Existem fronteiras entre as chamadas “artes carnavalescas” e a tão discutida “arte contemporânea”? Os carnavalescos da Unidos de Vila Isabel, Gabriel Haddad e Leonardo Bora, acreditam que não – e a crença nos transbordamentos artísticos que eles defendem acaba de ser agraciada com um dos mais importantes prêmios da arte brasileira. A dupla, que assina o desfile de 2026 da azul e branca de Noel, foi surpreendida nesta sexta-feira com a notícia de que venceu o Prêmio Pipa 2025.

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Fotot: Reprodução/Redes sociais

Esta é a primeira vez que artistas cujos trabalhos de maior destaque foram criados para o Carnaval vencem a premiação, algo que, na visão de Haddad, revela uma mudança de olhar para o complexo artístico dos desfiles das escolas de samba: “Recebemos essa notícia com muita alegria e muita emoção. Para nós, os desfiles das escolas de samba são, é claro, uma manifestação artística contemporânea. Que sempre foi contemporânea e esteve na vanguarda, disputando a cidade, pautando os temas do país sob múltiplos olhares, contando histórias, promovendo debates públicos, inventando tecnologias, fundindo linguagens…”

Bora também comemorou o prêmio e falou sobre a sensação de fazer parte de uma continuidade: “Nós, carnavalescos, trabalhamos com linguagens artísticas plurais, que se renovam a cada dia, no calor dos barracões e na agitação dos ateliês. Na década de 1980, a inventividade de Fernando Pinto gerou uma exposição e alguns debates sobre a natureza daquele trabalho – se era ou não era arte. Algo que hoje nos parece absurdo! Joãosinho Trinta e Rosa Magalhães participaram de bienais e fizeram exposições, nos anos 90. Mais recentemente, Leandro Vieira ocupou o Paço Imperial e foi indicado para o Prêmio Pipa de 2020. Quando eu e Gabriel vemos o nosso trabalho artístico, que tem dimensões individuais e coletivas, exposto no Museu de Arte do Rio, no SESC Pinheiros ou no CCBB, entendemos que isso é um processo”.

Ele explica que a premiação revela um reconhecimento extremamente importante do trabalho que exercem, mas não encerra a busca por evolução na trajetória artística. “A premiação do Pipa é um outro passo nessa caminhada ainda tão longa, jamais um ponto de chegada. Desejamos que o nosso trabalho continue conectando artistas e propondo discussões, provocando os sentidos e as certezas das pessoas, desafiando. Nós já trabalhamos em colaboração com pessoas que foram indicadas ou mesmo ganharam o Pipa. Celebramos a entrada nessa lista e a nossa trajetória até hoje, mas não podemos nos dar ao luxo do deslumbramento nem queremos acomodação. O nosso lema é fazer arte e as artes do Carnaval são de uma potência infinita”, finaliza Bora.

Apesar de evoluções, os artistas do Carnaval ainda enfrentam um olhar excludente sobre seu trabalho: “É estranho pensar que nós, carnavalescos, muitas vezes não somos lidos como artistas. É incrível, mas às vezes as pessoas perguntam: ‘vocês são artistas?’ Ou então usam a palavra artista como forma de diferenciação, numa tentativa esquisita de expressar um elogio, não numa dimensão de trabalho. Isso revela um olhar excludente e hierarquizante, ainda preso a noções enferrujadas como ‘alta’ e ‘baixa cultura’ ou ‘cultura popular’ e ‘cultura erudita’ – noções essas que, no Brasil, se conectam às estruturas do racismo e do classismo que historicamente quiseram diminuir a importância do samba, do carnaval e das suas linguagens artísticas. Ganhar esse importante prêmio não deixa de revelar, portanto, uma mudança de olhar, um reconhecimento. Cada desfile de escola de samba é construído por muitos artistas – infelizmente, a maioria permanece no anonimato. Se esse olhar para o nosso trabalho levantar novos e plurais debates sobre as potências artísticas das escolas de samba, já ficamos orgulhosos”, declara Haddad.

O prêmio é uma iniciativa do Instituto Pipa, criado em 2010, para destacar e promover a arte contemporânea brasileira. Entre os objetivos da premiação, está incentivar artistas, motivar a sua produção e valorizar o cenário artístico nacional. Anualmente, depois que um júri de pesquisadores é formado, uma lista de indicados é divulgada. Os nomes elencados passam a ter o conjunto da sua produção artística recente observado e avaliado. Dessa lista, quatro artistas (individuais ou coletivos) são premiados pelo júri.

O trabalho da dupla Bora-Haddad tem características marcantes, que pavimentaram o caminho que levou ao Pipa: a construção de narrativas circulares que dialogam com as memórias das próprias escolas, a desconstrução e o uso alternativo de materiais, o gosto por formas inusitadas, o apreço pelas técnicas artesanais, pelas sobreposições e pelos saberes tradicionais, o uso expressivo da iluminação cênica, o trabalho em colaboração com outros artistas etc.

Agora, os carnavalescos da Unidos de Vila Isabel, juntamente com os outros artistas premiados, terão uma agenda de trabalhos que culminará em uma exposição coletiva cujos detalhes ainda não foram revelados. “Estamos preparando um enredo sobre um multiartista brasileiro, Heitor dos Prazeres, alguém que misturava artes e foi premiado na primeira Bienal de São Paulo. No meio desse diálogo sambista, surge o Prêmio Pipa, fazendo com que a gente olhe para o conjunto dos trabalhos artísticos que já desenvolvemos e queira projetar o próximo desfile com ainda mais entusiasmo. É muita alegria!”, exclama Bora.