Celebração da diversidade religiosa no Carnaval: conheça a história do abre-alas da Tradição
A Tradição abriu a segunda noite de desfiles da Série Ouro do carnaval carioca com um abre-alas que representa perfeitamente o seu enredo “Reza”, celebrando as diversas manifestações da espiritualidade humana.
O carnavalesco Leandro Valente, responsável por desenvolver o enredo, explicou o conceito da alegoria em entrevista ao CARNAVALESCO.
Qual a principal mensagem que a alegoria busca transmitir na avenida?
“O nosso abre-alas vem representando a fé cristã por meio da figura de um grande Deus, onipresente, onisciente e onipotente. Mostramos a multiplicação dos peixes e a fartura dos pães no fundo do carro. E a gente conduz essa narrativa por todo o elemento cenográfico das alegorias. Começamos com um Deus cristão, a segunda alegoria traz um Deus de matriz africana, rodeado por todos os seus orixás, e finalizamos com o que acreditamos: a força da natureza como habitação sagrada. Nesse momento, temos um Deus Tupã, que inicia com um fenótipo masculino no primeiro carro e termina com um fenótipo feminino. É uma Deusa Tupã. Porque, para nós, não existe sexismo: a reza da Tradição é plural.”
Como essa multiplicação dos pães e dos peixes foi traduzida visualmente no carro?
“As laterais da alegoria são adornadas por esculturas de peixes gigantes, representando tanto os peixes diurnos quanto os noturnos. Dessa forma, temos a onipresença de Deus multiplicando esses peixes o tempo inteiro. Na parte traseira da alegoria, há uma mãe chorosa com seu filho nos braços recebendo o alimento. Nossa intenção é mostrar, na Marquês de Sapucaí, que na reza da Tradição não existe espaço para a fome.”
Qual o significado da divisão entre noite e dia na composição do abre-alas?
“Entramos no Gênesis, período em que Deus criou a Terra e, logo em seguida, a luz, pois percebeu que as trevas daquele espaço precisavam de claridade. Assim surgiram o dia e a noite. Buscamos exaltar os seres que representam cada um desses períodos, e para isso citamos uma passagem de João Nogueira, um dos grandes compositores dos sambas da Tradição nos anos 80, que diz que ‘existe uma força maior que nos guia, que está no meio da noite e no clarão do dia’. Assim, representamos mais uma vez a onipresença de Deus.”
Qual a importância de representar a pluralidade da fé por meio dos anjos indígenas?
“Com essas figuras, mostramos que a pluralidade da fé também está na força da natureza, que é a habitação sagrada. Precisamos salvar e saudar os povos originários. Nosso samba menciona o Deus Tupã, ressaltando que rezar pelos povos indígenas é necessário. Assim, os nossos anjos são indígenas.”
Como foi construída a imagem da Nossa Senhora Negra e qual o papel dela dentro da alegoria?
“Ela vem como destaque central da alegoria, posicionada sobre nossa grande águia, interpretada por Geane Nascimento. Ela representa muito mais do que a padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida: com ela, exaltamos a mulher preta.”
Qual a importância da diversidade no contexto do enredo?
“A reza na Tradição é um movimento para pretos, brancos, amarelos, gays, orientais, indígenas. Tanto que um dos momentos mais importantes do desfile será a enorme bandeira LGBT estendida em uma das alas do nosso terceiro setor, onde componentes dessa comunidade defendem a reza pelo direito de existir.”
Qual a emoção de desfilar ao lado de um carro que representa a fé de forma tão abrangente?
“Fazer arte no Brasil é um desafio. Fazer arte no Grupo Especial do Carnaval é ainda mais desafiador, porque precisamos superar todos os obstáculos financeiros. Acredito que, sem fé, nada do que estamos apresentando aqui seria possível. Eu sou movido a fé, e foi ela que me trouxe até este momento especial na avenida.”
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Fotos: Rebeca Schumacker
Noites cariocas: Vigário apresenta manifestações culturais exaltadas pelo cronista Vagalume em seu abre-alas
A Vigário Geral foi a sexta escola a se apresentar no segundo dia de desfiles da Série Ouro e trouxe, em seu abre-alas, as noites cariocas descritas pelo cronista Francisco Guimarães, na virada do século XIX para o XX, em sua coluna Ecos Noturnos. A alegoria retratou cenas culturais negras e periféricas de um Rio de Janeiro distante, revisitado pela agremiação da Zona Norte. Da antiga boemia carioca ao Circo dos Cavalinhos, o carro alegórico mostrou que o cenário cultural da Belle Époque era muito mais do que os bailes do Theatro Municipal.
Em entrevista ao CARNAVALESCO, Caio Cidrine, carnavalesco da agremiação, falou sobre a noite carioca negra e suburbana retratada pela alegoria na Marquês de Sapucaí.
“Juntamos alguns signos e símbolos para representar o trabalho de Vagalume sobre a noite. A Velha Guarda vem representando a boemia, as composições vêm como damas do cabaré e simulamos a chegada de um cirquinho popular com a carruagem árabe e uma lua bem grande no alto”, explicou.
O carnavalesco relembrou que Vagalume, em sua coluna Ecos Noturnos, exaltava gêneros musicais como o samba e o rancho, além de artistas como Benjamin de Oliveira e Duda Neves, indo na contramão de uma época em que os sambistas, por exemplo, eram criminalizados pelo Estado brasileiro.”Se hoje a gente está falando de Carnaval, talvez seja porque lá atrás ele teve a coragem de falar das práticas dançantes e culturais negras no jornal”, declarou Cidrine.
A alegoria trouxe, nos detalhes da composição cenográfica, exemplares dos jornais onde foram publicadas as crônicas de Vagalume, destacando sua originalidade e orgulho pelas noites cariocas. “Ao mesmo tempo que, na capa do jornal, saía uma manchete acusando sambistas de invasão, estava lá na coluna dele, no mesmo jornal, a noite carioca que ele cobria”, disse.
Caio afirma que a escolha do enredo, proposto em parceria com Alex Carvalho, também carnavalesco da agremiação, se alinha com o orgulho suburbano da Acadêmicos de Vigário Geral. “A gente queria um enredo que tocasse no orgulho suburbano da escola. A Vigário é uma escola que se orgulha de ser suburbana, de ser favela”, afirmou, lembrando que o último bairro do Rio, que faz divisa com Caxias, está frequentemente nas páginas dos jornais devido à violência urbana.
Para o ator Caio Barbosa, de 23 anos, responsável pelo elenco que veio à frente da alegoria representando a arte de Benjamin de Oliveira, falar de Vagalume na avenida é dar protagonismo à história e ao legado de pessoas pretas. “Queremos contar as histórias de pessoas pretas que são apagadas, porque as pessoas não falam de Vagalume, não falam de Benjamin. É importante unir esses personagens para colocar o protagonismo preto de volta ao palco”, afirmou.
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Fotos: Rebeca Schumacker
Mães Espirituais: as baianas da Porto da Pedra e a força ancestral na avenida
A maternidade das baianas se une novamente a uma figura maternal presente no enredo. Com a fantasia “Mães Espirituais”, as baianas da Porto da Pedra trouxeram a mensagem de que o corpo e a floresta são um só.
As baianas representaram as anciãs míticas que, segundo a mitologia Munduruku, transmitiram os ensinamentos do grande criador Karusakaibê, reforçando que a união entre o corpo e o espaço que se habita é essencial. Um espaço doente gera corpos doentes. Assim, as mães espirituais são fundamentais nos processos de cura.
“Nossas baianas estão representando as mães espirituais, que estão diretamente ligadas ao enredo. As baianas são as mães da escola, cozinham e cuidam de nós, então nada mais justo do que estarem à frente da escola e representarem as mães que cuidam da natureza e dos indígenas”, disse o diretor da ala das baianas Kleber Ferreira, comerciário de 65 anos.
Desfilando no primeiro setor da escola, as mães espirituais da Porto da Pedra usaram um figurino levíssimo, todo trabalhado em laranja e amarelo, com uma saia vazada que criou um efeito visual impactante.
Além de aprovarem a fantasia, as baianas destacaram ao CARNAVALESCO o significado profundo do papel que estavam representando.
“Estou há dois anos como baiana da Porto da Pedra e achei essa fantasia maravilhosa. Somos as mães espirituais que cuidam da Amazônia, da floresta em si e de todos que moram e dependem dela”, contou Maria Vilani, doméstica de 67 anos.
Sônia Santos, baiana há 22 anos pela Porto da Pedra, reconheceu uma parte de sua própria história no simbolismo da fantasia.
“A fantasia é ótima, muito bem feita, e representa a cultura indígena e suas mães, que cuidavam das pessoas, da saúde e até dos espíritos. Os indígenas enfrentavam conflitos sobrenaturais, e eram as mães espirituais, as rezadeiras, que resolviam. Na minha família, havia mulheres que rezavam pelos outros. Minha avó era uma dessas rezadeiras, uma verdadeira mãe ancestral. Por isso, vejo muita conexão entre essa cultura e a minha própria história”, declarou Sônia, doméstica de 69 anos.
Para muitas dessas mulheres, a fantasia representava mais do que um elemento do desfile: era um elo com suas próprias histórias e raízes. O simbolismo das mães espirituais resgatou memórias de rezadeiras e curandeiras, que, por gerações, protegem suas comunidades com fé e sabedoria.
“Estamos vestidas como mães espirituais em um enredo que fala sobre indígenas e a floresta. Viemos como mães que protegiam a natureza e as pessoas de sua tribo. Esse é o verdadeiro significado da nossa roupa”, disse Rosaria Xavier, costureira de 64 anos, que desfila como baiana há 28 anos.
As baianas da Porto da Pedra não apenas desfilaram com beleza e leveza, mas também trouxeram a força ancestral das mães espirituais, reforçando a conexão entre humanidade e natureza. A simbologia em suas fantasias capturou a essência do enredo, ressaltando a importância da preservação e do respeito às tradições indígenas.
Entre Ratos e Engrenagens: A Alegoria Crítica do Porto da Pedra
A Porto da Pedra trouxe como primeira alegoria em seu desfile o abre-alas “Distopia Fordista”, com o tradicional Tigre no carro. A alegoria trouxe um tom crítico logo no primeiro setor da escola, chamado “Tapajós: Das Origens à Distopia Que Ergueu a Cidade Arredia”.
Com as cores cinza e vermelho, a primeira alegoria do Tigre de São Gonçalo representou o sistema de produção em massa criado por Henry Ford, que, diferente dos povos indígenas, que viviam sua relação com o mundo e a natureza em comunhão, os não indígenas tinham uma visão extremamente racional e econômica, com o consumo em massa baseado em processos automatizados, linha de produção, exploração de trabalhadores e produção em série. Totalmente oposto ao modo de vida dos povos originários.
O capitalismo, como o centro e causa maior desse problema, é reproduzido no carro, que apresenta um bicho feroz na sua frente, o tigre, em um carro sem cor, sem a beleza da natureza, que apenas visa o metal-capital.
Os componentes da alegoria vieram fantasiados de ratos, simbolizando o trabalho desenfreado e explorador dos trabalhadores. O ator Amin Richan, de 21 anos, estreou na Porto da Pedra na composição do abre-alas e contou ao carnavalesco a crítica que a alegoria traz.
“Esse carro é sobre o fordismo e fala sobre exploração, tanto que tem o explorador com o seu chicote em cima do carro, que está explorando a gente, os ratos que estão trabalhando nessa produção em série, exploratória, e seguem sofrendo nesse mundo sem felicidade, com tristeza, depressão, causada pela exploração”, contou o ator.
O coordenador e coreógrafo da alegoria, Breno Silva, detalhou a concepção da alegoria e tudo aquilo que ela veio representando.
“O carro é todo baseado no filme Tempos Modernos, do Charlie Chaplin. E a ideia é a gente trazer justamente esses movimentos de fábrica, como era o fordismo, onde tudo era mecânico e sem parar. E é um carro repleto de ratos, ratos trabalhadores, que estão aqui justamente servindo ao Ford. Podem reparar que o carro está infestado de ratos, e eles vão transitar a todo momento, fazendo essa movimentação, trabalhando. Eles interagem com a escultura do Ford que está lá em cima. É basicamente uma representação do trabalho exploratório”, disse o coreógrafo, de 29 anos.
A professora Daiane Colli veio compondo o carro e falou sobre as críticas que cercam a concepção da alegoria e algumas das camadas sobre a crítica ao capitalismo devastador, que tanto destruiu e ainda destrói as nossas matas.
“Nós viemos representando os ratos. O nosso carro representa uma fábrica abandonada na floresta amazônica. E nós somos os ratos que ainda estamos trabalhando nessa fábrica como operários, aqueles operários que são sempre submetidos a trabalhos exaustivos, trabalhando sempre na mesma coisa. Nós somos essas pessoas meio fantasmas, meio o que sobrou dessa fábrica. Além disso, o carro vem criticando o capitalismo exacerbado, que vem destruindo a floresta, que não pensa nas pessoas que estão habitando ali e, assim como o samba diz, a sua engrenagem passa por cima de tudo que aquele lugar tinha antes de a fábrica existir”, declarou a professora, de 27 anos.
Alegoria e crítica se misturaram no desfile da Porto da Pedra, trazendo à avenida uma reflexão sobre o impacto do capitalismo na floresta e na vida das pessoas. A representação dos ratos operários evidenciou a exploração desenfreada, enquanto a ausência de cores no carro reforçou a frieza desse sistema.
Resistência na avenida: bateria da Unidos de Bangu representa a luta dos povos originários do Rio contra a repressão do Estado
Com o enredo “Maraka’ Anandê – Resistência Ancestral”, o desfile da Unidos de Bangu na Série Ouro do Carnaval 2025 homenageou a Aldeia Marakanã, comunidade indígena no Rio de Janeiro, situada ao lado do Estádio do Maracanã. O local se tornou um símbolo de resistência indígena, por estar constantemente no centro de conflitos territoriais com o Estado. A bateria da escola representou o episódio de 2013, quando um grupo de indígenas foi removido do local durante as obras do Maracanã para a Copa do Mundo de 2014. Desde então, os indígenas seguem reivindicando sua importância cultural e histórica na região.
“A mensagem é bem clara e o enredo é bem direto. A bateria, que é a maior ala da escola, vem vestida de policiais do choque, que inúmeras vezes tentaram expulsar os indígenas da sua Aldeia. O samba tem uma parte que fala sobre o militarismo, e a nossa ideia é fazer esse paralelo demonstrando a força que o índio tem para vencer essa guerra. Faremos uma coreografia que coloca o índio e o policial frente a frente, e no final do conflito, o índio sai vencedor e decreta a paz, como deveria ser na vida real”, explica Lion, mestre de bateria, que defende com firmeza a escolha de retratar a Aldeia Marakanã como representação da luta indígena no país.
“É um recorte que vale a pena ser falado, porque não estamos fazendo uma crítica, estamos fazendo uma denúncia. Ao falarmos do Rio, aproximamos essa realidade para muitas pessoas que vêm nos assistir hoje”, acrescenta o mestre.
“Quando fiquei sabendo que a nossa fantasia seria de policial do BOPE, fiquei surpreso, mas depois entendi. Mostrar a repressão aos indígenas para um público tão grande é uma forma de conscientizar a população sobre um tema que não pode ser esquecido. Não é porque o episódio retratado aconteceu há algum tempo que outros iguais não continuem acontecendo até hoje. Temos que manter essa lembrança viva, e o Carnaval traz essa visibilidade”, ressalta o chocalheiro Cléberson Archanjo, de 22 anos, que descobriu mais sobre a história ao entrar para o time de ritmistas da escola.
Esse desfile foi muito especial para a Vermelho e Branca, que foi uma das escolas afetadas pelo incêndio na fábrica Maximus Confecções, em Ramos, perdendo grande parte de suas fantasias. Tudo isso deu um toque ainda mais emotivo à apresentação, que já abordava um tema sensível para a sociedade.
“A emoção de fazer parte desse desfile já está vindo desde o dia do incêndio, que foi muito triste para a nossa agremiação. Agora, ainda mais, eu, os diretores e todos os ritmistas temos a responsabilidade de entregar o melhor junto com a nossa escola, para contar a nossa história também”, destaca Lion.
O ritmista Leandro Martins, de 49 anos, estreante na escola da Zona Oeste, fez um paralelo entre a tragédia e a resistência dos povos originários, tema do enredo.
“Um dos maiores ensinamentos dos nossos ancestrais é a superação, e neste ano, a Bangu demonstrou que absorveu essa lição ao dar a volta por cima e fazer um excelente desfile, mesmo sem competir. A nossa bateria veio para pedir à sociedade, por meio de todos os que assistiram ao Carnaval, que valorizem os nossos ancestrais e respeitem as causas indígenas. Para mim, é gratificante estar participando desse momento único”, complementa o componente.