Por Victor Amancio
“Se sobrevivesse às estatísticas destinadas aos pobres que nascem em comunidades, chegaria aos 33 anos para morrer da mesma forma. Teria a morte incentivada pelas velhas ideias que ainda habitam os homens”. Com o enredo “A Verdade Vos Fará Livre”, o carnaval da Estação Primeira de Mangueira apresentará a biografia mais conhecida de toda humanidade buscando mostrar um contorno físico de Jesus Cristo diferente dos apresentados pela história. O carnavalesco Leandro Vieira debruça sobre a possibilidade de Cristo renascer no morro de Mangueira e abordará, além da diferença estética eurocêntrica, a luta contra a intolerância e a violência. O samba que passará na Sapucaí é uma obra dos compositores Luiz Carlos Máximo e Manu da Cuíca.
O site CARNAVALESCO dando continuidade à série de reportagens “Samba Didático” entrevistou Leandro Vieira para saber mais sobre os significados e as representações por trás dos versos e expressões presentes no samba da Estação Primeira para o carnaval de 2020.
‘Eu sou da Estação Primeira de Nazaré’
“Jesus Cristo passa toda sua infância, e boa parte dos seus ensinamentos são difundidos em Nazaré, então Estação Primeira de Nazaré de alguma forma rompe essa barreira do tempo e une a Estação Primeira de Mangueira a Nazaré”
‘Moleque Pelintra do Buraco Quente’
“Pelintra tem a ver com malandragem e o Buraco Quente é uma localidade do Morro da Mangueira. Este verso vem logo em seguida do verso que diz: “rosto negro, sangue índio, corpo de mulher”, o Jesus que a Mangueira vai levar para avenida pode apresentar essas três características e também ser um moleque malandro de uma localidade específica do morro, no caso, o Buraco Quente, local inclusive da fundação da Mangueira”, diz Leandro.
‘Procura por mim nas fileiras contra opressão’
“Este trecho faz referência aos homens e mulheres que lutam contra a opressão e Jesus foi um homem a favor do oprimidos. Quando a letra do samba sugere que ao olhar para as fileiras dos que lutam contra os opressores você vai encontrar a figura de Jesus Cristo pois os seus ensinamentos e os posicionamentos humanos dele se caracterizam por ele se colocar a favor dos menos favorecidos”.
‘Eu tô que tô de pendurado / em cordéis e corcovados /
Mas será que todo povo entendeu o meu recado?’
“Cordéis são cordas e cordões, o nome literatura de cordel é porque é uma manifestação que fica penduradas em cordas, cordéis e cordões então isso tem a ver com a difusão e a disseminação da figura de Jesus Cristo penduradas em cordões como pingente. É muito comum, muita gente tem um crucifixo com a figura de Jesus. Corcovados é uma menção ao Morro do Corcovado que talvez seja o contorno estético mais popular da figura de Cristo no turismo carioca, que é a escultura dele de braços abertos no topo do Corcovado. Ele está pendurado em colares, cordões, cordéis e no morro do Corcovado. O último verso questiona se mesmo com o fato da figura de Cristo ser tão popular e difundida na sociedade as pessoas de fato entenderam o recado original de Jesus”, explica o carnavalesco.
‘Profetas da intolerância’
“Tem a ver com o fato de Jesus ter combatido a intolerância religiosa do seu tempo, combateu profetas do seu tempo e o samba traz essa ideia de que Jesus combateria novamente. Vivemos em um tempo onde a gente encontra uma série de profetas, ou seja, pessoas que falam em nome da religião mas que muitas vezes disseminam ideias intolerantes. Dentro da proposta artística da Mangueira acreditamos que Jesus não estaria a favor desse discurso”.
‘Favela, pega a visão / Não tem futuro sem partilha /Nem Messias de arma na mão’
“É Jesus que se coloca, ele fala com a linguagem atual. Pegar a visão é um termo popular, uma gíria do vocabulário periférico e ele se coloca como parte disso. Chama atenção da favela, é um “se liga” não tem futuro sem partilha e nesse momento falamos em partilhar, dividir. Messias nesse trecho é o salvador e também pode ser entendido como Messias, o tal Jair Messias Bolsonaro ou outros tantos que se apresentam de arma na mão. Fica óbvio que a partir do contorno messiânico que a eleição de 2018 deu a figura do atual presidente da república e o seu gesto mais famoso que é fazer arminha com as mãos traz com força essa interpretação. E nesse caso específico, ele é um homem que usa um versículo bíblico que é: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” que faz ligação direta com o título que escolhi para batizar o enredo. O samba tem esse diálogo com a cena contemporânea com esses homens que dizem falar em nome de Cristo e agem de uma forma distante dos seus ensinamentos”, enfatiza Leandro.
‘Do céu deu para ouvir / O desabafo sincopado da cidade’
“Jesus do céu ouve o desabafo sincopado da cidade, que é o carnaval. O desabafo em síncope, o momento de alegria, uma válvula de escape e do céu ele escutou o carnaval enquanto uma manifestação que liberta”.
‘Quarei tambor da Cruz fiz esplendor’
“Quarar tambor é preparar o tambor. Da cruz fazer o esplendor, que eu particularmente acho lindo o trecho, a cruz que é um artigo ligado a dor vira o esplendor que é o artigo ligado a beleza da fantasia. Ele prepara o tambor e a cruz que é sinônimo de dor vira a beleza da sua fantasia e cai no samba com a Mangueira”.
‘Mangueira samba teu samba é uma reza / Pela força que ele tem
Mangueira vão te inventar mil pecados / Mas eu estou do seu lado / E do lado do samba também’
“O trecho dialoga com uma série de poetas da música popular brasileira porque Noel Rosa já tinha dito que o samba era uma reza, Vinícius de Moraes também e a Mangueira volta a afirmar que o samba é uma reza. O samba é em primeira pessoa e Jesus fala que se coloca a favor da Mangueira indo contra aos que dizem que os desfiles das escolas de samba é um lugar de pecado, antirreligioso, demoníaco. Jesus se coloca dentro do contexto popular e diz a Mangueira sambar pois o teu samba é uma reza”, encerra Leandro.