O que as festas dizem sobre os grupos sociais que festejam? Qual é o sentido de se festejar? Há quem veja as festas como celebrações que alienam as comunidades das durezas cotidianas, representando ritos de esquecimento sem maiores profundidades. Há quem ache que festas são meros eventos desprovidos de sentidos mais amplos que o da celebração ligeira de datas estabelecidas pelo calendário. Ouso discordar dessas perspectivas.
Um dos primeiros pensadores a debruçar-se sobre o estudo das festas, o sociólogo Emile Durkheim percebia a relevância das festas como celebrações de efervescência coletiva que proporcionavam a superação da distância entre os indivíduos. As festas, neste sentido, representam espaços de reavivamento de laços sociais contrários ao da diluição comunitária. É na festa que o indivíduo se dissolve na coletividade, fortalecendo pertencimentos, estimulando sociabilidades e criando redes de proteção social dentro do grupo.
Duvignaud, outro que se dedicou a pensar as celebrações, viu na festa o poder negador, subversivo, anárquico. Uma liberação de si mesmo. A festa luta contra o individualismo e a decadência da vida em grupo.
No caso do Rio de Janeiro, é instigante recorrer a uma frase do poeta e compositor popular Laudenir Casemiro, o Beto Sem Braço. Instado a responder um dia por quê gostava tanto de festejar, o sambista respondeu: porque o que espanta a miséria é festa
E a grande festa da cidade é o Carnaval.
Mais do que a miséria econômica — e há evidentemente uma economia criativa que envolve as celebrações e precisa ser estimulada — a festa espanta misérias existenciais. Numa cidade marcada a ferro e fogo por séculos de escravidão, em que a exclusão social e espacial parece ter sido um projeto consistente dos homens do poder, as celebrações são frestas de incessantes reinvenções da vida, construção de identidades e renovação de pertencimentos ao território
Neste sentido, a gestão do prefeito Marcelo Crivella, absolutamente refratária ao Carnaval, demonstrou não apenas descaso com a cidade, mas intenção em destruir laços de pertencimento e ritos de celebração coletiva que escapassem às expectativas do grupo religioso/político ao qual o prefeito pertence.
Religiões criam laços de pertencimento, redes de sociabilidade, comunidades de afetos, senso de coletividade, sensação de proteção social, sentido de mundo etc. Cabe ponderar, todavia, que não são apenas igrejas, terreiros, mesquitas e sinagogas que criam isso: escolas de samba e blocos de carnaval, além de inúmeras outras formas associativas, também criam laços de pertencimento, senso de coletividade e afetos compartilhados a partir de elementos comuns.
Na disputa pelo poder político misturado ao mercado da fé, e na construção de solidariedade e pertencimento entre seus membros, a gestão Marcelo Crivella, adotou como uma de suas estratégias exatamente a destruição de outros laços de pertencimento, a partir de uma visão binária entre o bem e o mal, tentando fortalecer seu nicho de apoiadores pela desqualificação de outras formas de sociabilidade e saberes.
A tentativa de intervenção do poder público nas culturas de rua não é invenção recente. No Rio de Janeiro, notadamente, as manifestações de rua são marcadamente caracterizadas pela enzima africana que catalisou de formas diversas as práticas culturais na cidade. O projeto civilizatório mais permanente das elites brasileiras — inscrito no tempo e no espaço — é o da incessante criação de estratégias de controle e domesticação dos corpos. O fim da escravidão exigiu redefinições nestas estratégias de controle e coincidiu com os projetos modernizadores que buscaram estabelecer, a partir da segunda metade do século XIX, caminhos de inserção do Brasil entre os povos ditos civilizados.
O controle dos corpos se articulou permanentemente ao projeto de desqualificação das camadas historicamente subalternizadas como agentes de invenção de modos de vida. Produtoras de cultura, enfim. Este projeto de desqualificação da cultura atuou em algumas frentes, especialmente na repressão aos elementos lúdicos e sagrados do cotidiano dos pobres – notadamente os afrodescendentes — e de tudo aquilo, enfim, que resiste ao confinamento dos corpos, criando potência de vida. A rua é o espaço por excelência destas práticas
Ao longo da história, a sobrevivência potente da rua como espaço de produção incessante de cultura deparou-se com pelo menos três instâncias que tentaram normatizá-la, cada uma a seu modo e com mais ou menos ênfase em cada conjuntura: a repressiva, a moral e a econômica.
A repressiva é representada pelo poder público e seu aparelho de segurança pública. A moral é representada pelo imaginário de festa de depravação dos costumes, segundo os conservadores, e de festa alienante e despolitizada, segundo setores progressistas. A econômica é representada por empresas, mídias, indústria do turismo etc. que veem a rua como um espaço propício à circulação de capitais, difusão de padrões de consumo, propaganda de marcas e similares
A maneira como a prefeitura do Rio de Janeiro lidou com as culturas da rua, e especialmente com o Carnaval, flertou ao mesmo tempo — e aí talvez esteja a novidade — com as três instâncias citadas acima, a saber:
1 – A ordenação em uma dimensão repressiva é amparada na ideia de manutenção da ordem urbana; um argumento justificável em maior ou menor escala, já que o funcionamento da vida cotidiana na cidade pressupõe o cumprimento de normas estabelecidas. O poder público pode jogar com este argumento para legitimar suas ações e a tendência é que parte da população apoie as ações assim justificadas.
2 – A moral responde, sobretudo, a um público específico do espectro político do prefeito evangélico. Transcende, todavia, este universo e tende a ter o apoio de setores conservadores em um arco mais amplo que o religioso. A rua (o terreiro) como o mal e a casa (a igreja) como o bem fundamentam a dicotomia tão cara ao discurso destes setores.
3 – A econômica responde pelo menos a dois interesses: ao de grupos empresariais interessados em capitalizar eventos de rua e ao de grupos de empresários do entretenimento em espaços fechados que acham que perdem público quando a rua se transforma em espaço prioritário para a realização, por exemplo, de rodas de samba e similares.
Entender estas três dimensões que se entrelaçam — a repressiva, a moral e a econômica — é a chave para entender uma gestão que encarou a rua a partir do trinômio “ordem, moral e dinheiro”.
Espremido entre o moralismo conservador, a satanização de certo pentecostalismo e o interesse de empresários do entretenimento, o Carnaval viveu anos difíceis, mas sobreviveu. Não por causa da gestão de Marcelo Crivella, mas apesar dela.
* Por Luiz Antonio Simas – Texto publicado no Relatório da Comissão Especial do Carnaval da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro.