A atual vice-campeã do Carnaval carioca, Acadêmicos do Grande Rio, escolheu o dia 13 de junho, quando são celebrados os cultos a Santo Antônio e ao orixá Exu, para anunciar o enredo do seu próximo desfile. Intitulado “Fala, Majeté! Sete chaves de Exu”, o enredo levará para a Marquês de Sapucaí histórias e manifestações culturais ligadas à simbologia dessa entidade tão múltipla e tão presente no universo das escolas de samba. Trata-se do segundo enredo autoral proposto pelos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora para a tricolor de Duque de Caxias. Segundo a escola, informações sobre a sinopse do enredo serão divulgadas em breve.

Para Haddad, o enredo é a continuidade de um projeto artístico:

“Exu apareceu de maneira pontual nos últimos três enredos que eu e Leonardo levamos para a Marquês de Sapucaí, então é algo que está no nosso imaginário artístico. Eu sempre tive o desejo de desenvolver um enredo dedicado a Exu, até mesmo pela ligação com o meu avô materno, que tinha um terreiro. Ao longo do processo de feitura do carnaval do ano passado, começamos a esboçar as ideias que nos levaram a essa nova narrativa, que segue por caminhos muito diferentes, tanto na forma de contar o enredo quanto no visual que já estamos colorindo. Existem, sim, os diálogos internos, o que é parte fundamental do nosso processo criativo. A crítica de arte e curadora Daniela Name definiu esse nosso processo como um bordado, um fluxo contínuo, algo que muito diz do que entendemos por energia de Exu. Nós gostamos da experimentação, dos contrastes, de transformar algo que estava parado, os tecidos mais velhos do almoxarifado, na decoração do carro abre-alas. Eu acho que essa visão inquieta diz muito do dinamismo de Exu, que gosta de jogos, brincadeiras, desafios, não se prende a receitas prontas do que dizem que é bom ou belo. Gosta é de provocar e de gerar debate”, explicou Haddad.

Bora, que também entende que o enredo sintetiza a forma de pensar e fazer carnaval da dupla, complementa:

“Quando lançamos o “Igbá Cubango”, dissemos que ele havia sido gestado pelo Bispo do Rosário: uma coisa estava dentro da outra. De certa forma, o “Fala, Majeté!” estava dentro do “Tata Londirá”: lemos, debatemos e aprendemos tanto a respeito de Exu, durante o processo de confecção do último desfile, que não foi uma surpresa quando percebemos que um novo enredo já estava em formação. Reunimos muito material e muitas, muitas histórias. Havia o interesse e a curiosidade, faltava um sinal, um início. A escritora Conceição Evaristo nos visitou, na primeira semana de janeiro, e passamos um bom tempo debatendo a simbologia da capa de Exu produzida pelo Bispo do Rosário. Os apontamentos dela nos mostraram um caminho maior, extremamente rico, e decidimos nos aventurar por ele. O resultado é um enredo que trata de coisas muito próximas da gente, a rua, a feira, o carnaval, o lixo, um enredo que não apresenta uma visão fechada, quadrada. O nosso Exu se desdobra em sete chaves de interpretação, chaves essas que abrem infinitas outras portas. Para nós, carnavalescos, isso é ótimo: a possibilidade de assinar mais um enredo autoral e dar continuidade a uma caminhada artística que extravasa os limites da avenida e se transforma em outras ações. Quem imagina que será uma repetição de Tata Londirá está enganado”, afirmou Bora.

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Pelo terceiro ano consecutivo, os carnavalescos dividem a pesquisa do enredo com o historiador e antropólogo Vinícius Natal, que destaca a importância dessa proposta para se pensar o contexto contemporâneo:

“É preciso enfatizar que mais do que o orixá do candomblé e as entidades que já vimos em outros desfiles, e que obviamente vão aparecer no nosso enredo, estamos falando de uma energia, de uma outra forma de pensamento, não ocidental, não colonial, e é isso o que queremos mostrar. Estamos falando de novas epistemologias, que muitos pensadores e artistas contemporâneos têm trabalhado. Não é por acaso que Exu tem aparecido tanto na arte urbana, nos museus, na música, na literatura, nas bandeiras que tanta gente está levantando. É uma resposta aos tempos do hoje e uma proposta também. No último carnaval, inúmeras escolas citaram Exu, inclusive a Grande Rio. O escritor e historiador Luiz Antonio Simas até fez a provocação: por que tantas escolas citam Exu, mas nenhuma faz um enredo todo dedicado a pensar Exu? Havia essa lacuna. Nós decidimos entrar nessa encruzilhada, que fala de ancestralidade e é, ao mesmo tempo, muito contemporânea. A espinha dorsal do enredo, inclusive, nasceu numa encruzilhada, quando comemorávamos o vice-campeonato, tomando cerveja, na rua. Sentimos muita falta disso. Se precisamos pensar em novas formas de vida social, nesse contexto difícil, precisamos nos abrir ao diálogo, permitindo que pessoas como Estamira ou Stela do Patrocínio, que já partiram, continuem falando e sendo ouvidas. Por isso o nosso título traz essa exclamação: queremos que os Exus falem, para que aprendamos com eles. Há uma razão para isso, que não é a razão colonial, branca, eurocêntrica. É a “Pedagogia das Encruzilhadas” de que fala Luiz Rufino, por exemplo. Ocupamos um lugar privilegiado enquanto narradores e precisamos, mais do que nunca, usar esse espaço para combater o racismo epistêmico e o racismo religioso. Nada foi mais demonizado que Exu, por isso vamos raspar o fundo. A gente quer cada vez mais Exu nas escolas e nas escolas de samba”, finalizou Natal.

Sobre o desenvolvimento do enredo, Haddad e Bora dão algumas pistas:

“O enredo é dividido em sete momentos e vai celebrar a energia que circula nas feiras e nos mercados, a malandragem das noites, nos bares e cabarés, as ruas, as folias populares e o carnaval dos corpos indóceis, a música, a literatura e as artes visuais que reinterpretam e nos ajudam a pensar Exu no cenário contemporâneo, e a suposta “loucura” capaz de transformar o lixo, reconstruindo o mundo de maneira simbólica e produzindo novas formas de conhecimento. Há uma linha muito forte de Exus ligados ao lixo. É nesse momento que a figura de Estamira ganha destaque, nos levando a um lugar de Caxias que por muito tempo foi invisibilizado, que é o lixão de Gramacho. Estamira conversava com Exu por meio de um telefone. Isso é muito impressionante. As falas dela são contundentes e urgentes, e é de onde tiramos o título, uma expressão misteriosa, repleta de significados”, explicou Haddad.

“Além disso, nós mostraremos os fundamentos africanos de Exu e olharemos para a relação de Exu com o mito de Zumbi, essa ideia de corpo coletivo, ponto que nos faz dialogar com textos de Conceição Evaristo e Alberto Mussa. É um enredo que exalta as brasilidades festivas e que pede para que ouçamos algumas vozes que historicamente foram impedidas de falar. Nesse contexto incerto, não sabemos como será o próximo carnaval, mas desejamos que ele seja profundamente transformador. É por isso que invocamos essa energia, na esperança de que continuemos a fazer arte, em tempos mais esperançosos. Lançar este enredo, no nosso entendimento, é uma mensagem jogada no infinito. Um grito e um rito”, finalizou Bora.

Sobre o cartaz do enredo, que foi confeccionado pelo designer Antônio Gonzaga (o mesmo responsável pelas artes dos dois últimos carnavais da dupla), Gabriel Haddad comenta:

“O cartaz resume a nossa visão. É uma mistura de muro, lambe, papelão e carta de baralho. É uma obra para ser girada, ou seja, que desafia a nossa visão, que convida ao movimento e ao jogo. Também não quisemos apresentar Exu com apenas um gênero. É uma dança de ser e não ser, uma provocação. E há o símbolo do infinito, que também expressa a nossa posição diante do próximo Carnaval”.

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