“Abram as cortinas que o show vai começar!”
Com um enredo altamente poético e mantendo a tradição de homenagear mulheres importantes em nossa história, a Unidos do Viradouro reverenciou em 2003 uma das maiores artistas do cenário teatral e que, na época, completava 60 anos de atividades ininterruptas nos palcos e 80 anos de vida. Reza a lenda que a menina Abigail Izquierdo Ferreira “nasceu” dentro do palco. Seu pai, o ilustre diretor e ator Procópio Ferreira contracenava no ano de 1922 a peça “Uma Manhã de Sol” e deu falta de uma boneca, o que levou o artista a colocar a filha, com 24 dias de vida para contracenar. A partir disso, a vida de Bibi Ferreira sempre foi atrelada às artes cênicas e é impossível desassociá-la desse mundo.
Devido a sua vasta e honrosa história no teatro, no cinema e na música, Bibi Ferreira foi projetada para o mundo e tornou-se um símbolo cultural do Brasil. Entretanto, faltava-lhe algo. Algo que a consagrasse para o povo no maior espetáculo a céu aberto do planeta. Foi então que a Viradouro a convidou para ser a protagonista de seu desfile, no enredo cheio de emoção e teatralidade, como bem era a vida da homenageada. Um fato importante a ser mencionado aqui é que este enredo e desfile casou muito bem com a característica da escola. A vermelho e branco de Niterói é chamada por muitos como a “escola da emoção” e olhando seu histórico na folia, a agremiação sempre apresentou enredos ligados às artes cênicas (dentre os quais as homenagens à atrizes importantes como a própria Bibi Ferreira (2003) e Dercy Gonçalves (1991), as releituras de óperas como “Orfeu” (1998) e “Alabê de Jerusalém” (2016), além de homenagens ao compositor Carlos Gomes (1959) e ao escritor Nelson Rodrigues, no ano de 2013).
A narrativa do desfile não fugiu do padrão biográfico em sua cronologia e como bem foi explicitada na sinopse, a vida da Bibi Ferreira é uma grande peça teatral onde o carnavalesco Mauro Quintaes dividiu a história em oito importantes atos perpassados desde a infância, as representações da atriz nos palcos do Brasil e do mundo e terminou fazendo uma reverência grande mentor da homenageada, o pai Procópio Ferreira. Porém, o fator determinante foi a emoção. Emoção esta que foi perceptível desde a escolha do enredo e do samba até a realização na avenida. Ali se materializou o encontro do erudito com o popular, ambos filhos da mesma arte. Bibi tornou-se um símbolo dessa aproximação e sua presença na Marquês de Sapucaí ecoa até hoje em nossa memória.
O discurso narrativo ultrapassou a biografia, a concepção estética superou o rigor e as formalidades da erudição teatral e o samba se transformou em uma ode perfeita à maior estrela que ali se fez presente. É interessante observar que este enredo é uma metalinguagem, onde o “código explica o próprio código”. O título do enredo “A Viradouro canta e conta Bibi – uma homenagem ao teatro brasileiro” metaforiza, como já mencionado, Bibi Ferreira sendo o próprio teatro e isso se justifica pela sua grande contribuição à cultura teatral e musical no país. E mais do que isso, era a arte reverenciando a própria arte.
Logo, homenageá-la foi homenagear a arte cênica no Brasil e acentuar que a cultura artística brasileira precisa ser valorizada em sua totalidade. O cortejo aconteceu na avenida com a narrativa romântica e saudosa aos grandes feitos da Grande Dama, que completara ali seus 60 anos de carreira. O último ato do desfile e talvez o mais representativo, fazia uma alusão direta ao primeiro ato da vida da artista. Bibi surgiu brilhantemente em cima da última alegoria encenando para o público e interpretando a si mesma. Seu pai, Procópio, o mesmo que a levou para o palco aos 24 dias de vida, estava ali em forma de uma grande escultura, olhando a filha sendo homenageada pelo povo brasileiro. A mesma, de acordo com as entrevistas da época, se perguntou por que seria homenageada no carnaval. Talvez ela achasse que não era digna de ter sua história contada de uma forma gigantesca e carnavalizada, mas a homenagem foi necessária para mostrar que Bibi era, de fato, a maior expressão da cultura de nosso país.
Conclui-se que a agremiação conseguiu bom êxito ao unir, discursivamente, a estrela da arte erudita à arte popular. Essa união eternizou Bibi Ferreira em nossa memória e no hall de grandes narrativas contadas na Avenida Marquês de Sapucaí, pois este desfile ecoa de maneira apaixonada no coração do sambista, principalmente no coração da vermelha e branca de Niterói que escreveu em sua história mais um carnaval emotivo e simbólico. As cortinas deram lugar aos portões de abertura e encerramento do grande ato, a plateia reuniu-se numa grande arena aberta e o espetáculo foi uma ode metalinguística a sua maior estrela. As personagens vividas por Bibi ao longo dos seus 60 anos de carreira multiplicaram-se na alma de cada componente que seguiu o cortejo festivo e emocionante em busca da consagração deste desfile triunfal. O desejo é que Bibi, hoje brilhando nos céus, aplauda sempre a arte carnavalesca e que nós imortalizemos sua memória cênica enquanto artistas e espectadores do maior espetáculo teatral do mundo.
Autor: Rodrigo Pereira – Doutorando em Linguística/UFRJ, Pesquisador-orientador do Observatório de Carnaval/UFRJ.
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