Uma das maiores vozes dos gêneros samba e samba-enredo vai parar de cantar na Sapucaí. Neguinho da Beija-Flor anunciou a sua aposentadoria do carro de som da Deusa da Passarela, aos 75 anos. 50 deles dedicados à escola de Nilópolis, onde cantou todos os 14 títulos. Em nova fase da carreira, ele seguirá cumprindo sua agenda de shows e levando o carnaval e o samba para o mundo. Ainda não há sucessor definido. Neguinho começou a cantar no bloco carnavalesco Leão de Iguaçu. Depois, se juntou ao Cordão da Bola Preta e logo foi descoberto e ingressou na escola de samba onde fez sua casa, sua família e seu chão.

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Fotos: Allan Duffes/CARNAVALESCO

Luiz Antônio Feliciano Marcondes foi Neguinho da Vala. Mas, não se contentou em catar rãs nos córregos e, nas asas de um Beija-Flor, voou para ganhar o mundo. Voz marcante do samba, tornou-se referência. Nascido na Baixada, hoje é o norte de quem inicia a carreira nos carros de som de escolas. Reverenciado no carnaval, é rei em Nilópolis. Pé quente, já chegou ganhando o título da elite do carnaval. Simplesmente, Neguinho da Beija-Flor. Em 2025, ele completará 50 anos de carreira e foi nas bodas de ouro, o momento escolhido para o adeus à avenida de tantas glórias. Neguinho contou ao CARNAVALESCO que já estava pensando na aposentadoria, ponderando seus compromissos e a agenda do carnaval.

“Isso começou há uns três, quatro anos atrás. Comecei a amadurecer essa ideia de que o tempo passa, e você tem que deixar a vez para a rapaziada que está chegando com todo o pique e gás. Então não vou ficar empatando, querendo a vez da rapaziada que quer chegar e ter seu lugar ao sol. Também tenho viajado muito, já não tenho o mesmo tempo de antes”.

Neguinho revelou que está morando em Portugal e precisa viajar muito. Por isso, ele deu início a uma série de últimas vezes para emocionar os sambistas. Gravou sua última faixa de samba-enredo pela Beija-Flor. Fez seu último ensaio de rua, no último dia 7 e terá seu último ensaio de quadra. Terá ainda o último ensaio técnico e o derradeiro último desfile. Mas, quem conhece a rotina da Deusa da Passarela, sabe que nenhuma dessas últimas vezes será tão difícil como foi para o Neguinho anunciar a despedida para o patrono, Anísio Abraão David.

“Eu realmente levei esses 3, 4 anos para tomar essa decisão porque eu não tinha coragem de chegar nele. O difícil foi chegar nele e dar essa notícia. Mas ele aceitou legal, perguntou quantos anos eu tinha. Falei 75. E ele disse que realmente, depois dos 70 é difícil. Mas ele me pediu para pensar, se não queria ficar mais um pouco. Eu disse que não era preciso. Eu sei que para ele foi difícil, mas ele aceitou”, revelou o cantor.

Para o presidente Almir Reis, a aposentadoria de Neguinho é um momento triste na perspectiva de fã. Assim como outras pessoas da escola, Almir conta que a notícia foi um choque.

“A admiração que eu sempre tive por ele desde novo e hoje, eu sendo o presidente e ver o Neguinho ir embora, estou muito triste. Não dá para explicar o que estou sentindo. Esse anúncio da saída do Neguinho foi um choque para todos nós. Estamos todos muito tristes, mas ao mesmo tempo, nos deixou com mais sangue nos olhos para fazer um grande desfile. O Neguinho entrou na escola com a Beija-Flor ganhando e vamos torcer para que ele saia, mais uma vez, levando um título”.

Alinhado ao discurso do presidente, o diretor de carnaval Marquinho Marino também pensa que o último desfile do grande intérprete vai fazer com que a comunidade busque o título na garra e no canto mais forte.

“Eu acho que é mais uma situação de emoção que vai ser difícil conter. A gente não tem como prever o que o coração do componente vai falar na hora. Mas eu acredito que essa emoção vai ser revertida para muita garra, para muita força e a gente vai trazer esse carnaval aí pela Beija-Flor, pelo presidente Almir que merece também, pelo trabalho que ele faz. Será pelo Neguinho e pelo nosso mestre Laila”.

Neguinho canta Laíla

O desfile de 2025 da Beija-Flor será marcado pela saudade. No enredo do carnavalesco João Vitor Araújo, “Laíla de todos os santos, Laíla de todos os sambas”, a homenagem ao maior sambista do mundo, e no microfone, a maior referência de samba-enredo para cantar. Foi de Neguinho a autoria do samba que deu à Azul e Branca o primeiro título do carnaval. Que ele mesmo cantou, sob a coordenação de Laíla. O enredo era “Sonhar com rei dá leão”, do carnavalesco Joãosinho Trinta. Daquele ano, 1976, vieram mais dois títulos consecutivos (77 e 78). E Neguinho se acostumou a vencer ao lado de Laíla.

“A nossa convivência era maravilhosa. A gente brigava de vez em quando, mas a gente só briga com quem gosta. E o Laíla foi o principal incentivador da minha carreira, bem antes da Beja-Flor, no Cordão da Bola Preta, no Renascença… Foi meu primeiro produtor e quem me deu muita força para que eu não desistisse da carreira”.

Neguinho dos momentos inesquecíveis

Todo sambista tem um momento marcante com o Neguinho. E todo não-sambista sabe gritar “olha a Beija-Flor aí, gente”. Para Claudinho, lendário mestre-sala da escola de Nilópolis, é no grito de guerra que a comunidade entra no modo “rolo compressor”; que o carnaval se acostumou a ver.

“Neguinho é um ícone, uma entidade. O grito de guerra é marcante. A gente já entende que a escola tem que pulsar 220 por hora, tem que botar garra, determinação. Quando o Neguinho fala ‘olha Beija-Flor aí, gente’, todo mundo sabe que precisa dar o máximo porque o grito dele é o grito de direção, do caminho para chegar até a vitória”.

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Ao ser questionado sobre um momento inesquecível dele mesmo, Neguinho volta no tempo. Ele lembra do primeiro carnaval, quando o cantor ainda podia disputar no concurso de samba-enredo, e cita Laíla como parte importante de sua trajetória de sucesso.

“Um momento inesquecível foi em ‘Ratos e Urubus, larguem minha fantasia’, tem também o primeiro campeonato no ‘Sonhar com o Rei dá Leão’. O Laíla foi muito importante na minha vitória no samba, na minha vitória da Beja-Flor”.

Quem não se lembra de 2009, quando Neguinho casou no sambódromo? Ele selou a união com Elaine Reis, antes do desfile da Beija-Flor. Ele ainda estava careca, se recuperando do tratamento de um câncer. A porta-bandeira Selminha Sorriso, outra gigante do carnaval, lembra dessa fase como algo inesquecível para ela.

“Tem uma imagem dele na quadra com uma bata, ela branca ou prata, e ele careca. E aí você fica pensando: esse negócio de câncer tem cura. Que bom que ele foi um dos escolhidos para ficar curado e continuar entre nós com esse com esse grito de guerra, que vai fazer muita falta para a gente durante muito tempo. Esse momento do ano que ele casou e que ele estava se curando do câncer é muito mágico”.

Com os olhos marejados, o presidente Almir Reis contou de quando ele criança. Tal como muitos meninos, ele contemplava os sambas cantados por Neguinho na sala de casa.

“Eu era muito novo, uns 11 anos. Lembro que no carnaval de 1979, eu ficava em casa assistindo o Neguinho pela televisão. Eu me encantava com ele cantando samba, cantava junto. Eu me lembro muito bem de uma parte do samba e eu achava aquilo magnífico. Eu olhava o Neguinho e ficava idolatrando, apaixonado”.

Neguinho do futuro

O homem de tantos sambas além dos enredos, embalou o carnaval com a música tema da TV Globo, empolgou as torcidas eternizando o domingo no Maracanã, e emocionou apaixonados com “Ângela” e tantas outras canções que marcaram gerações. Agora, Neguinho se dedicará aos palcos, dando adeus ao microfone principal de sua comunidade nilopolitana. Ele revelou que não pensa na sucessão, que deixou para a escola tratar do tema. A Beija-Flor, por sua vez, garante que não é a prioridade e que a direção firmou acordo para só pensar em um cantor depois do carnaval.

Para o futuro, Neguinho não esconde que gostaria de ser enredo: “Seria bom, seria legal”, ele disse. E aproveitou para brincar sobre a sua aposentadoria também dos palcos: “Eu vou ver se sobra aí mais uns 5, 10 anos. O carnaval toma muito tempo da gente e me impossibilita de algumas coisas. Eu vou ver se dou continuidade aos shows para garantir uma aposentadoria”, disse.

A despedida de Neguinho da Beija-Flor deixa uma marca no samba. Por outro lado, abre espaço para novas gerações que, seguirão se inspirando no legado imortal do artista. A Beija-Flor e o samba jamais serão os mesmos sem sua presença, mas sua história continuará a ser cantada e reverenciada. “O carnaval vai ter uma virada depois da aposentadoria do meu irmão Neguinho da Beija-Flor. Teremos agora outro momento do carnaval. Nos últimos anos, muitos grandes sambistas se foram. Mas o Neguinho não está indo para o plano espiritual. Ele está indo para voar para outras áreas, conhecer outras culturas, levar o carnaval do Brasil, sobretudo do Rio de Janeiro, a todos os cantos do mundo e, agora, com mais liberdade, com mais tranquilidade”, concluiu Selminha Sorriso.

Uma parte da história do carnaval se despede em 2025 para uma merecida aposentadoria da Sapucaí. O sambista chora de emoção, porque será cantado por ele o último samba-enredo na avenida. Quando a sirene tocar, a referência vai sair de cena para ficar nos bastidores guiando os caminhos de quem está por vir. Chora o público por saudade de sua voz. Chora a Beija-Flor por gratidão. Chora, cavaco.