Enredo: ‘Ginga”
Carnavalesco: Fábio Ricardo
Pesquisa e texto: Marcos Roza
Viajando no tempo da poesia, nasço da espontaneidade sagrada, do mítico ritual do povo Mocupe do sul de Angola. Brincando entre as brisas, filhas do vento, desperto o desejo de conquista de jovens guerreiros à dança do N’golo. Lembro-me bem: os tambores anunciavam a preparação da Enfundula – festa de passagem à vida adulta –, quando as raparigas fertilizavam o sangue da puberdade num misterioso cio, que encorajava rapazes a lutar pela disputa de suas esposas.
No afã da minha gente, sou a doce e constante firmeza de elo e abrigo. Filha da Mãe África, “berço da humanidade”, cresço entre seus ritos de mistérios e verdades, templo sagrado de Okô – divindade da agricultura, formo do sábio cultivo da terra e do domínio que forja as ferramentas ao seu plantio; dita ventura à típica pecuária, entrelaço-me à candura dos diversos encantos de sua cultura.
Mãe! Eu sou a extensão do seu umbigo, fruto que brota desse chão, a força e o espírito de nossas tribos… Assim, eu sigo, levada pela tradição de seus ensinamentos, a destreza para vencer os inimigos.
Tudo ressignificava o meu saber, emergindo da linha do horizonte, trazida pelo cerne da dor e do lamento. Cruzo a imensidão dos mares entre a calmaria e a tempestade, acorrentada pela intolerância de homens fiéis à ganância e ao poder. Desprovida de liberdade, meu corpo padece, é escravo por fim. Mas não é rendido, apesar de ferido, encontra o elo supostamente perdido.
Por bem ou por mal aos ferros expostos, terei, eu, sorte igual? Longe das minhas paisagens habituais, velo a alma coberta de poesia tradicionalmente africana, em terras distantes. Entre pregões e a violenta estada no “Cais do Valongo” – por onde chegaram milhares de negros escravizados, sigo o “bando banto”. Abrasada nas senzalas, rompendo o silêncio de noites sombrias, sou incorporada feito arte matuta, uma espécie de dança, disfarçada entre os afazeres da labuta. Mas é na hora da fuga, usando os pés, as mãos e a cabeça, que me revelam como luta – subtraída da dor contra as “leis do opressor”.
Diante do que se vê, tudo parecia uma cilada: numa relação humana, onde o elemento principal é a expressão do corpo, sou alvo do realismo fantástico de olhares estrangeiros. Telas são pintadas registrando a vida urbana, fosse de forma sóbria ou insana, o fato é que o ato da pitoresca caravana representa um fenômeno antropológico intrinsecamente ligado a diversos episódios da minha trajetória.
Como a inocência de uma criança, ibejê de esperança, sou praticada em círculo de arte-defesa. Pura ou armada à ladainha do mestre Pastinha e entre tantos outros camaradas, minha filosofia é criada. Abençoados sejam meus filhos, pois chegou a hora: repouso íntima e genuína aos valores da tradição de Angola. Com o saber gravado n’alma, danço, gingo, pulo, brinco e rodopio.
Da cerimônia ao desafio: peço a benção nos pés do atabaque e o jogo inicia. Saio no “aú”, me fortaleço no “rabo de arraia”, finco meu pé e não entro de “bua”, planto “bananeira”, solto “meia- lua”…me esquivo na “negativa” e o jogo continua…
“Sou manha, malícia, mandingueira, sou tudo o que a boca come…” Como guardiã da cultura negra e da preservação do seu saber, abro minhas rodas nas ruas, nas feiras, nas festas, nos cais, comandada pelo berimbau…regidos por vareta e bordão, soam o “Gunga”, o “Médio” e o “Viola”. Também seguem o ritmo: chocalho, reco-reco, agogô e pandeiro.
Toques, cantos, cantigas, corridos e ladainhas, tudo numa só sintonia: “São Bento Pequeno, Jogo de Dentro, Ave-Maria, São Bento Grande, Cavalaria, Maculelê, Benguela, Santa Maria”.
Canto e o coro responde: “Paraná-auê, Paraná-auê, Paraná…ê viva meu mestre, ê viva meu mestre camará, quem me ensinou…ê quem me ensinou camará…ê vamo-nos embora…ê vamo-nos embora camará… ê pelo mundo afora…ê pelo mundo afora camará…”
Mas, diante dos dados reais da vida, me pego pensando: sofri imensa perseguição e poucos sabem que dois anos depois da Abolição, Marechal Deodoro da Fonseca decretou minha proibição. Assim prossegui, entre brigas e arruaças, até o ano de 1932. Quando mudam o meu feitio, saltante, esportiva, com golpes rápidos e técnicas de arte marciais, fico mais ligeira e politicamente correta, aceita pela sociedade brasileira. Ganho status de uma tal gente bacana, que pelos ensinamentos de mestre Bimba, passa a me chamar de Luta Regional Baiana. Nesse espaço social, por meio de um novo decreto presidencial, sou legalizada como profissão. Saio da pauta policial e, na condição de esporte e lazer, sou praticada em todo território nacional.
Dominada pela carga simbólica dos signos místicos da cultura afro-brasileira em meio dos quais cresci, abro as cortinas do passado, saúdo os meus heróis – que tradicionalmente gingaram, relacionando-se até hoje suas atividades à história de luta e à formação do povo brasileiro: a realeza de Zumbi, do Quilombo dos Palmares; a “ginga verbal” de Machado de Assis; as batucadas e o candomblé de Tia Ciata; o olhar cotidiano de João do Rio; a plasticidade de Rubens Valentim; o Brasil folclórico de Macunaíma e os sambas de Candeia cantados em jongos, pontos de umbanda, sambas de roda e partido-alto, cantigas de maculelê e sambas de enredo.
Meu gingado é a gira, que corre gira nas rodas pelo mundo.
Seguindo o caminho voltado para a cultura, luta e resistência do povo brasileiro,
consagro-me ao receber tamanho reconhecimento de Patrimônio Imaterial da Humanidade, de roda e ofício. Ao enredo do meu samba, unindo a todos que vão e que vêm,
enalteço a força e a raiz quilombola da comunidade da Vila Vintém.
À devoção dos meus filhos, sou padroeira, sou a ginga do carnaval da Unidos de Padre Miguel. Nessa mistura brasileira, Sou mandinga, A todos digo Feliz e sorrateira: Muito prazer, Eu me chamo Capoeira.
Ideia Original e Carnavalesco: Fábio Ricardo
Pesquisa e Texto: Marcos Roza
Bibliografia Consultada:
ALMEIDA, Raimundo César A., Bimba, Perfil de um Mestre, Imprensa Gráfica Universitária, Salvador, 1980.
AREIAS, Almir das, O que é Capoeira, São Paulo, ed. Brasiliense, 1983.
BURLAMAQUI, A Ginástica Nacional (Capoeiragem Metodizada e Regrada), Rio de Janeiro, 1928. CAPOEIRA, Nestor, O Pequeno Manual de Capoeira, ed. Ground, 1981/ 4a. edição revisada: Rio de Janeiro, ed. Record, 1998.
CARNEIRO, Edson, Capoeira, MEC – Campanha de Defesa do Folclore, Rio de Janeiro.
A Herança de Pastinha, Coleção São Salomão, 1997.
MARINHO, Inezil Penna, A Ginástica Brasileira, Gráfica Transbrasil Ltda, Brasília, 1981. OLIVEIRA, José Luiz, A Capoeira Angola na Bahia-2a. edição, ed. Pallas, Rio de Janeiro, 1997. OLIVEIRA, Waldemar, Capoeira-Frevo-Passo, Companhia Editora de Pernambuco, 1971.
PASTINHA, Mestre, Capoeira Angola, 3a. ed., Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1998.
REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL, “Capoeira de Raiz: Angola pistas da arte ancestral”, v.3, n. 30, 2008.
VIEIRA, Luiz Renato, O Jogo da Capoeira – Cultura Popular no Brasil, Rio de Janeiro, ed. Sprint, 1998.
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