A Inocentes de Belford Roxo definiu novamente que o compositor Claudio Russo definará a parceria para confecção do samba-enredo “Mulheres de barro” para o Carnaval 2023. A escola não realizará disputa de samba na quadra. Este será o quinto ano que ele recebe a missão dada pelo presidente Reginaldo Gomes.

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“Só tenho que agradecer a confiança e a amizade do presidente Reginaldo Gomes e do presidente de honra Rodrigo Gomes. Mais uma vez, irei me dedicar para fazer um samba bonito, valente e emocionante, como o belíssimo enredo merece. Tenho que agradecer também, a comunidade que em todos esses anos abraçam minhas obras e atravessam a avenida cantando com muita alegria”, disse o compositor Claudio Russo.

A Inocentes será a oitava agremiação a desfilar, no Sábado de Carnaval, no Sambódromo, em 2023, na Série Ouro da Liga-RJ, com o enredo “Mulheres de Barro”, do carnavalesco Lucas Milato e enredista Leandro Thomaz, que fala sobre as paneleiras de Goiabeiras, de Vitória, Espírito Santo. Grandes mulheres artesãs, que produzem panelas de barro. Confere abaixo a sinopse.

JUSTIFICATIVA

A missão da Inocentes de Belford Roxo, enquanto escola de samba e entidade cultural, é mostrar a verdade do Brasil para o brasileiro, levando-o a perceber sobre o seu país aquilo que está além do que o senso comum é capaz de compreender. Assim, a Caçulinha da Baixada vai apresentar uma das muitas histórias perdidas na nossa vasta imensidão cultural e territorial, que merecem reconhecimento por parte de seu próprio povo: AS MULHERES DE BARRO.

As Paneleiras de Goiabeiras são mulheres artesãs que herdaram o saber de confecção das panelas de barro de suas ancestrais. Esse saber, passado de geração a geração, é um conjunto de técnicas milenares, de pelo menos 2500 anos, oriundas dos povos originários habitantes da região de Vitória, no Espírito Santo, os Tupi-Guarani e os Una. A história dessas mulheres é um cartão-postal da região de Goiabeiras Velha, que ficou famosa pela divulgação e exportação das tradicionais panelas de barro e da moqueca capixaba, iguaria que só alcança um alto nível de qualidade gastronômica e de representatividade cultural quando cozinhada em uma feita por elas.

O texto de nossa sinopse é uma mensagem às mulheres artesãs do Brasil. Nela reproduzimos o diálogo de uma paneleira com uma trabalhadora do carnaval da Inocentes de Belford Roxo. Nossa ideia é a de que as histórias dessas mulheres, nascidas em lugares distintos, são complementares. A artesã da escola reconhece a sua própria luta na luta da paneleira, que também se reconhece na luta da artesã. Elas moldam materiais diferentes, mas que resultam na mesma criação de vida. Nosso enredo é uma grande homenagem a essas mulheres, artistas-trabalhadoras, que dão sentido à própria vida, entre a força e a fragilidade, na maleabilidade do barro.

SINOPSE

Eu preciso falar de um Brasil que aprendi a moldar com as minhas próprias mãos. Nos caminhos do tempo, nossas ancestrais nos ensinaram a recriar o nosso pequeno grande mundo através do barro. Sempre me disseram que o homem veio de lá, sabe? Eu tenho muito orgulho de ser artesã da matéria-prima da criação, de onde surgiu a existência humana. Do barro, tudo se cria, ganha vida. Nessas linhas que cortam os meus dedos, moça, eu guardo as linhas do tempo. Quando ainda era pequena, eu me dei conta da importância desse ofício. Ah, como eu me lembro. Sentada à beira da calçada, nessa mesma rua de Goiabeiras, minha velha me abraçou com as mãos pintadas de argila e os olhos banhados de sentimentos, e com as palavras um pouco arrastadas pelo tom da emoção, me contou sobre a arte das primeiras artesãs. Lá por outras curvas do tempo, quando a natureza moldava o ciclo da vida, havia um povo em comunhão com a sua terra, que do próprio chão retirava o sustento e a arte. Herança una e tupi-guarani. Do trabalho das artesãs indígenas, a sabedoria da arte da cerâmica se moldou às mãos pretas, calejadas pela escravidão no nosso país, e desde então, geração a geração, foi passada até os dias de hoje. Povos de força, que mesmo com a chegada dos invasores portugueses, fizeram o legado resistir. Somos filhas da natureza, e a ela retribuímos o nosso dom.

A minha vida eu ganho assim desde nova, ‘tá’ vendo? Tudo aqui é feito do fundo do peito, e cada parte do processo revela um pouquinho do que eu sou. Eu nasci dentro de uma panela de barro e passei a enxergar o mundo através dela. A minha essência vem do Vale do Mulembá, de onde extraímos as lágrimas da terra. Emerge do solo o início de uma trajetória de reflexão, muito esforço e suor. As mãos experientes rasgam o chão. O corpo grita, mas a alma vibra. No espelho do Vale, eu vejo refletida a nossa luta. Paneleira que é paneleira sabe a qualidade da matéria só pelo toque. Eu posso ouvir a argila escorrendo sobre os meus poros, moça. Ela não pode ser nem muito fina, nem muito grossa. Desse jeito aqui, consegue sentir? Logo depois, os barcos viajam pelas águas dos manguezais capixabas. Eles passam o dia todo lá. Da casca do Mangue-Vermelho, vem a cor da nossa obra. Na modelagem, o barro ganha corpo sob os meus olhos, mas esse movimento aqui a gente chama mesmo é de puxada. É a minha verdade que se desenha sobre uma peça pronta para tomar forma. O que eu faço é complemento de meu corpo, parte de mim. Após o sonho ganhar molde, o calor do astro-rei se encarrega de secar as novas peças, e depois é a vez de fazer o polimento. Com as pedras de rio, encontradas às margens das águas doces, as impurezas e as más energias ficam de lado. Depois dessas etapas completas, montamos a fogueira para o açoite. É o momento onde as chamas terminam de esculpir os últimos acabamentos da nossa obra. Falando assim parece até rápido, ‘né’, moça? Mas é tempo que leva, viu. E tem mais: todo esse conhecimento é representação do que somos. Constituímos uma grande árvore do saber, onde você tem que regar as raízes, se conectar a elas, para que os frutos se multipliquem.

A panela de barro é o símbolo da minha terra, senhora. Qualquer pessoa aqui é capaz de se reconhecer nela. Nosso povo é assim: orgulhoso, festeiro, sabe? É lindo de ver a cultura que sai em cortejo pelas ruas de Goiabeiras Velha. A identidade em movimento do território que abriga a nossa esperança. Cultura viva em êxtase. Todo sexto dia de janeiro, a bandeira da Folia de Reis passa de casa em casa trazendo muita benção para as nossas famílias. Um pouco antes, no dia do nascimento do Deus menino, “São Benedito vai abrindo meu caminho”. A fé em nossas vozes acompanha a banda de Congo, que leva o nome do maior tesouro de Goiabeiras: Panela de Barro. A gente louva para lembrar quando um grupo de pretos, sufocados pelas águas da escravidão, se salvou agarrado a fé e a imagem de São Benedito. Você precisa ver a alegria desse povo quando o nosso boi Estrela passa. Ele vem saudando os moradores ao som das toadas interpretadas pelas cantadeiras, mas a estrela da nossa celebração é mesmo a panela de barro. Na Festa das Paneleiras, convidamos pessoas de todo lugar para ver de perto o nosso trabalho. Música, arte e poesia dão o sabor da tradicional moqueca capixaba. ‘Cê’ já experimentou? Eu te garanto que igual à daqui ninguém encontra não. Como disse uma vez um jornalista: “moqueca é capixaba, o resto é peixada”. Olha, essa terra traz tanta memória boa. Eu lembro que, antigamente, em época de carnaval, voltávamos do Barreiro em um caminhão. É porque era muita gente, e muita coisa, sabe? Na volta, enquanto estávamos passando na rua, desfilava também o bloco dos Barreiros, que hoje em dia é escola de samba. A gente cantava as músicas de carnaval vestidas de alegria e pintadas de barro, e o povo acenava como se fosse um grande carro alegórico. Eu me sentia uma colombina de barro, menina! No fim das contas, o que parecia sujo virava fantasia também. Era uma festança só!

Mesmo com toda essa história que te contei, moça, tem gente que ainda tenta tomar o que é nosso e não reconhece o verdadeiro valor das paneleiras. Isso aqui é como se fosse religião, o nosso dom nos faz sacerdotisas do barro. Tempos atrás, todas nós fazíamos as panelas em nossos quintais, no coração de nossas casas, mas com a modernização aqui da área, o fluxo de venda se transformou também. Cada vez mais compradores queriam conhecer o nosso produto, e aí ficou difícil, ‘né’? A gente precisava lutar por melhores condições de trabalho, e fazer com que a nossa arte fosse tratada com o respeito que ela merece. Olha, não foi fácil. Por muitas vezes, tentaram anular a nossa trajetória e tomar nosso Vale, mas paneleira não tem medo de defender o que é seu não. A gente fazia barulho mesmo. Com as bênçãos da nossa Banda de Congo, manifestamos por justiça, levando nas mãos cartazes e clamores por dias melhores. Fomos buscar apoio, porque o nosso bem precisava e precisa sempre ser preservado. Atrás de toda panela de barro, existe uma paneleira, uma mulher guerreira, que faz do seu trabalho uma expressão direta do coração. É por amor que dedicamos nossas vidas a essa arte. Enquanto moldamos o futuro, resistimos contra a ignorância. Eu luto para que essa gente que tenta nos diminuir lembre que ninguém tem o direito de passar por cima de um saber que é patrimônio vivo. Somos uma família envolta em laços de sangue e de barro: avós, mães, filhas, amigas que choram, vibram, trabalham umas pelas outras. Foi a partir dessa cumplicidade que erguemos nossa associação, e com ela, o Galpão das Paneleiras. É o templo do nosso ofício, onde nos sentimos em casa, e abrimos as portas para todas as artesãs que constroem o Brasil com as marcas das pontas dos seus dedos. E assim, nós deixamos tatuadas no tempo as nossas identidades. Afinal, imagina quantos sonhos e lutas cabem na palma das mãos. Sou instrumento da arte assim como você. O meu galpão é extensão do seu barracão de escola de samba, onde ganham vida as fantasias. Da mesma forma que eu me enxergo em suas alegorias, você consegue ver o reflexo da sua arte em minha panela de barro. Juntas faremos história no dia-a-dia e em noite de Carnaval.

Olha, antes de você ir embora, leva contigo esse pedacinho de papel que eu trouxe com um poema rabiscado, que é ‘pra’ você mostrar a todo o povo de Belford Roxo e também sempre lembrar desse nosso encontro.

“Todo capixaba tem um pouco de beija flor no bico
Uma panela de barro no peito
Uma orquídea no gesto
Um cafezinho no jeito”
(Elisa Lucinda)

Enredo: Lucas Milato e Leandro Thomaz
Texto / fala: Berenice Correia, Jecilene Correia, Lucas Milato, Leandro Thomaz e João Francisco Dantas.
Pesquisa e desenvolvimento: Lucas Milato, Leandro Thomaz, João Francisco Dantas e Caio Araujo.
Revisão: Rosa Maria Leandro
Agradecimentos: Jamilda Bento (Historiadora), Valdemiro Sales (Mestre da Banda de Congo Panela de Barro), as Paneleiras de Goiabeiras, e toda a população capixaba!

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