Tradicional escola de samba da Zona Norte carioca, a Arranco desfilou nesta sexta-feira com o enredo “Mães que Nutrem o Sagrado”, sobre a maternidade e a força espiritual feminina. A quarta ala do desfile, intitulada “Feijoada para São Jorge”, relembrou a tradicional cerimônia em homenagem ao santo católico, também cultuado em religiões afro-brasileiras, e o trabalho das baianas sambistas, que prepararam, com dedicação, os banquetes para seus convidados.
“Tudo começou com a Tia Ciata. A escola de samba e a tradição da baiana vêm desde essa época. Antes, os primeiros desfiles eram feitos na Praça 11. As baianas trouxeram o costume dos acarajés, da feijoada, dos quitutes da Bahia. Só que a feijoada do Rio de Janeiro foi aprimorada, foi melhorada, colocada no modo carioca. A ideia dessa ala surgiu através de uma feijoada de São Jorge da qual a carnavalesca participou, pela primeira vez, na escola. Ela se inspirou na nossa matriarca, uma das presidentes da escola, que é a dona Dina, para representar essa feijoada. Dona Dina é uma pessoa que tem o cuidado de fazer toda a feijoada do Arranco com as próprias mãos, com carinho”, disse Mauro Vieira, de 70 anos, que integra a equipe de harmonia da Arranco.
“A baiana é a mãe de uma escola de samba, em qualquer escola de samba. E mãe nada mais faz do que cuidar. Quando elas estão ali preparando, estão cuidando de quem está indo se divertir, brincar, mas com carinho, cuidado e amor. Baiana é amor, feijoada é amor”, enalteceu a auxiliar administrativa Thuyra Azevedo, de 33 anos, que desfila há cerca de 20 anos na Sapucaí, embora estreie este ano pela escola de Engenho de Dentro.
Entre bordados de renda e estamparia, com um costeiro de penas verdes, a quarta ala da Arranco de Engenho de Dentro levou na cabeça pratos de arroz, feijão e farofa, além de uma fatia de laranja, em oferenda ao santo guerreiro.
“A feijoada de São Jorge, a gente faz para agradecer ao glorioso São Jorge, porque somos devotas dele. Nada é mais gratificante do que, todo dia 23 de abril, preparar uma feijoada. Não só a gente, como vários terreiros e muitas pessoas devotas, que conseguiram uma graça pelo São Jorge Guerreiro. Eu sou filha de São Jorge. Quer dizer, não de São Jorge, sou filha de Ogum – que, na Igreja Católica, é São Jorge, e no candomblé, Ogum. Eu tenho muito que agradecer a ele, porque hoje tenho vida, tenho três netos, tenho meu filho com vida e saúde. Eu agradeço a São Jorge”, destacou a enfermeira Sônia Maria Monteiro, de 58 anos, que já desfilou em quatro carnavais pela agremiação da Zona Norte.
“Para ter mãe, tem que ter pai. São Jorge é o padroeiro da grande maioria das escolas de samba do Rio de Janeiro. Representar, pelo menos para mim, a feijoada de São Jorge, que é meu pai – porque sou da religião – tem uma importância gigantesca. Para quem é do povo preto, de pele preta, que segue uma religião de matriz africana, estamos trazendo aquilo que damos aos nossos santos, aquilo em que acreditamos. Se oferecemos isso, é porque temos fé nisso, e carregar essa mesma comida na cabeça é de extrema importância e felicidade, de verdade. É a alegria de saber que, lá atrás, meu antepassado, que foi escravizado, tinha isso para comer, e hoje é isso que coloco na minha cabeça e ofereço ao santo”, dividiu Thuyra.
Mais do que São Jorge, no entanto, o intuito da ala foi homenagear as mãos por trás do banquete, que carregam, em cada mexida de caldeirão, a sabedoria ancestral e a memória afro-brasileira.
“Onde a gente vai, a feijoada não é só uma feijoada. Ela é tratada realmente de uma forma religiosa, bem delicada. A baiana que está lá, que faz a comida, que organiza, é quem dá movimento a cada evento da escola, que faz com que a escola tenha até mesmo o rendimento financeiro para cumprir o carnaval. Sem dinheiro, você não faz carnaval. Nem tudo é patrocínio”, relembrou a vendedora Monalisa Faustino, de 39 anos, que vai para o segundo ano na escola.
“A gente tem que respeitar muito a baiana e a velha guarda. Se não fossem eles, não existiriam nossa ala, a ala de passistas, a ala das crianças. E a gente espera muito que a ala das crianças um dia chegue lá. Essas meninas, quando estiverem mais velhas, podem virar baianas porque estão seguindo na escola. Existe um respeito e um abaixar de cabeça. Há um momento de parar e escutá-los. É o poder da escuta: eles têm o poder da fala, e nós, o da escuta. Baiana e velha guarda são a raiz da escola. E a feijoada é a raiz do povo brasileiro. Ver uma baiana, uma senhora da velha guarda preparando uma feijoada é lembrar que tivemos um passado. E lembrar que podemos transmitir esse passado para o futuro. Porque as coisas podem evoluir, mas não podemos esquecer quem abriu o caminho para nós – e eles abriram”, finalizou Thuyra.