A cada fim de semana, desde o dia 12 de março, as escolas de samba voltaram a ocupar o solo sagrado da Marquês de Sapucaí. Reencontro mais que esperado após mais de dois anos de silêncio. Ocupar o centro da cidade com batuque, festa e arte é um ato fundamental. Envolve o grito de resistência dessas instituições culturais, que há exatos 90 anos estão se transformando e afirmando sua importância a cada folia.
Nos últimos carnavais, os ensaios técnicos foram cancelados algumas vezes. Um erro imperdoável. Já que o evento ajuda a divulgar os cortejos oficiais e a conectar a cidade com suas agremiações. Logo, voltar à Sapucaí tem muitas camadas políticas e culturais também nesse sentido. Ocupar a Sapucaí é voltar para a nossa casa, seja na pista ou na arquibancada.
Lembro até hoje do meu primeiro ensaio técnico, foi em 2007, lembro de chegar cedo na arquibancada com minha mãe no Setor 3. Naquela época, cada agremiação passava pela pista pelo menos duas ou três vezes. Os ambulantes passavam vendendo todo dia de coisa. Desde que foram criados nos meados da década passada, esses treinos são um momento especial onde as agremiações se conectam com um público que não consegue estar nos desfiles oficiais. Uma demonstração de que as escolas de samba continuam instituições populares em muitos sentidos.
A cada final de semana, as arquibancadas são lugares de reencontro, de afeto, de tupperwares recheados de salgadinhos, de isopores cheios de latões de cerveja. Nem só de desfiles podem viver as agremiações, é necessário muitos ensaios, finais de sambas, eventos que a cada dia e semana renovam nosso amor pela festa. Tudo é inesperado, surpreendente, afetivo, mágico.
Mas dito isso. Não é à toa que esses treinos ganharam o termo “técnico” no nome. Para além de toda a afetividade, se tornam um encontro importante entre público e escola, uma espécie de termômetro do dia oficial. Afinal, para que serve reunir todo o contigente de uma agremiação, sem fantasias e alegorias, só cantando o samba e evoluindo na pista? A dúvida nos vale numa questão mais anterior e que é definitiva pra festa e por isso mesmo impossível de responder: o que é uma escola de samba? Que magia faz uma?
Escola de samba é um corpo, uma arte coletiva, uma comunidade, uma rede. Mesmo sem fantasias, há ali uma escola de samba, na voz de seu intérprete, na batida de seus tambores, no bailar do seu pavilhão e seus defensores, no sambar e no evoluir de seus componentes. Pensando isso, diz o senso comum que se pode julgar num ensaio ao menos alguns quesitos, como samba, bateria, harmonia, evolução e um pouco de casal de mestre-sala e porta-bandeira.
Mas talvez esse evento realmente não tenha nada de “ensaio” ou até mesmo de “técnico”. Já que ele derrama tanto afeto, como disse nos parágrafos acima. Para além de marcar um reencontro, um flerte, em voltar a ocupar à Pista. O ensaio tem um caráter simbólico importante. Acho que hoje, a principal pergunta desse tipo de treino é: como tal escola vai se comportar?
É um momento de ver a energia da agremiação, de como ela pode se comportar na pista, tirar dúvidas sobre o rendimento de um samba, ou de o quanto a comunidade está envolvida com enredo e samba. A cada carnaval, diversos fatores vem se tornado decisivos para levar uma escola ao título. É assim, que a cada ensaio temos uma noção do que prepara cada escola ,e do nível de engajamento dos seus componentes.
Passadas as doze agremiações do especial e quinze do acesso também, vimos aqui um nível excelente nos ensaios técnicos. A maioria das agremiações fez ensaios com qualidades, que mostra uma disputa acirrada em todos os níveis da tabela, do campeonato ao rebaixamento.
Esses desfiles serviram para gerar debates e promover reavaliações de algumas agremiações e seus quesitos. Por exemplo, das que tinham seus sambas mais criticados até aqui, Portela e Mangueira, souberam manter um nível de ótimo rendimento nos seus treinos. Em especial, a azul e branco teve um ensaio com uma excelente harmonia. A bateria e carro de som conseguiram tirar do samba tudo de melhor que ele podia oferecer. Já a verde e rosa, mostrou uma garra sobre forte chuva e apostou na força de um enredo que fala de sua própria gente.
Forte chuva que atingiu também a Paraíso do Tuitui, que não desanimou e se valeu de uma boa comunicação com a arquibancada. Foi um dos ensaios mais animados da temporada, pelo menos da arquibancada do Setor 2. Caráter explosivo que também deu a largada pro Salgueiro, quando o público puxou o samba da Academia antes mesmo que ele fosse entoado pelos cantores da alvirrubra.
Salgueiro e Beija-Flor levaram contingentes enormes para Avenida, sendo prejudicadas pela falta de sonorização da pista. Um assunto polêmico a cada domingo, aliás, que eu confesso entender ambos os lados. De um lado, estão os contrários a utilização da sonorização padrão do desfile por matar a possibilidade de ouvir o canto da escola. Do os outros, a críticas de que a qualidade do som e seu alcance prejudica os ensaios.
Da ótima safra de enredos e sambas ninguém duvida, mas o que temos vistos a cada dia é muita garra e vontade dos foliões de ocupar da pista da Sapucaí. A saudade é força motora de cada desfile técnico. A Imperatriz, por exemplo, se valeu dela em seu samba e enredo. Uma agremiação que vem fazendo todos os seus deveres de casa e se posicionando de maneira forte, emocionada e motivada. É bonito ver a escola assim. E não bastasse tudo isso, no último domingo, o Loolamacumba, mostrou a força de duas agremiações com sambas fortes e potentes. Grande Rio e Mocidade fizeram um show.
Encerrando a temporada, a Viradouro se valeu já da sonorização completa da pista e uma nova iluminação, mais cênica, nos setores do meio da pista. A atual campeã mostrou a força da sua comunidade, além do já conhecido entrosamento entre seu carro de som e sua bateria, que imprimiu um ritmo mais acelerado ao seu samba.
É difícil até pontuar a que melhor ensaiou, na minha visão. É impressionante o que as escolas fazem a cada semana na Sapucaí. Até aqui, bons ensaios de todas do Especial, com pequenos erros aqui e ali. Todo mundo matando a saudade da pista com vontade. É uma disputa muito acirrada que se desenha, a ser decidida a cada décimo. Foi uma excelente temporada de ensaios técnicos. E resta chegar os dias de desfiles e a magia que só aquela pista tem.