Você deve estar se perguntando o que Hélio Oiticica e Paulo Barros têm a ver. Eles, é verdade, postularam a bandeira da participação do público na arte brasileira. Nas exposições, Oiticica inventou o espectador-participador. Nos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, Barros inventou o espectador-desfilante-participador das alegorias. É, preciso, no entanto, debruçado a esses conceitos, refletir, ainda, como o espectador, aquele sentado nas frisas, nos camarotes e nas arquibancadas duras e cinzentas da Marquês de Sapucaí, pode participar, de fato, do desfile de uma Escola de Samba.
No fim da década de 60, Hélio Oticica inventou o Parangolé. Tendas, estandartes, bandeiras e capas de se vestir coloridas. A música e a dança. O corpo. Este, para Oiticica, se desloca da posição de mero espectador para a posição de participador. Deixava de haver, nesse sentido, uma mera contemplação da obra. Em outras palavras, a obra só existe porque o corpo do espectador existe. O corpo é obra. A arte, viva. As imagens, móveis. Era, com o Parangolé, a ideia de instalação artística. Era, com o Parangolé, a volatilidade e a efemeridade da obra, uma vez que o corpo em movimento, instalação, isso propõe. Era, com o Parangolé, o momento. Era, com o Parangolé, a construção e a destruição constante da arte. Era, com o Parangolé, a crença em que se devia superar a mumificação do fazer artístico. Era, com o Parangolé, a crença em que se devia superar a arte exposta em cavaletes. Era, com o Parangolé, a crença na crença em que se devia contrariar o formalismo estético imposto pelos cânones da arte. Era, com o Parangolé, a antiarte. Oiticica postulou-os em Esquema geral Nova Objetividade.
Antes, para entender o que os desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro tem a ver com o Parangolé, é necessário discutir o porquê da ideia de desfilante-espectador. O desfilante costuma ser aquele que empresta o corpo como suporte para a arte. Ele não é obra. Só isso já vai de encontro à nova objetividade oiticiciana. O desfilante, ainda, vale lembrar, é espectador. Ele também observa, mesmo que com um ângulo de visão reduzido, em contraposição ao de arquibancada, o que desfila na pista. Melhor, ele assiste às reações do espectador-espectador que, com suas caras e bocas, em sinal de reprovação – ou não – dizem algo a respeito do desfile. É porque o corpo fala. E, se o corpo fala, por que não também arte para o desfilante?
É a partir dessa discussão que se pode entender o lugar das Escolas de Samba no Rio de Janeiro no que concernem as ideias de Hélio Oiticica. De um lado, os casais de mestre-sala e porta-bandeira, as baianas e as passistas já se enquadra(va)m na nova objetividade oiticiciana, uma vez que contempla(va)m todos os pontos propostos por Oiticica. De outro, a dureza, que persistiu por muito tempo, da comissão de frente, das alas, das baterias, servindo o corpo como apenas suporte para as fantasias, e, no que cabe aqui a discussão, dos carros alegóricos.
Em 1973, o ainda jovem artista aderecista maranhense João Trinta, recebeu a missão de, ao lado da ainda jovem figurinista Maria Augusta, teve, no Acadêmicos do Salgueiro, a difícil missão de ocupar o vácuo do comando estético deixado pelo afastamento de Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues no desenvolvimento do enredo “Eneida, amor e fantasia”, em homenagem à cronista carnavalesca Eneida de Moraes. A expectativa para com o desfile era grande. E ele surpreendeu. Logo no Abre-Alas, primeiro carro alegórico de uma Escola de Samba, havia, por exemplo, pierrôs vivos. Para uns, como costumam designar todos aqueles à frente de seu tempo, a ideia de Joãozinho era de “maluco”, uma “aberração”. Para outros, era uma “ousadia”, naquele momento, necessária para o Carnaval. O caso J30, portanto, vai, de certa forma, ao encontro à postura de alguns artistas modernistas, os quais negavam a arte pela arte, ou seja, negação ao formalismo estético – aqui, nesse caso, refere-se a certas “camisas-de-força” às quais – nesta década em discussão – tentavam amarrar (e ainda tentam) o Carnaval.
Ainda que Joãosinho Trinta, neste desfile, tenha transgredido/revolucionado as concepções sobre o que é um carro alegórico de Escola de Samba no Rio de Janeiro, pondo neles, pela primeira vez, por exemplo, contingente humano, a solução dada ainda não parecia resolver completamente a equação proposta por Oiticica alguns anos antes. As composições, como foram chamados alguns elementos humanos que hoje complementam um carro
alegórico, naquela época, ainda eram corpos que vestiam a arte; não eram a arte. Ou seja, a humanização de esculturas fazia do folião parte integrante do carro alegórico, mas ainda ele não era o motivo para o porquê de o ser. Eles eram, apenas, representação de esculturas, ora.
Daí surgiu um homem quem mudaria os rumos dos carros alegóricos dos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, no início dos anos 2000, fazendo com que o quesito fosse enquadrado completamente aos princípios da Nova Objetividade de Oiticica. Depois de uma passagem bem-sucedida, em 2003, pelo Paraíso do Tuiuti na Série A, com o enredo “Tuiuti desfila o Brasil em telas de Portinari”, levando a escola à quarta colocação, Paulo Barros, em 2004, assinava pela primeira vez um desfile no Grupo Especial. Era carnavalesco da Unidos da Tijuca. Recém-chegado à agremiação, Barros propôs o enredo “O sonho da criação e a criação do sonho: a arte da ciência no tempo do impossível”. O título do enredo, que parece mais um nome de uma dissertação de doutorado, dialoga, diretamente, com a necessidade contemporânea do homem de se reinventar; necessidade da antiarte, como postulou Hélio Oiticica. E Barros sonhou – principalmente no que diz respeito à relação entre desfilante-espectador e carros alegóricos de um desfile de uma Escola de Samba do Rio de Janeiro.
Embora em 2003, no Paraíso do Tuiuti, Barros já tivesse trazido para a Avenida, no carro alegórico “O Espantalho”, figuras humanas que realizavam coreografias em determinados momentos do samba de enredo e, em 2004, no carro alegórico “Energia”, em que o contingente humano estava fantasiado de negros frankensteins desenvolvendo movimentos que representavam o acionamento de corpos pela descarga elétrica, não foram essas alegorias quem mudaram o panorama do Carnaval carioca. Foi o carro alegórico “Criação da vida” quem mudou os rumos da folia. Na concentração, a alegoria concebida por Barros era apenas uma estrutura de ferro, sem nenhuma estrutura – como diriam os apreciadores da arte carnavalesca, era “sem graça”. Na Avenida, o espanto. Mais de cem pessoas, pintadas de azul-metálico, davam vida ao carro alegórico, surpreendendo a todos. Eram corpos em movimentos. Era o carro alegórico em movimento. Era a imagem em movimento. O carro alegórico existe porque o corpo existe. O corpo é arte. A alegoria, viva. E dessa forma se inaugurou uma nova “era” – o que muitos dizem ser “Era Paulo Barros” no que diz respeito à concepção dos carros alegóricos. Paulo, nesse sentido, parecia resolver, de uma vez por todas, a equação oiticiciana para com o conceito alegórico: uma instalação artística, efêmera, volátil, em constante construção e destruição.
Embora o acontecimento Paulo Barros, ao trazer as alegorias vivas para o desfile das Escolas de Samba, ou seja, ao modificar a ideia de público-desfilante para público-desfilante-participador no que tange os carros alegóricos, percebe-se que o “povão” ainda está fora da jogada. Isso mesmo! Aquele que chega bem cedo ao Sambódromo com suas bolsas térmicas, debaixo do Sol quente, no intuito de pegar um lugar bom na arquibancada para assistir aos desfiles; aquele que faz uma vaquinha o ano inteiro com mais alguns amigos para comprar uma frisa no intuito de ter o mínimo de conforto para assistir ao desfile da sua escola amada; até mesmo aquele que parcela em várias vezes um ingresso para um dia em uma camarote na Marquês de Sapucaí, no intuito de viver o auge do conforto durante os desfiles das Escolas de Samba. Sim, todos eles não estão dentro do jogo no que diz respeito ao fato de ser participador da arte que aos seus olhos desfila. Todos eles não são arte. Apenas, ainda, assistem as agremiações passarem. Há a questão, nesse sentido, da mera contemplação dos desfiles das Escolas de Samba.
Até tentam fazer com que o espectador “participe” dos desfiles. As comissões de frente, por exemplo, distribuem artefatos aos espectadores que estão nas frisas, como os pães da Tijuca 2019. Mas isso não passa de uma tentativa de interação. Está muito longe do que
postulou Oiticica: o corpo do espectador é arte. O espectador precisa ser participador ativo da manifestação. Falta muito? Será possível? Como? A equação não é fácil. Mas, enquanto isso, sabe-se que, com certeza, Oiticica, de algum lugar, está doido para soprar a resposta.
Mateus Almeida do Pranto
Graduando em Letras-Literaturas (UFRJ)/
Coordenador de Projetos Acadêmicos/OBCAR-UFRJ
[email protected]
Obras e sites consultados
Aconteceu na Sapucaí: há 15 anos “nascia” Paulo Barros no desfile que mudou o patamar
da Unidos da Tijuca. Disponível em: www.carnavalesco.com.br/aconteceu-na-sapucai-ha-
15-anos-nascia-paulo-barros-no-desfile-que-mudou-o-patamar-da-unidos-da-tijuca/
AGUIAR, João Valente; BASTOS, Nádia. Arte como conceito e como imagem: a redifinição
da “arte pela arte”. Disponível em: www.scielo.br/pdf/ts/v25n2/a10v25n2.pdf
Beija-Flor marca carnaval em 1989 com “Ratos e urubus, larguem minha fantasia!”.
Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/beija-flor-marca-carnaval-em-1989-com-
ratos-urubus-larguem-minha-fantasia-23430146
Decodificando Paulo Barros. Acesso em: www.srzd.com/geral/decodificando-paulo-
barros. Disponível em: 30 mai. 2019.
FARIAS, Edson; RIBEIRO, Ana Paula Alves; PORFIRO, André Luiz. Você! Viu um carro
alegórico, aí? Em busca das mediações socioculturais de um artefato artístico. Disponível
em: periodicos.unb.br/index.php/CMD/article/download/22018/20184/
FARIA, Edson. O saber carnavalesco: criação, ilusão e tradição no Carnaval Carioca.
Disponível em: www.scielo.br/pdf/sant/v5n1/2238-3875-sant-05-01-0207.pdf
Imagens de desfiles premiados com o Estandarte. Disponível em:
http://memoria.oglobo.globo.com/institucional/promocoes/imagens-de-desfiles-premiados-
com-estandarte-9267960
Instalação artística. Disponível em: www.mac.usp.br/mac/templates/projetos/seculoxx/modulo5/instalacao.html
Parangolé: anti-obra de Hélio Oiticica. Disponível em:
www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?odigo=856&titulo=Parangole:_anti-
obra_de_Helio_Oiticica
OITICICA, Hélio. Esquema geral da Nova Objetividade. Disponível em: https://monoskop.org/images/f/f3/Oiticica_Helio_1967_2006_Esquema_geral_da_Nova_Objetividade.pdf