e a Muralha da China já puderam ser vistas. Construções essas que resistiram ao tempo, e carregam consigo, os registros e marcas de uma cultura. Dos grandes castelos medievais aos arranhas-céu das metrópoles, a Unidos da Tijuca em 2020 irá fazer um passeio pela história da humanidade através da arquitetura e urbanismo.
O enredo “Onde moram os sonhos” irá partir do passado de grandes obras, para alertar acerca do presente, marcado pelas sequelas do crescimento desenfreado e desproporcional das cidades, com o objetivo de deixar uma mensagem para o futuro. Para desenvolver toda essa proposta na Avenida, a escola do Borel conta com o retorno, após cinco anos, do carnavalesco Paulo Barros, que se junta a Hélcio Paim e Marcus Paulo na comissão de carnaval. Já a tarefa de compor a canção que embalará essa apresentação tijucana coube a Dudu Nobre, Jorge Aragão, Fadico, André Diniz e Totonho, nomes renomados dentro e fora do mundo do carnaval.
O site CARNAVALESCO abre sua série de reportagens intitulada “Samba Didático” com samba-enredo da Unidos da Tijuca para 2020. A reportagem entrevistou o músico Dudu Nobre e a pesquisadora Isabel Azevedo para saber mais sobre os significados e as representações por trás de alguns versos e expressões presentes no samba tijucano.
Confira a análise de alguns versos e trechos do samba:
‘O mais imperfeito, perfeição se torna’
“Esse verso está relacionado aos três anteriores. Na verdade, é que a gente está falando de um processo, e os compositores foram super sensíveis para transformar isso em poesia. O título do enredo é ‘Onde moram os sonhos’ e eles captaram bem essa ideia. Nos versos anteriores, você tem um sonho que ele vai ganhando o teu peito e a tua alma. Ele vai virando um projeto, ganhando um jeito e se traduzindo em forma. E o mais imperfeito sonho, perfeição se torna. Esse é um processo, que inclusive tem a construção, o momento em que você olha para o que está fazendo e, a partir do projeto, você começa a aperfeiçoar cada vez mais a sua obra. E assim caminhou a humanidade. O que hoje é o nosso cotidiano, amanhã pode estar entrando para a história. O homem vai fazendo construções, realizando diferentes sonhos e eternizando o seu tempo. Você tem obras perfeitas, que viraram grandes marcos da história da humanidade e da arquitetura”, explicou a pesquisadora Isabel Azevedo.
Já Dudu Nobre preferiu usar uma exemplificação para dissertar sobre o verso: “Às vezes você vai visitar uma obra no início e vê aquela bagunça que, durante a construção, vai se tornando perfeita. A própria arquitetura do morro: Você olha e parece zoneada. Porém, no final das contas, a coisa fica perfeita. Aquela arquitetura se enquadra de uma maneira que as pessoas vão poder utilizar daquilo dali, de uma maneira bacana. O verso mostra justamente isso”.
‘Lá no meu quintal, eu vou fazer um bangalô’
“Dentro de cada terreno, de cada pedaço de chão, tem uma história. E é nele que eu vou fazer meu bangalô. ‘Lá no meu quintal, eu vou fazer um bangalô’ que ‘já foi tapera, feita em palha e sapê’. A tapera é uma construção indígena. Isso mostra que, antes de eu fazer meu bangalô, estiveram os índios nessa terra. Já o verso seguinte, ‘uma capela que a candeia alumiou’, mostra que depois desses índios, vieram os colonos. Então, o meu bangalô, é a minha casa. E esse território, antes de eu estar ali e construir o meu barraco, o meu bangalô, já foi dos índios e dos colonizadores”, argumentou Dudu Nobre.
A mesma visão acerca do verso é compartilhada por Isabel Azevedo: “Esse trecho do samba foi perfeito, porque os compositores conseguiram traduzir a questão das construções, associadas ao cotidiano. Quando você fala do bangalô, você está falando de uma casa mais modesta, uma casa que chega ter uma coisa carinhosa: ‘eu vou para o meu bangalô’ O samba fala isso, mas também lembra que naquele lugar, naquele chão, foram muitas as construções. Então, nesse trecho, eles conseguem falar de um processo do passar do tempo, desde os índios aos colonizadores, as diferentes construções. Eles conseguem traduzir isso em versos, trazer isso para o cotidiano, quando fala do ‘meu quintal’, do ‘meu bangalô’, e diz que naquele pedaço de chão ali, já foi tapera, já foi palha, já viveu índio e outros homens do passado. É uma metáfora muito bacana de tradução do que é arquitetura e o espaço que a gente ocupa”.
‘Curva-se o concreto, brilha a inspiração’
“É uma clara homenagem aos profissionais de arquitetura e urbanismo. O verso anterior fala das linhas do arquiteto e que ‘a vida é construção’ enfatizando o papel desses profissionais nas cidades, na construção delas. E aqui tem duas ideias: Uma ideia muito forte que é o Niemayer (Oscar, arquiteto) e a atração dele pelas curvas. Ele dizia que a curva vira sensual, que era possível encontrá-la no curso sinuoso dos rios, nas nuvens do céu… E é a arquitetura que projeta o Brasil internacionalmente. E ao mesmo tempo, também tem uma imagem muito bonita, porque é um pouco do papel desse arquiteto urbanista. Você tem as grandes construções, as cidades predominantemente de concreto, mas ao mesmo tempo, você é capaz de no meio do concreto criar espaços inspirados em promover o lazer, a circulação de pessoas. Então, o ‘brilha a inspiração’ também traz esse conceito, que tem um pouco mais haver com o lado do urbanismo. O concreto também se curva para essa possibilidade de você ter uma cidade mais humanizada”, defendeu Isabel.
“O grande desafio desse samba é a gente pegar e colocar algumas palavras relacionadas ao tema, sem que elas soem de uma maneira estranha. Por exemplo, a questão do concreto nesse verso. A gente quis falar do mestre Oscar Niemayer e, pensando nas curvas tão características de suas obras, conseguimos usar a expressão de uma forma poética”, relatou Dudu.
‘Lágrima desce o morro’
“Nesse pedaço, a gente fala da chuva. Quando vem a enxurrada, ‘lágrima desce o morro’ como ‘serra que corta a mata’, o que causa por sua vez uma destruição que ‘mata a pureza do olhar’. A gente fala justamente da questão dos temporais, das enchentes e inundações. E depois, começamos a abordar também uma temática mais ligada a natureza”, resumiu Dudu.
“Esse verso ele abre um setor que vai falar dos problemas das grandes cidades, que elas crescem de forma desigual e provocam uma grande agressão aos recursos naturais. O sonho de viver bem, de construir o espaço para ser feliz, ele é o sonho que, ao mesmo tempo, a gente perde todos os dias provocando um enorme desequilíbrio. E isso passa por tudo. Passa por você derrubar as florestas, passa por você provocar o esgotamento dos solos, passa por você poluir os rios e os mares, enfim. Aqui entra também uma mensagem forte sobre o papel do arquiteto, e principalmente do urbanista, de pensar as cidades de uma forma mais sustentável”, explicou a pesquisadora.
‘O rio pede socorro’
“No trecho ‘o rio pede socorro’, muita gente acha que estamos falando do Rio de Janeiro, mas não. Falamos do rio relevo, geográfico. A menção ao Rio de Janeiro é feita somente mais a frente, no verso ‘e meu clamor abraça o Redentor’. O rio que pede socorro se refere as questões da poluição, das barragens, do mar de lama, do rio assoreado. Tanto que nesse verso a palavra ‘rio’ é em minúsculo e não em maiúsculo”, esclareceu Dudu Nobre.
‘O povo é o alicerce da esperança’
“Depois que passa na Avenida todos esses problemas enfrentados pelas cidades, um alerta para chamar a atenção das pessoas de que elas estão destruindo esses sonhos de uma vida mais sustentável e com melhor qualidade, o Paulo (Barros, carnavalesco) traz a ideia de que é possível mudar. E a gente passou para os compositores o conceito de que o sonho que se sonha junto, pode se tornar realidade. E eles traduziram isso de uma forma muito bacana, mostrando que todos juntos somos o alicerce da esperança”, contou Isabel Azevedo.
‘O samba no compasso é mutirão de amor’
“É um dos versos mais bacanas desse samba, porque ele foi construído a partir da leitura da grande mensagem que o enredo quer passar. Ele traz o compasso, que é o compasso do arquiteto e o do samba. Já o mutirão de amor tem relação com a união de todas as pessoas em torno de construir uma cidade melhor. Da mesma forma que, mais uma vez, traz isso para esse povo que é capaz de fazer uma construção subir em uma comunidade, graças aos famosos mutirões. Os compositores trabalharam na letra esse sentimento de bater a lage, de levantar a casa todos juntos, e fizeram isso no compasso do samba e no compasso do arquiteto. Então dá para dizer que esse verso é uma síntese do que o enredo está propondo. Ele é perfeito, de uma inspiração incrível”, declarou Isabel.
‘Dignidade não é luxo, nem favor’
“O verso é um recado para algumas autoridades que às vezes pensam que só de pegarem e cumprirem com as obrigações delas, estão fazendo um favor. O povo paga os seus impostos, e independente de qualquer coisa, o governo tem de dar o mínimo de condição de vida para as pessoas. Dignidade é você ter saneamento, ter acesso ao serviço básico, dentro das comunidades ou onde quer que seja”, afirmou Dudu.
“Quando a Unidos da Tijuca pensou nesse enredo sobre arquitetura e urbanismo, ela procurou o Conselho Regional de Arquitetura e Urbanismo, o CAU/RJ, que está apoiando esse enredo, e a gente conversou muito com eles. Os arquitetos do CAU nos apoiaram inclusive na pesquisa, ajudando a levantar as informações para o enredo e a fazer todo o desenvolvimento. Ao longo dessa cooperação, eles nos trouxeram uma coisa que é da maior importância: toda uma legislação que busca atender as populações de baixa renda para melhor a qualidade das construções e da urbanização da cidade. E isso é papel do poder público, das políticas públicas. O que contrapõe a ideia de que ter um arquiteto é para que você construa uma casa de luxo ou que isso custa uma fortuna e por isso é inalcançável. As pessoas não pensam na possibilidade de ter um arquiteto para pensar as suas casas quando, na verdade, a gente tem uma legislação hoje que permite. E isso não é favor. A moradia de qualidade, a garantia de um teto para todos, é papel do poder público e é direto do cidadão. A Tijuca está trazendo essa informação que é fundamental e poucas pessoas conhecem”, ressaltou Isabel.
Mensagem final do samba
Ainda durante o bate-papo com a reportagem do site CARNAVALESCO, Dudu Nobre contou qual a mensagem que a parceria quis deixar através da obra composta para o desfile da Unidos da Tijuca 2020:
“A mensagem que nós compositores queremos deixar com esse samba, é que os sonhos podem se realizar. Através do esforço de todos, podemos construir um amanhã melhor. Esse foi um samba que, quando a gente viu a sinopse, ficamos com o pensamento de como íamos poetizar esse tema. E realmente, foi um grande desafio. Quando se tem uma temática mais ligada ao universo do samba é uma coisa, agora quando se tem um tema mais abstrato é muito complexo. Mas mesmo com as dificuldades, a gente conseguiu realizar o nosso sonho de ter um samba com uma melodia e uma letra diferenciada. Esse samba traz ainda como recado que a comunidade também tem a sua beleza”, declarou o músico.
A Unidos da Tijuca será a quarta escola a desfilar na segunda-feira de carnaval. Com o enredo “Onde moram os sonhos”, os carnavalescos Paulo Barros, Marcus Paulo e Hélcio Paim tentarão levar a agremiação do morro do Borel ao quinto título do Grupo Especial de sua história.