Por Leonardo Antan
Em meio a forte crise financeira e identitária que passa o carnaval das escolas de samba, as agremiações da Série A são as que mais sofrem em meios a súbitos cortes de verbas e a falta de estrutura de barracões. Em meio a tantas dificuldades, os
carnavalescos do grupo precisam de o dobro de criatividade e jogo de cintura para materializar seus temas e fazer um bom desfile.
Mas se engana quem acha que com tantas intempéries, os enredos do grupo estejam
fraco ou poucos diversos, pelo contrário, com propostas criativas que vão desde grande homenagens a temas tipicamente brasileiros, compondo um painel multifacetado e pra lá de interessante para quem vai acompanhar o show do grupo de acesso carioca.
Ainda não entendeu algum enredo? Tá perdido? Vem, que a hora se saber de tudo
para a Série A de 2019!
Os vultos e efemérides
É homenagem que vocês querem? Sempre comuns no grupo, as biografias e grandes
tributos a personalidades são um verdadeiro trunfo para conquistar o público e fazer
uma bom desfile. Em 2019, três escolas farão homenagens a nomes importantes da
cultura brasileira, mais do que isso, chama a atenção o fato destes enredos estarem
ligados pelo universo das artes dramáticas. Dois deles são sobre autores negros,
ambos pioneiros em suas áreas, e outro homenageia um dos grandes autores do país.
Na Santa Cruz, a homenageada é a grande Ruth de Souza, pioneira do protagonismo
negro no teatro, na TV e no cinema. Nas telonas, também brilhou Antônio Pitanga, um
dos atores mais importantes da nossa sétima arte que será cantada pela Porto da
Pedra. O desenvolvimento, nos dois casos, chama a atenção pela clareza, ambos
farão um passeio pela obra dos homenageados, falando de filmes, novelas e peças
que ambos fizeram. Aquela receita clássica e sem invencionices, nada mal, pelo
contrário.
Quem propõe uma narrativa diferente é o enredo da Unidos de Padre Miguel sobre o
dramaturgo Dias Gomes, assinado pelo grande enredista João Gustavo Melo, a
proposta vai além de um simples passeio biográfico e pensa o imaginário poética das
obras do homenageado, passeando por suas novelas e peças mais emblemáticas,
aproveitando para fazer críticas ao momento atual do país. O primeiro setor lembrará a
clássica “O pagador de promessas”, debatendo a intolerância religiosa, depois as
grandes novelas do autor cruzaram a avenida, separadas nas tramas rurais e urbanas,
finalizando com seu maior sucesso “Saramandaia”.
Andar com fé eu vou
Um levantamento que chama atenção nos temas que cruzarão a Sapucaí na sexta e
no sábado de carnaval é que a linha preferida dos artistas do grupo foi a de enredos
que versam sobre religião e fé. Nada menos que cinco enredos do grupo, entre treze,
falarão da relação do homem com o sagrado.
Abrindo os desfiles, a Unidos da Ponte retornará a Sapucaí apostando na reedição do
seu samba clássico de 1984, que fala sobre as diversas oferendas aos orixás do
candomblé nagô brasileiro. O enredo não poderia ser mais objetivo, fará um passeio
pelas principais divindades africanas que já estamos muito acostumados a ver na
Avenida. Curimba boa garantida.
Outra escola que falará de religiões afro-brasileiras é a Alegria do Zona Sul, só que ao
invés do popular candomblé nagô-yorubá, muito difundindo nos desfiles, a vermelho e
branco propõe uma exaltação à Umbanda, religião tipicamente brasileira surgida do
sincretismo de europeus, africanos e indígenas. Desenvolvido pelo enredista Diego
Araújo, não faltarão citações aos personagens típicos dos rituais da religião, como a
Pomba-Gira, o Zé Pilintra, os Caboclos e Pretos Velhos. De proposta simples, o tema
pode ser materializado com fácil leitura.
Falou de religiões de matriz africana é impossível não lembrar da intolerância e do
preconceito, infelizmente, mas esse será justamente o tema da Acadêmicos do
Sossego. A escola de Niterói terá como figura central do enredo Jesus Malverde, um
santo não oficial cultuado no México. Sem registros históricos sobre a existência real
da figura, ele é cultuado por narcotraficantes como uma espécie de Robin Hood. É
através desse personagem controverso, que o carnavalesco Leandro Valente pretende
passar uma mensagem contra a intolerância. Resta saber como tudo isso renderá em
quatro setores, a sinopse não dá muitas pistas a respeito.
Continuando na América Central, mas trocando o México pelo Panamá, a Estácio de
Sá traz um enredo que falará da fé católica ao Jesus Nazareno de Portobello, um
cristo negro símbolo do país. Escrito pelo jornalista Daniel Targueta, o enredo passeia
pelo mito de descobrimento da imagem, a festa em sua homenagem e termina
celebrando a união dos povos. Com forte pegada religiosa, o enredo tem os elementos
necessários para um bom desfile da vermelho e branco.
Ainda falando de fé, o enredo mais original nesta linha é o de outra escola de Niterói, a
Acadêmicos do Cubango vai abordar os objetos de fé no enredo “Igbá Cubango: a
alma das coisas”. Assinados pelos talentosos carnavalescos Gabriel Haddad e
Leonardo Bora, os quatro setores vão passear na relação entre homem e o sagrado
através dos ex-votos, passando não só pelos objetos oferecidos em agradecimento
aos santos mas também em objetos como os amuletos de proteção.
Por fim, um enredo que também abordará a religião, de alguma maneira, será o da
Renascer de Jacarepaguá, que vai cantar o “Dia 2 de fevereiro no Rio Vermelho”,
falando da festa de Iemanjá num dos bairros mais tradicionais de Salvador. É verdade
que o enredo passeará ainda por outros aspectos culturais da capital baiana, mas o
mote central será a grande festa sincrética e, com certeza, não faltará uma citação aos
orixás das religiões de matriz africana. O enredo tem uma linha desenvolvimento
simples e funcional que tem tudo para dar certo.
Tem mais variedade ainda…
Se o enredo da Renascer tem a sua pegada geográfica ao cantar a primeira capital do
Brasil, o único tema declaradamente CEP do ano vem da Império da Tijuca. A Formiga
contará a história do Vale do Café, reduto do noroeste fluminense, que conta com
mais de dez cidades que abrigaram grandes plantações do grão no auge do Segundo
Império. Especialista na cultura africana, o carnavalesco Jorge Caribé deu como mote
para o enredo a relação dos negros escravizados que chegaram na região, não
deixando de passar pela fé e pelas festas da região. A fórmula é batida, mas ainda
pode render uma agradável apresentação.
A negritude é tema do enredo da Rocinha, assinado por Junior Pernambucano, o
enredo “Bananas para o preconceito” entra na onda crítica para falar do preconceito
racial e exaltar o povo negro. O enredo passa pelo estigma histórico dos africanos e
exalta figuras como Chico Rei e Abdias Nascimento. A dúvida fica se o tema, apesar
de fundamental e tristemente atual, ganhará novos ares e contornos inéditos para sair
da mesmice.
Saindo do Rio, rumo ao Nordeste brasileiro, a Inocentes de Belford Roxo vai trazer “O
frasco do bandoleiro” sobre a cultura material dessa região. Lendo a sinopse, fica
difícil saber qual o fio condutor da narrativa que versará sobre bijuterias, frascos e
costumes do povo brasileira, mas nas linhas do resumo e no samba-enredo, ganha-se
destaque a figura de Lampião e o uso de joias pelo cangaço brasileiro. Resta saber se
o enredo será de mais fácil assimilação na pista.
Por fim, um dos enredos mais inusitados é o da Unidos de Bangu que vai narrar a
história da batata, o enredo passará pelo Império Inca onde o alimento era sagrado,
passeará pela Europa e chegará ao Brasil. De pegada bem clássica, o enredo não tem
mistérios e resta saber se a história de um alimento tão cotidiano tem uma história
interessante a contar.