Na noite de 25 de fevereiro de 1998, quarta-feira de cinzas daquele ano, uma multidão em verde e rosa, extasiada com uma vitória que não vinha desde 1987, aclamava o homenageado de seu enredo no Palácio do Samba. No palco da famosa quadra, aos pés do morro, horas após o anúncio do resultado oficial, o grande artista anunciaria para delírio dos presentes: “Daqui pra frente, quando passar pelas ruas, as pessoas vão dizer: “Lá vai o Chico Buarque da Mangueira”.
Nos seus 70 anos, a Estação Primeira desceu o morro e fez na avenida uma ópera ao som de um samba popular. A vida e a obra desse artista genial transformaram-se em versos e melodia, alegorias e fantasias, samba e visual exalando muito sentimento como de praxe na história da agremiação.
Foi um desfile histórico. Fazendo valer a tradição de realizar grandes enredos biográficos sobre artistas brasileiros, a escola fez uma apresentação emocionante. Não pelo luxo da plástica, nem pela grandiosidade; não pela contemplação estética. O que sobrou foi fundamento: samba, graça, harmonia e ritmo. Tudo isso costurado por uma narrativa bem construída sobre um personagem popular. Um desfile de escola de samba do mais alto nível, primando por tudo aquilo que fez dessas agremiações potentes expressões da cultura popular brasileira. A fórmula, em si, é Mangueira na veia! E assim foi: abusando do verde e rosa, a escola fez na avenida uma grande apresentação. A escola derramou no seu cortejo toda a beleza do canto e das cordas, dos contos e romances, versos e prosas de Chico Buarque de Holanda.
Alexandre Louzada, carnavalesco que estrearia na agremiação naquele ano, desde a divulgação da sinopse do enredo deixou clara sua opção de construir a narrativa citando reconstruindo a biografia pública através de obras do homenageado. O texto-mestre, marcado pelo lirismo, tinha a própria Mangueira como a narradora da história e retrata o artista em suas múltiplas atividades e facetas artísticas. No final do texto, defende que o enredo é um reconhecimento da Mangueira aquele que seria, naquele dia de carnaval, seu filho predileto, o seu guri.
O desfile marcou a estreia de Carlinhos de Jesus no comando da Comissão de Frente da escola, parceria das mais férteis e que já começaria com um grande trabalho: os bailarinos representavam a “Ópera dos Malandros” e arrancaram aplausos por toda a avenida, sendo consagrados com a nota máxima na apuração e conquistado o Estandarte de Ouro.
Falando ainda sobre o importante prêmio, atribuído pelo Jornal o Globo, a Mangueira também faturou o de melhor escola e o de melhor intérprete para José Bispo Clementino dos Santos. Cantando um samba que chegou a gerar polêmica no pré-carnaval por ser de um grupo de compositores paulistanos, o inconfundível Jamelão conduziu com maestria a obra. Da primeira a última passada o samba explodiu na avenida. A bateria sob o comando do Mestre Alcir Explosão deu a sustentação necessária e o “samba dos paulistas” conduziu a escola a um desfile vibrante.
Desde o esquenta, momento ritual importante de preparação para o desfile que vem se perdendo ao longo do tempo, percebia-se que havia algo mágico no ar daquela noite. Chico deu o recado ao entoar o primeiro verso de seu samba clássico “Vai passar nesta avenida um samba popular”. Coube a Jamelão incendiar de vez a Marquês de Sapucaí com um dos mais conhecidos sambas de exaltação do nosso carnaval, preparando os componentes da escola e o público presente para o que viria a seguir: um baile em verde e rosa.
O carro Abre-Alas, “Para ver a Banda Passar”, trazia alguns dos principais interpretes e parceiros do homenageado na música e no teatro. Estavam presentes Maria Bethânia, Zizi Possi, João Nogueira, Nana Caymmi, Edu Lobo e Marília Pêra entre tantos talentos das artes. O carro, com o nome da escola em neon, ainda trazia esculturas de 7 artistas que o influenciaram: Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Ataulfo Alves, Noel Rosa e o poeta de Mangueira Cartola.
Através de suas músicas e produções teatrais foram apresentadas e exploradas diferentes fases de sua carreira e de sua vida, com destaque para a ditadura, a censura e o exílio retratados no terceiro carro, “Roda Viva”. Seu destacado papel como compositor de canções com eu lírico feminino e as mulheres protagonistas de suas canções apareceram no terceiro carro, “Mulheres de Atenas”. As outras alegorias “Sanatório Geral”, “Drama e Comédia”, “Mágico, místico e criança” e “Ópera dos Malandros” passearam pela diversidade das temáticas de sua produção e sua inserção nas diversas formas do fazer artístico: música, teatro, dramaturgia e literatura.
O último carro, “Setenta anos de Glória”, trazia o homenageado ao lado de Carlos Cachaça, Dona Zica, Dona Neuma, Nelson Sargento, Delegado e outras das mais vultuosas figuras da lendária escola que, naquele ano, prestava homenagem a este guri genial que trajado em verde e rosa se portou com a nobreza de um menestrel do Buraco Quente. O desfile se encerrou com uma ala que montava um retrato em preto e branco que continha a face de Chico na visão frontal e imagens de diversas figuras da escola no verso.
Na quarta-feira de cinzas o resultado foi uma vitória justa, mas dividida com a Beija-Flor de Nilópolis graças a um regulamento polêmico. Nada que apagasse o brilho de um desfile histórico onde um dos maiores artistas do país foi cantado em verso e prosa verde e rosa com a beleza e a força de suas canções. O Chico das artes, poeta, compositor, cantor, literato e gênio da raça foi o guri que coroou a vitória da Mangueira em seus 70 anos. A ofegante epidemia do carnaval de 1998 teve nome, sobrenome e localidade: Chico Buarque da Mangueira.
Autor: Mauro Cordeiro de Oliveira Junior – Doutorando em Antropologia no PPGSA/IFCS/UFRJ e pesquisador-orientador do OBCAR/UFRJ
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