“Beija-flor de Nilópolis é a próxima! Penúltima escola a desfilar na Marquês de Sapucaí, é a campeã do carnaval do ano passado, junto com a Mangueira, e vem em busca do bicampeonato…”. Nas palavras do locutor Fernando Vanucci, assim foi anunciada a entrada da Beija-flor de Nilópolis, durante a transmissão televisiva dos desfiles do carnaval carioca de 1999. Com o enredo “Araxá: lugar alto onde primeiro se avista o sol”, desenvolvido pela comissão formada por Cid Carvalho, Bira, Fran Sergio, Nelson Ricardo e Shanguai, sob o comando de Laíla, mesma configuração artística que tinha alcançado o primeiro lugar no carnaval de 1998, o desfile nilopolitano gerava grande expectativa, pela conhecida força da comunidade da escola, pelo campeonato conquistado no ano anterior e, também, pelo samba de enredo, consagrado como um dos favoritos da crítica durante o pré-carnaval.
O enredo enaltecia a cidade mineira de Araxá, apresentada como o lugar do Brasil onde primeiro se vê o nascer do sol. Embalada pela busca de novas fontes de
investimentos, como apresenta o historiador Luiz Anselmo Bezerra (2018), a Beija-Flor buscou empreitar o modelo que diversas agremiações vinham seguindo: tornar seus enredos comerciais através de parcerias, em sua maioria, com instituições municipais e estaduais. Tal estratégia, no contexto dos desfiles do Grupo Especial de 1999, foi levada a cabo por inúmeras escolas, de maneira direta (cujo resultado são os clássicos “enredos CEP”, caso do Salgueiro, que homenageou o aniversário de 450 anos da cidade de Natal, ou da Vila Isabel, que cantou a história, os festejos, as belezas naturais e os sabores de João Pessoa) ou indireta (quando um determinado lugar é exaltado enquanto peça para se completar uma narrativa maior, não presa a aspectos turísticos – caso do enredo que Rosa Magalhães criou para a Imperatriz Leopoldinense, escola que originalmente buscou investimentos na Holanda – mas o dinheiro europeu jamais chegou a Ramos).
E o benefício? Como essa questão era compreendida? É fato que negociações com o capital privado já ocorriam de maneira explícita desde a década de 1950, com os concursos financiados pela Coca-Cola, mas é na década de 1990 que o poder midiático conquistado pelos desfiles das escolas de samba passou, com força total, a incentivar negociadores a elaborar projetos de marketing e promoção turística baseados no desenvolvimento dos enredos. Vislumbrar a sua cidade, o seu estado ou o país-sede da sua empresa como fio condutor das histórias apreciadas pela Marquês de Sapucaí era considerada uma excelente oportunidade para uma ampla divulgação mercadológica nas mídias brasileira e estrangeira. Consequentemente, os corpos diretivos das escolas viam nessa troca de interesses a possibilidade de incrementar a verba para a produção das fantasias e alegorias, o que era bastante noticiado em matérias de jornais da época. Tal estratégia vingou e se cristalizou enquanto “filão” narrativo.
Araxá, aliás, é a primeira experiência de homenagem direta a uma cidade empreendida pela Beija-Flor, na década de 1990. Segundo Bezerra, no ano anterior (1998, quando a escola apresentou o imaginário caboclo da Ilha de Marajó, com o enredo “Pará: o mundo místico dos caruanas, nas águas do Patu Anu”) o processo de construção do enredo foi um tanto diferente, sem contratos de patrocínio noticiados pela mídia. Para o carnaval de 1999, diferentemente, existiu uma proposta direta de ajuda financeira. Como apresentado na sinopse do enredo e no desfile como um todo, a narrativa não fugia aos interesses dos patrocinadores; passaria na avenida a cidade de Minas Gerais, com destaque para diferentes episódios da sua história, a cultura popular, a culinária, as maravilhas das águas termais da região, a esplendorosa arquitetura.
O enredo foi bem aceito pela comunidade nilopolitana, desenhando o pré-carnaval de um ano em que Minas Gerais faria dobradinha na Sapucaí (a Portela cantaria o estado como um todo, em “De volta aos caminhos de Minas Gerais”). É possível, pois, passar ao aclamado samba de Wilsinho Paz, Noel Costa e Serginho do Porto. O Estandarte de Ouro, tradicional prêmio do carnaval carioca, coroou a letra e a melodia dedicadas a Araxá como o melhor samba do ano, o que é compreensível, pois embalou de maneira contagiante os brincantes da escola do início ao fim do desfile. Quando o intérprete Neguinho da Beija-Flor entoava o refrão de cabeça, “Araxá, Araxá…”, as arquibancadas e a comunidade devolviam: “Obá, obá!”. De um modo geral, pode-se dizer que o samba apresentava com bastante poeticidade o desenvolvimento de um enredo linear e descritivo. A letra inspirada e a construção melódica envolveram o Sambódromo de forma potente, com um refrão de meio corajoso e forte, exaltando mulheres cujas trajetórias se confundem com a história do lugar:
“Ana Jacinta de São José – é Beija!
Josefa Carneiro de Mendonça – Rara beleza!
Josefa Pereira é força e fé – que sedução!
A escrava Filomena é fascinação!”
Trecho do samba de 1999 da Beija-flor de Nilópolis
Na abertura da escola, a partir do carro abre-alas até a terceira alegoria, podia-se observar uma curiosidade: as fantasias das alas e os adereços eram predominantemente construídos em tons terrosos suavizados com tons de branco, sem o tradicional azul da bandeira nilopolitana. A explicação dada pelos narradores da TV Globo é que o enredo falava, naquele trecho, da terra, do chão, dos povos tradicionais que ali viveram e dos colonizadores que chegaram, dizimando populações inteiras. Um dos pontos altos do desfile, a famosa ala das baianinhas, vestida de “Arte Negra”, fazia parte do segundo setor, com bastante palha da costa em suas ombreiras e uma evolução impressionante. Destaque também para Jorge Lafond, presente na segunda alegoria como o “Chefe do Quilombo do Ambrósio”, com uma fantasia completamente branca e prata. Outra ala bastante comentada e premiada foi a ala de comunidade nomeada “Refúgio da Corte” e presente no quarto setor, que desenvolvia uma coreografia inspirada nos minuetos dos bailes da corte portuguesa, além de possuir diferentes figurinos, tanto em forma quanto em cor, o que chamava bastante a atenção.
No encerramento da narrativa do enredo era possível observar setores que expressavam os interesses dos patrocinadores, como o Grande Hotel de Araxá e a estância hidrotermal, cujo imaginário aquático permitiu diálogos com povos da Antiguidade, como egípcios e assírios. O dado curioso é que, apesar da presença de tais elementos, o patrocínio não apareceu, de acordo com o relatado por diretores da própria escola. Sobre a visualidade, é possível afirmar que, mesmo tendo sido construído por cinco artistas com diferentes estilos e trajetórias, as alegorias, as fantasias e o desfile como um todo apresentaram uma unidade muito grande, assinatura que marca a criação coletiva desse grupo à frente da escola.
A Beija-Flor se apresentou de forma grandiosa, unificando alegorias muito bem acabadas, fantasias inspiradas, uma comunidade aguerrida e, como apresentado anteriormente, um samba de fazer pulsar o coração de qualquer sambista. É, de fato, um bom desfile a ser revisitado. Apesar de ter ficado em segundo lugar, atrás apenas da Imperatriz Leopoldinense, o resultado consolidou a comissão de carnaval na produção dos desfiles nilopolitanos, que, de 1998 a 2005 conquistou quatro títulos e quatro vice-campeonatos.
Autor: Gabriel Haddad, Mestre em Artes, Pesquisador do OBCAR/UFRJ
Instagram: @obcar_ufrj
Referências
BEZERRA, Luiz Anselmo. As transformações nas redes de financiamento das grande escolas de samba do Rio de Janeiro (1984-2015).Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.