Se a historiografia oficial não confere o devido valor e reconhecimento a lideranças populares, cabe a nós disputarmos o rumo da produção da memória e louvar os nossos heróis. Enquanto os livros escolares seguem prestando reverência a colonos, bandeirantes, militares e escravocratas, silenciam sobre o papel de personagens comuns na construção do país. O samba brasileiro, neste sentido, é um universo repleto de grandes figuras, de feitos vultuosos que permanecem na memória coletiva embora não constem nos livros. Esta coluna é sobre a genialidade de um dos maiores intelectuais deste país: Paulo Benjamin de Oliveira, o nosso professor.
Quando nasceu, naquele 18 de junho de 1901, os frutos da abolição tardia e incompleta, então recém conquistada, constituíam barreiras (quase) intransponíveis. Não houve qualquer política de acesso à terra, de educação, formação ou qualquer garantia das mínimas condições de subsistência para a negritude brasileira. Também vivenciamos um período em que efetivamente havia uma política pública de embranquecimento do país: quer seja pelo incentivo a vinda de imigrantes, quer seja pelo abandono e exclusão da massa de libertos e seus descendentes.
Se depois da abolição veio a liberdade, junto a esta vieram categorizações, classificações e construções sociais sobre a negritude que se transformaram em obstáculos materiais para o desenvolvimento dos libertos, para sua integração na sociedade de classes como mão de obra assalariada e até da manutenção das suas vidas. Este era o Brasil daquela virada de século.
Paulo nasceu em uma família negra e pobre de uma cidade que queria se transformar. Aos moldes de Paris, o Rio de Janeiro almejava uma remodelação urbanística que a inserisse na lógica da “modernidade”. Na prática, este processo empurrou as camadas populares, de ampla maioria negra, para os subúrbios e favelas através das reformas de Pereira Passos. Assim ocorreu com a família Oliveira, que migrou da região central da cidade para o subúrbio de Oswaldo Cruz.
Filho de pai não reconhecido, tinha dois irmãos. Sua mãe, Dona Joana, teve que enfrentar todas as dificuldades e desafios de ser uma mulher negra, separada, com filhos para criar e sustentar no Brasil de 1900. Paulo começou a trabalhar cedo para ajudar no orçamento familiar, de trampo em trampo, até se estabilizar na profissão de lustrador. Assim como seus irmãos, estudou pouco, tendo feito apenas o primário. Antes de migrar com a família para região de Oswaldo Cruz, nasceu e cresceu no bairro da Saúde, circulando na região da Pequena África onde teve contato com todos aqueles bambas da primeira geração do samba carioca: Donga, Ciata, Pixinguinha…
Na década de 1920 se estabelece para Oswaldo Cruz e é justamente neste local que vai construir-se como um baluarte da cultura popular brasileira. Paulo passa a frequentar as rodas de samba e o candomblé de Esther Maria Rodrigues, a Dona Esther, liderança de uma estrutura comunitária que tecia as relações do bairro. Este era um espaço de efervescência cultural que reunia políticos e sambistas de outras localidades, sendo um espaço privilegiado de contato, central na vida daquele bairro até então rural onde moravam operários que, através do trem, iam trabalhar no centro da cidade. Junto a sambistas como Caetano e Rufino, Paulo funda o bloco Baianinhas de Oswaldo Cruz, que depois se transforma no Conjunto Carnavalesco de Oswaldo Cruz, precursor da gloriosa Portela.
Paulo foi o líder de uma construção específica: das escolas de samba como forma de disputa por melhores condições de vida aos negros da cidade. Através da arte buscou dialogar, se relacionar com outras camadas sociais pelas brechas e frestas de um projeto nacional em curso. Para Paulo, escolas de samba eram formas de as comunidades negras mostrarem que podiam fazer parte da modernidade que aquela sociedade pretendia construir. Independente da sua educação formal, se constituiu em uma grande liderança do seu tempo pela sua inteligência, articulação e criatividade.
Esta liderança era exercida interna e externamente: ao mesmo tempo que liderava a Portela, ajudando a construir um modelo de escola de samba e de desfile, Paulo frequentava redações de jornais e os círculos da intelectualidade carioca construindo pontes e combatendo a velha ideia do carnaval popular como espaço de brigas e violência que servia para ampliar a marginalização dos sambistas. Isto é o papel de um intelectual orgânico.
Escola de samba, para Paulo, é uma expressão política, e, inegavelmente, a tese de Paulo foi vitoriosa: o carnaval das escolas de samba contribuiu para alterar as visões da negritude no Brasil. Se o racismo permanece, também é verdade que a cultura produzida por negros e negras deixou de ser caso de polícia e passou a ser entendida como símbolo nacional, em um processo ambíguo, mediado e negociado. Com todas as contradições que este processo de mediações e negociações implica, é importante compreender que, dentro daquele contexto, foi uma grande vitória possível apenas pela capacidade intelectual e a habilidade política de figuras como Paulo Benjamin de Oliveira.
Na minha perspectiva, o samba se configurou historicamente como uma forma de sociabilidade e expressão negra, mas também como uma forma de estabelecer diálogo; ou seja, foi também através do samba que esta população negra historicamente marginalizada e perseguida buscou a sua integração na sociedade.
Dizer isto, de forma alguma, pressupõe que os desafios da negritude brasileira estão solucionados; longe disso. O Brasil é um país absolutamente desigual e essa desigualdade é profundamente marcada por uma brutal associação entre classe e raça. Ainda assim, é preciso pensar que só o fato desses corpos negros e negras ainda existirem é um ato de resistência daqueles que insistiram não apenas em sobreviver, mas também em preservar os seus valores, a sua memória, cultuar sua ancestralidade e expressar suas visões de mundo. As expressões da negritude brasileira persistem como forma de valorização histórica de manutenção de hábitos, crenças, pensamentos e práticas que se perpetuaram através da oralidade e da força dos coletivos. Isto só foi possível graças a genialidade e a ação de sambistas, intelectuais negros que souberam construir para preservar, negociar para existir. Gênios como Paulo da Portela, nosso professor.
- Mauro Cordeiro: Doutorando em Antropologia (UFRJ), Mestre em Ciências Sociais (PUC-Rio) e Licenciado em Ciências Sociais (UFRRJ). IG: @maurocordeiro90 e TT: @maurocordeirojr