Pede passagem

É com imensa alegria que hoje inicio minha trajetória como colunista deste veículo tão importante para o mundo do samba. Quem entra na roda deve se apresentar, firmar sua presença. Compreendo que o samba, potente sistema cultural produto da diáspora negro-africana, traz em si múltiplas formas de expressão. O meu quinhão, neste universo rico, plural e complexo, tem sido o da produção de conhecimento através das palavras. Porém, (ah, porém) antes da formação profissional, existe a vivência. Antes de ser um pesquisador do samba, eu sou um sambista como muitos dos leitores e das leitoras. Neste texto de estreia gostaria de contar um pouco da minha história para que entendam quem é este que vos fala e, principalmente, de que lugar eu falo, penso e vejo o samba, o carnaval e as escolas de samba.

Nasci em uma família marcada pelo samba, em especial pelas escolas de samba do carnaval carioca. Tanto em termos afetivos, quanto profissionais, elas se configuram efetivamente como o meu mundo social familiar. Para ilustrar melhor tal fato basta citar que havia na família, no ano em que nasci por exemplo e falando apenas do Grupo Especial, um primo mestre-sala da Caprichosos de Pilares e uma prima porta-bandeira da São Clemente, uma avó e quatro tias que eram baianas da Unidos de Vila Isabel, um avô ex-diretor do Acadêmicos do Salgueiro (e da Riotur), uma mãe apaixonada e componente da Portela e uma avó, uma madrinha e um padrinho torcedores fervorosos da Estação Primeira de Mangueira. Uma família de/do samba, de forma amadora e também profissional.

O carnaval das escolas de samba não é uma simples data em nosso calendário, na verdade é o centro das relações familiares, fonte de significação das vivências e de produção de sentidos. Era comum perceber que os meus avós faziam ligação de datas importantes com sambas e desfiles. Uma vez perguntei quando eles se conheceram e, para minha surpresa, nenhum dos dois lembrava o ano. Surpresa maior tive quando afirmavam que foi “no ano da Xica da Silva”, aludindo ao desfile emblemático de 1963 da escola da qual sou devoto fiel.

mauro cordeiro

Não sou capaz de lembrar da primeira vez que fui a alguma quadra ou ouvi um samba-enredo marcante pois nasci, me criei e fui crescendo dentro desses espaços. Talvez a memória mais forte, ainda de menino, era de odiar a quarta-feira de cinzas. Entendam: não por ela representar o fim da folia; mas por se configurar, na minha família, em momentos de tensões, brigas e disputas visto que as paixões eram diversas e as rivalidades também. Era briga de marido e mulher, irmã com irmã, primo com prima, pelo amor que cada um nutria pelas suas agremiações. O amor e as relações parentais ficavam sempre em segundo plano quando o que estava em jogo era o resultado carnavalesco.

Também é interessante notar, nesta tarefa autobiográfica ao qual me proponho, que o desfile em si era secundário. O meu interesse pelo samba e pelas escolas de samba se consolidou através de uma curiosidade aguda pelas histórias e pelas memórias dos meus mais velhos. Fui me transformando em um jovem com mania de passado, como frequentemente era chamado, por viver sendo encantado com tudo que lia, ouvia e descobria sobre as agremiações e seus personagens, muito mais do que pelos desfiles em si. Não significa dizer que não amava os desfiles, sempre os amei, ansiei e me emocionei com os cortejos, mas era a potência daqueles coletivos e do samba que me atraiam.

O meu avô Ricardo é um grande colecionador e possui um acervo extremamente rico. Muito antes do Youtube, assisti a vários desfiles, que pela idade não vi, através das fitas VHS que ele ainda mantém com cuidado e esmero. Para o meu avô, talvez, essas sejam as maiores relíquias do seu patrimônio. Embora gostasse, como ainda gosto, de rever desfiles antigos, o que fazia meus olhos brilharem eram os domingos em que a antiga vitrola do vô Ricardo executava tanto LPs de sambas-enredo, quanto discos com pérolas das Alas de Compositores das escolas. Ouvíamos juntos aquelas melodias requintadas e brindadas por versos inspirados de compositores que, na maioria dos casos, não alcançaram a glória da fama e do prestígio, mas que foram essenciais na construção deste universo. Eu era brindado pelo meu griô com histórias saborosas e ricas de quem viveu momentos históricos e que talvez nem tenha a exata dimensão.

Minha avó Edina contava orgulhosa que, no tempo dela, a comunidade contribuía para a escola e ainda guarda os carnês que precisava quitar como componente da Ala das baianas para ter a sua fantasia. Ouvi, por várias e várias vezes, que o casal ocupa a posição mais privilegiada no ritual por serem os guardiões do pavilhão, síntese do conjunto de valores e sentidos que cada escola materializa. Além disso, tiveram as aulas de cavaquinho, do qual ainda sou um estudante não disciplinado, uma tentativa frustrada de formação como mestre-sala, algumas tentativas como compositor e a emoção indescritível de desfilar, desde os 16 anos, pelo Acadêmicos do Salgueiro tendo meu pai como companhia.

Este conjunto de saberes e de práticas me formou como sambista. Fui sendo forjado para entender escolas de samba como espaços comunitários de vivência, de produção de identidades, de redes de relações entre pessoas de um determinado território e, sobretudo, como espaços estruturados a partir da cultura do samba.

A verdade é que eu cresci em um momento bem diferente. Os desfiles se expandiram, em todos os sentidos. Hoje são pensados, descritos, promovidos e entendidos como um espetáculo cultural de projeção internacional. Evidentemente isto é uma conquista, inegável e fundamental para as populações periféricas, majoritariamente negras, que através do carnaval inscreveram sua presença, material e simbólica, na cidade e no país. Os desfiles são espetáculos de beleza e emoção, imprescindíveis por tudo que oferecem e simbolizam.

Porém, sempre há porém. É preciso entender, pensar, debater e refletir que as escolas de samba são um tanto mais do que produtoras de desfiles. Escolas de samba nasceram como associações comunitárias, expressões territoriais de cultura negra. Foram, e ainda são, espaços imprescindíveis de sociabilidades, de encontros, de trocas, de relações.

As escolas são lugares de expressão da arte popular para compositores, por vezes sem a devida formação musical, que ali podem apresentar sua obra, se mostrar, mas também para passistas que através dos requebros e manejos dos corpos que se recusam a serem domesticados promovem encantamentos e ensinamentos. Nas agremiações ainda há espaço para formação de sujeitos, aprendendo valores que estruturam o chamado mundo do samba e se perpetuam e continuaram se perpetuando enquanto elas permanecem cumprindo seu papel.

O título deste espaço, “Tendinha”, presta homenagem ao disco histórico de um dos maiores gênios brasileiros: Martinho José Ferreira. A ideia desta coluna é trazer debates e reflexões sobre o universo das escolas de samba para muito além dos desfiles, dos títulos, dos prêmios. O objetivo é sempre pensar este mundo, que tanto amamos, em suas potencialidades e contradições tendo como fio condutor uma ideia da qual não abro mão: o samba é uma forma de pensar e viver o mundo. Como dizia o Mestre Candeia “enquanto se luta, se samba também”. Vamos seguir pensando e vivendo o mundo através do samba como se faz, desde o início do último século, nos terreiros, quadras, salões, barracos, barracões e tendinhas. Sambemos, camarás!

Mauro Cordeiro – Doutorando em Antropologia (UFRJ), Mestre em Ciências Sociais (PUC-Rio) e Licenciado em Ciências Sociais (UFRRJ).
IG: @maurocordeiro90
TT: @maurocordeirojr

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