WARANÃ – A REEXISTÊNCIA VERMELHA

Tupana, criador das boas coisas do mundo, reinava no alto do céu na forma de A’at, o sol, enquanto seu irmão oposto, Yurupari, sob a proteção de Waty, a lua, regia as más na escuridão. Assim, as ações entre os dois deuses estabeleceriam o equilíbrio cíclico de Monã, as forças cósmicas geradoras do universo.

Contam que três irmãos, os varões Yucumã e Ukumã’wató e a bela Anhyã-Muasawê, viviam em Nusokén, uma floresta encantada, abundante, onde até as pedras poderiam falar.

Anhyã-Muasawê era a guardiã, a dona de Nusokén, pois detinha o conhecimento das plantas medicinais. Não existia folha que ela não conhecesse o poder. De tão bonita e habilidosa, todos os animais de Nusokén se enamoraram por ela, o que mergulhava seus irmãos no ciúme.

Certo dia, uma cobra verde tomada de amor usou o perfume de uma flor para atrair Anhyã-Muasawê e com apenas um toque em seu pé a fez engravidar. Quando Yucumã e Ukumã’wató descobriram a gravidez indesejada por eles, possuídos pela má energia de Yurupari, expulsaram a irmã e tomaram para si o controle do paraíso Nusokén, a proibindo de voltar. Ela e a criança que nasceria.

Anhyã-Muasawê vai para uma mata distante dar à luz a Kahu’ê, o kurumin mais bonito e alegre que já existiu. Kahu’ê era uma criança prodigiosa, dizem que começou a tagarelar bem cedo. Olhos vivos, atentos para as muitas perguntas que brotavam de sua curiosidade inocente. Fartava-se dos frutos que a floresta com bom grado lhe dava, mas havia uma iguaria que não era permitida a ninguém e que Kahu’ê se apetitou: a castanha da castanheira sagrada de Nusokén. Aquela, primeira, brotada das patas de uma onça e que estava sendo vigiada pela cotia e pelo macaco, Hanuã-Xuin, a mando dos irmãos Yucumã e Ukumã’wató.

Chegando lá, o kurumin arteiro subiu na árvore e saciou a fome até o cair da noite como se dono fosse daquele fruto proibido. Na verdade, era mesmo herdeiro daquelas terras, já que sua mãe seria senhora de Nusokén por direito.

Ao saberem pelos vigias da violação da castanheira sagrada, os tios de Kahu’ê, obsediados pelo espirito da inveja, invocaram Yuyrupari, que se transformou em uma serpente terrível e tirou a vida do pequeno índio.

Anhyã-Muasawê ouviu o grito de longe, correu em socorro a seu filho, mas não pôde evitar o pior. Uma tristeza súbita tomou aquela terra. O mal de Yurupari parecia ter vencido ao exterminar a existência de Kahuê quando os raios de Tupana rasgaram as nuvens. Ao tocarem o solo, falaram ao coração da mãe ferida que aquela maldade se tornaria bênção. Anhyã-Muasawê se transformou num pássaro, levou seu filho para os arredores do rio Maráw, enterrou os olhos do kurumin e os regou com suas lágrimas.

O olho esquerdo plantou em terras amarelas, do qual nasceu uma planta que não prestava. Era o Waraná-Hôp, o falso guaraná. O olho direito, plantado em terras pretas, gerou o Waraná-Sése, o verdadeiro guaraná. Com ele, Anhyã-Muasawê fez um elixir mágico para longa vida ao povo que floresceria das entranhas de Kahu’ê, enterrado embaixo de uma Abiu’rana. Seu ajudante, o passarinho Karaxué, cantava sua mais bela melodia quando Mary-Aypók nasceu do corpo de Kahu’ê. Era o “originador”, o primeiro Mawé. Tupana deu a ele de presente a língua que só era falada pelos seres de bem que o acompanhavam, chamada Sateré, a lagarta de fogo.

O segundo Mawé nascido da criança enterrada foi Wasary-Pót, o irmão gêmeo do “originador”.

Os irmãos cresceram. Mary-Aypók se casou com Ahút-Piã, a filha do papagaio, e concebeu o significado da palavra Mawé, o papagaio falante. Wasary-Pót desposou com Hano’onapiã’hop, filha da arara-piranga, e seus descendentes dariam as mais belas penas para adornar o povo que surgia.

O bendito kurumin Kahu’ê, fruto da união entre a ancestralidade indígena e os animais, renascia em uma raça de pele vermelha como a cor da pele do sagrado Waranã. Estava iniciada a nação Sateré-Mawé, o povo do guaraná. Descendente do fruto que cura as doenças das almas cansadas, dos fracos, que fortalece e devolve a força, a juventude. Revive.

Organizaram-se em clãs, construíram identidade e desenvolveram ritos e mitos regados a guaraná, pintados e gravados com branco do barro taguatinga, preto do jenipapo e vermelho urucum no remo sagrado Puratig.

Do bastão de guaraná ralado criaram o Çapó para beber nas festas, pajelanças e no Waymat, onde as tucandeiras iniciam os jovens para a vida adulta como símbolo de renascimento sob o comando dos Tuxauas.

Porém, não se engane em pensar que Yurupari descansou de sua maldade predatória, que deixou a vida na floresta em harmonia. Ele se fez ressurgir ao longo do tempo em colonizadores, missionários religiosos enviados às aldeias, caçadores, garimpeiros e madeireiros ilegais, grileiros de terras… Pelos desmatamentos e queimadas, os filhos-demônios de pele clara de Yurupari seguem semeando o caos em nome do capetal.

Mas os filhos do guaraná, peles vermelhas do Brasil, são predestinados, pois apenas povos sábios, de espiritualidade elevada, são capazes de reexistirem encantados pelas matas, acaboclados nos terreiros onde bradam sua força e encontrarem com os espíritos infantis de erês e ibejadas que, quando “chegam”, gostam de tomar guaraná.

Assim, completando o ciclo da eterna renovação, enfim o curumim Kahu’ê é elevado ao paraíso prometido Mawé, Nusokén, ou à Jurema, ou à Aruanda, quando na gira as crianças bebem seu guaraná e vão brincar.

Elas são a prova que o espírito do amor é muito maior que o ódio semeado por Yurupari.

Ele não vai vencer. Ele nunca irá nos exterminar.

Yiurupari jamais triunfará.

Jack Vasconcelos

 

ALGUMAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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