Figura já eternizada na história do carnaval carioca, mestre Ciça coleciona mais de 25 passagens a frente de baterias na Sapucaí. Responsável por momentos marcantes de inovação, ele também compreende a disciplina como parte indispensável do seu trabalho. Atualmente, aos 66 anos de idade, ele sente a mesma paixão e ânimo de seu início de carreira. Em entrevista concedida ao site CARNAVALESCO, não poupou comentários sobre seu passado, presente e futuro na Viradouro.
Após tanto tempo no comando da bateria, qual é o balanço que faz de sua carreira?
Ciça: “Nunca pensei em chegar aonde cheguei, sabe? Isso lá atrás surgiu como uma brincadeira. Era um sonho que eu tinha, influenciado pelo meu irmão músico. Eu dizia que um dia dirigiria uma bateria na Sapucaí e ele entendia como loucura. Tenho uma sensação de dever cumprido. Tudo que eu realizei por onde passei… na Estácio, Tijuca, Grande Rio, Ilha e até mesmo na Viradouro. É prazeroso ter trinta e poucos anos de carreira ininterruptos. Eu só faltei dois ensaios na vida, um por estar viajando e outro por questões de saúde. Aprendi muito nesse período, realizei um bom trabalho, tive erros e acertos… Acredito que mais acertos, porque ainda estou aqui”.
Em termos de ritmo, qual foi seu melhor desfile?
Ciça: “Não posso citar apenas um porque estaria cometendo injustiça comigo mesmo e com as pessoas que vão ler a matéria. Tem alguns desfiles que eu destaco, não necessariamente na ordem. O ‘É de Arrepiar’ da Viradouro, o da Grande Rio em 2010, o da União da Ilha em 2018 que, por sinal, nem foi o ano em que ganhamos prêmios. Em 1997, o meu último ano na Estácio, também. Estamos falando sobre ritmo, certo? Acho que fiz um ótimo trabalho quando a Viradouro cantou sobre a Bibi Ferreira. Falo isso porque normalmente os julgadores não precisam escrever uma justificativa quando dão nota máxima, mas um julgador específico, que era muito exigente, nos deu nota dez e justificou. Isso me marcou. Também achei a bateria excepcional no carnaval de 2020 da Viradouro. São tantas baterias que posso acabar esquecendo, mas tive anos maravilhosos”.
E qual foi o desfile que você se decepcionou ou não gostou da bateria?
Ciça: “Já me decepcionei não com o resultado, mas porque percebi que não fomos bem. Teve um carnaval na Grande Rio, acho que estávamos falando sobre Maricá, em que eu saí dali sabendo que não trabalhei da forma que gostaria. Em alguns carnavais, a gente passa bem pela Avenida, acha que vai dar certo, e… vou citar um exemplo. Quando a Viradouro reeditou o samba sobre o Círio de Nazaré, peguei uma chuva com água até o joelho, mas a bateria passou firme. Mesmo assim, teve um julgador que me penalizou. Fiquei muito triste na apuração. Se bem que, quando algo assim acontece, recebemos uma nota ruim, procuramos corrigir, certo? Temos essa obrigação”.
Você é muito querido por seus ritmistas e até ritmistas de outras escolas. Qual é o segredo?
Ciça: “Falando no nosso linguajar, eu não faço sacanagem com ninguém. Eu olho no olho do ritmista, sou verdadeiro com ele. Não esculacho um ritmista, ainda mais na frente dos outros. Quando vou cortar alguém, e essa palavra nem é legal, eu chamo num canto e converso. Aqueles que me acompanham sabem disso. E eu brigo muito por ritmista e sempre vou brigar. Os presidentes das escolas de samba falam ‘você pede muito, Ciça’ e eu peço mesmo, mas não é para mim, peço para a bateria. Costumo dizer que o ritmista não quer dinheiro para desfilar, ele quer ser bem tratado na quadra. Lógico que precisa ser respeitoso para ser respeitado, mas ele quer uma condição legal, um espacinho para levar a namorada ou namorado. Claro que não vamos atender todos, mas eu tento proporcionar um lanche a mais, um refrigerante, uma água, uma cerveja… É a obrigação do mestre brigar por isso, porque as pessoas falam muito sobre a bateria. Acham que tudo de ruim acontece na bateria e isso mudou. Hoje é um nível completamente diferente. Por isso, sempre busco ajudar da melhor maneira, com dinheiro de passagem, transporte… às vezes eu nem tenho, mas peço ao presidente. Alguns presidentes não gostam disso, mas vou continuar pedindo. Sou um sambista das antigas e sei como funciona. O carnaval é o lazer dos ritmistas. Como eu digo, vou até a página dois com eles, da três em diante não é mais comigo. Garanto que vou até onde a escola me atende. A Viradouro é uma escola que me atende sempre na medida do possível porque eles entendem. Não tem como ajudar todo mundo, mas as pessoas que mais precisam recebem assistência e carinho. Eu sou um agregador, quero as pessoas perto de mim. Tenho ciúme de ritmista que desfile em outra escola, não nego. A gente não pode falar, mas tenho ciúme. A maioria dos mestres não assumem, mas eles têm. Temos que tratar os ritmistas muito bem porque eles são os primeiros a entrar na Avenida e os últimos a sair. Na Sapucaí e na concentração, sei que todos os segmentos merecem, como as baianas, e todos brigam por seus segmentos. Vou brigar pelo meu segmento, sim. Esse tratamento do ritmista motiva ele a ficar na escola e é isso que eu quero. Por isso tenho esse carinho por eles. Não só por eles, mas também por muitos mestres de bateria que estão por aí agora e já foram meus ritmistas. Saber que eu posso cuidar deles não tem preço. Apesar de não ter estudado, até fazemos um pouquinho de psicologia, sabe? Entendemos os problemas. Tem uns que são abusados, mas desses a gente prefere se afastar. Respeito sempre. Acabou aquilo que tinha quando comecei, décadas atrás. Hoje tem um pessoal que estuda, trabalha e entende melhor tudo. A gente procura entender também e assim vamos levando”.
Gosta do apelido de caveira?
Ciça: “Caramba, esse apelido ficou. Na realidade, quem me apelidou assim foi o Eurico Miranda. Pouca gente sabe, mas quando fui da Unidos da Tijuca, o Eurico gostava muito de mim. Um dia falou assim: ‘esse caveira é brabo’, e começou. Nunca me incomodei e isso nem se espalhou. Aí quando cheguei na União da Ilha, por coincidência já que eles nem sabiam disso, também começaram a me chamar assim. Quando vim para a Viradouro o patrono fez uma camisa para mim com uma caveira nas costas. Vou brigar contra isso? Não vou, aceito na boa”.
Você sempre fala que não vai para a Avenida fazer feijão com arroz. O que representa pisar todo ano na Sapucaí?
Ciça: “É um desafio para mim. Eu fiquei rotulado, e isso não é bom, nem ruim, mas pela obrigação de fazer alguma coisa diferente. Aí quando você não faz… ‘Poxa, ele está muito preocupado com o ritmo’. Eu gosto muito de interagir com o público, tenho consciência disso, gosto de fazer coisas diferentes, mas como falei, é sempre um desafio. ‘Ah, o que eu vou fazer ano que vem?’. Às vezes você não consegue porque depende muito do enredo e da situação do desfile, mas se me perguntarem se ainda tenho ideias… olha, tenho ideias maravilhosas, mas preciso que tenha coerência com o enredo. Cada ideia é uma novidade. Fico feliz porque hoje mais pessoas estão fazendo isso, outras escolas indo por esse caminho. Já subi em cima de instrumento, de carro alegórico, já me deitei na avenida, fiz cambalhota… então sim, tenho várias ideias, mas sei que fico rotulado. Só peço que não me cobrem caso um dia não faça porque em certas situações realmente não tem como. Também temos que focar na nota e no ritmo. Mesmo assim, se der para criar algo, sempre tenho o que tirar da cartola. Nem que seja uma coisa pequena”.
Você já colocou a bateria em cima de carro alegórico. Gostou daquilo e faria novamente?
Ciça: “No carro alegórico nunca mais! Foi um aprendizado. Essa foi uma ideia que eu tive na Estácio e guardei desde 1994. Na época eu perguntei ao presidente da escola, que era o Acyr Pereira Alves. Primeiro comentei com o diretor de carnaval, Ricardo, que ainda está vivo e a gente comenta sobre isso até hoje quando se encontra. ‘Cara, eu queria colocar a bateria num carro alegórico’, ‘a ideia é legal, Ciça, vamos falar com o presidente’. Aí começou, fui chamado de maluco porque fazer uma coisa dessas não é financeiramente barato. De qualquer forma, a ideia surgiu. Já na Viradouro, quando o Paulo Barros foi contratado, logo nos encontramos numa feijoada. O Paulo viaja muito, sabe? Ele estava sentado numa mesa, a gente já se conhecia e eu fui falar com ele. ‘Paulo, tenho uma ideia’, quero colocar a bateria numa alegoria’. Ele não falou nada, só me puxou pelo braço e fomos na sala da presidência. Era o Marco Lira. Aí o Paulo, do jeito dele, falou ‘o Ciça me deu uma ideia e vou comprar essa briga’, colocar a bateria num carro alegórico’. Ele parou, olhou muito para nós dois e disse ‘eu sou mais louco que vocês porque vou aceitar esse negócio’. Só que me assustou muito. A minha ideia era colocar um carro alegórico da altura de uma mesa, a bateria subir, mas surgiu um monstro na minha frente com três carros acoplados. Ensaiávamos sempre de madrugada, eu fiquei praticamente no último andar do carro, no topo, no mesmo nível que os julgadores ficariam. Falando mais tecnicamente, eu entendi que o que os julgadores ouviriam lá, eu também ouviria de onde estava. Eu colocava a mão para o lado de fora e me comunicava com os ritmistas, tipo ‘dá uma segurada aí’. Mas eu passei muito rápido pela Avenida, entende? Nem dava tempo de dar um tchau. Foi um projeto caríssimo. Três carros acoplados, três motores caso algo desse errado e, se ainda assim desse, tinham 130 pessoas do lado de fora para empurrar. Fiquei vários dias sem dormir por conta disso, com medo de algo dar errado porque a ideia foi minha. A minha cabeça ficou quente. Entramos na Avenida de madrugada e eu tinha que esperar o momento certo para subir, ficar atento ao relógio… subi antes, quase caí do carro porque estava nervoso. Esse carnaval foi inesquecível e não fomos campeões, mas sempre brinco com todo mundo: ‘quem estava lá, estava, porque nunca mais vão ter essa oportunidade’. Tecnicamente, a escola merecia uma colocação melhor. Foi uma ocasião espetacular, o Paulo ajudou… só que ele também exagerou muito. Eu avisei que não queria aquilo tudo e ele respondeu que se fosse para fazer tinha que ser direito. Quando eu falo que não vou fazer mais isso é porque eu não curti o desfile, sabe? Eu queria estar no chão sentindo o momento. Mesmo assim, foi uma boa ideia, deu muita audiência também. Até hoje comentam”.
O que você ainda sonha em fazer com a bateria, mas que ainda não conseguiu realizar?
Ciça: “Muitas coisas! Tem uma que eu quase fiz na Grande Rio, não vou contar o que é porque quando fizer vai ser histórico. Está bem guardado, vai ser espetacular quando chegar o momento e absurdo também. Quem sabe eu não faço na Viradouro um dia? Como eu disse antes, também depende muito do enredo. As ideias sempre surgem, mas essa, como a do carro, eu tenho guardada há anos comigo. Quem é próximo de mim sabe, me chamam até de maluco, mas não sou. Aliás, pelo visto, muita gente chama. Vai engrandecer o carnaval e eu gosto de dar espetáculos. Só espero que ninguém faça antes, mas eu duvido que façam porque, com todo respeito, tem que ter coragem para fazer”.
Seu nome está na história do carnaval. Um dos momentos mais espetaculares foi com a Luma de Oliveira. Era especial ter ela como rainha, o que lembra daquela época?
Ciça: “A Luma é sensacional. Além de ser rainha de bateria, ela sempre foi muito profissional. Nós nos conhecemos na Viradouro em 1999 e criamos uma amizade em que, até hoje, vou na casa dela. Temos um carinho enorme um pelo outro. Como eu falei, ela é profissional. Eu ia para a casa dela ensaiar quando ela não podia e ela filmava tudo. Sempre foi uma rainha participativa. Eu falei para ela algo que falo para todas as rainhas de bateria, porque todas foram importantes, mas já que citaram ela, ‘não basta ser famosa, tem que ensaiar’. Tenho isso comigo, entende? Se quiser ser rainha de bateria, vai precisar ensaiar porque é necessário interagir com a bateria. Quando me refiro a interação, não é sobre ficar pulando na frente, mas saber as nuances, entender um desenho do tamborim. Uma rainha tem que fazer tudo isso gestualmente. Alguns amigos meus dizem ‘pô, Ciça, você se preocupa muito com a rainha de bateria’ e é claro, ela vem na nossa frente. Ela não rende nota, mas precisa participar, não apenas sambar como uma doida. Precisamos dessa interação entre a gente. Ela tem que saber o momento do samba em que vai fazer a bossa, aprender o sinal que eu faço, ficar atenta no repique… Isso é uma verdadeira rainha de bateria. No passado, a Luma começou com isso comigo, depois tivemos outras grandes rainhas. Elas estão nesse processo de aprendizado, percebo o cuidado e a preocupação que elas têm. Tive Paola Oliveira na Grande Rio, Gracyanne Barbosa na Ilha… Me lembro de uma vez que a Juliana Paes chegou na quadra da Viradouro de madrugada para ensaiar com as pessoas. Achei aquilo espetacular e por isso dava certo na Avenida. Chamo a nossa rainha atual, Erika Januza, de fominha. Ela está perfeita, faz questão de estar por dentro de tudo. É muito bacana porque as pessoas percebem essa diferença no desfile. Se houver alguma perdida, por exemplo, é perceptível na Sapucaí. Entendo que existem outros compromissos, mas o processo importa demais. O conjunto fica incrível”.
Você agradeceu muito na pandemia em estar na Viradouro e ser bem tratado. Mas com certeza muita gente te viu passar dificuldade em outras escolas. Qual é a importância do tratamento que você e seus ritmistas recebem na Viradouro?
Ciça: “Nunca imaginei que voltaria para a Viradouro. Mesmo com as dificuldades, eu estava bem na Ilha. A Ilha nunca me deveu nada e sempre cumpriu com os compromissos. Quando surgiu o convite da Viradouro, nem acreditei. Depois de muita conversa, aceitei. A minha apresentação na escola foi coisa de louco… vinte anos depois da última vez, tinha uns 500 ritmistas lá. Deus teve ter me ajudado com isso porque, na pandemia, a escola fez tudo que prometeu. Era 50% para todo mundo e se faltasse alguma coisa, atendiam a gente. Teve escola que nem isso deu, nem 1%… os profissionais aqui foram sensacionais. No começo, quando veio o baque da pandemia, tínhamos sido campões do carnaval e nem curtimos porque foi um mês depois. O mais bacana foi o acordo de que, caso não tivesse carnaval em 2022 ou até mesmo 2023… o Calil deu a palavra que continuaríamos recebendo igualmente. Só a Viradouro mesmo para fazer isso por nós e eu sou grato demais. Foi o momento mais difícil da minha vida, perdi um irmão, amigos e parentes próximos. E eu sou todo errado, sabe? Sou fumante… e aquilo foi me consumindo dentro de casa por quase sete meses. Sei que foi difícil para todo mundo, mas estou contando a minha experiencia. Conseguimos sair dessa, mas a Viradouro foi tudo para gente. Comigo, principalmente. Eu ligava para o nosso patrono e ele perguntava como eu estava me sentindo, se precisava de algo, mandava mensagens no nosso grupo… um carinho incrível. Também tive que me habituar a nova realidade, vendi meu carro para me manter bem, deixar a casa organizada e comprar remédios. Um processo financeiramente longo e sempre vou lembrar o quão grato sou a Viradouro por isso. Posso falar porque já tive em outras escolas que às vezes eu nem recebia, ou recebia atrasado… momentos complicados mesmo. Agradeço muito a família Calil, Marcelo, Marcelinho… e eu estou aqui vivo, com saúde e brigando pelo próximo título”.
É realmente muito diferente trabalhar na gestão Calil? O que é tão diferente?
Ciça: “Muito! Eu falo sobre até com amigos de outras escolas. Nem gosto de falar porque às vezes podem pensar que é soberba, mas não é. É a realidade. O profissionalismo aqui é absurdo, coisa de outro mundo em termos de escola de samba. A estrutura que dão… o profissional pode ser bom ou ruim, mas ele precisa de estrutura para trabalhar. O que é estrutura para um mestre de bateria? Quando você começa os ensaios cedo. Na primeira terça-feira da Semana Santa eu começo o meu ensaio. Poucas começam tão cedo, mas eu posso aqui porque me dão essa condição. Não preciso me preocupar se as baquetas do estoque vão acabar. É a condição de ter suas coisas, não de forma abusada, mas no cotidiano do trabalho. Os meus instrumentos estão prontos para o desfile desde
novembro. Tenho os instrumentos de ensaio e os do desfile. Isso é o absurdo do absurdo. Também posso me organizar e reparar no que vamos precisar no futuro. Não vou esperar uma corda arrebentar para resolver o problema, eu me antecipo. Além do espaço, temos uma equipe maravilhosa como o Quico, o Alex, o Dudu e o Helio que é o vice-presidente. Vou citar os nomes deles porque são muito importantes no projeto como um todo. As fantasias também surgem com quatro meses de antecedência. Não falta bebida nos ensaios, não preciso correr atrás do presidente para pedir. Acho que é o mínimo que uma escola precisa proporcionar, fazer o profissional se sentir confortável e valorizado no trabalho. E trabalhamos muito por aqui. Lógico que não vou afirmar que isso ganha o carnaval porque carnaval se ganha na pista, na hora pode acontecer de tudo, mas a Viradouro vai para avenida ciente de que vai brigar pelo título. Hoje eu posso bater no peito e dizer que vamos entrar na avenida para sermos os campões. Acho que a imprensa nunca tira a Viradouro do pódio no pré-carnaval. Fazendo as contas, acho que fizemos vinte ensaios de rua. Se gasta muito e se necessita de muito empenho para fazer isso. Vejo até outras escolas copiando esse modelo de trabalho e acho muito bacana. Isso não é demérito para ninguém, falando de carnaval em geral. O que funciona deve ser copiado e colocado como padrão. Deixa todos confiantes, e para fazer isso precisa de uma gestão séria. A família Calil assumiu a escola quase enrolando a bandeira e transformou nessa potência, sem marra, tratando todos com humildade. A gente prega isso aqui: ter o pé no chão. Acho isso muito bacana. Hoje tenho 66 anos e não quero mais passar pela falta de segurança que passei anos atrás. Para ter noção, sei que enquanto dou essa entrevista, tem muita gente trabalhando para entregarmos um bom desfile”.
Você teve um grande entrosamento com Dominguinhos e agora com o Zé Paulo. O ‘Vai Ciça’ é inesquecível. Como é esse relacionamento de trabalho entre você e o Zé?
Ciça: “É ótimo. Eu e Zé conversamos muito, como eu já fazia com o Dominguinhos. Aprendo muito com ele, trocamos opiniões… às vezes pode acontecer um desentendimento, mas passa logo porque sabemos que é em prol da escola. Isso é legal, precisamos desse entrosamento. Não adianta ninguém pensar que sabe mais, temos que colocar a escola em primeiro lugar. Quando vim para Viradouro não conhecia o Zé pessoalmente e hoje posso dizer que ele é um grande parceiro. Ele é um cara do bem e me sinto vitorioso trabalhando com ele. Conseguimos bons resultados juntos”.
Falam muito de correria na bateria e citam você. Isso te incomoda? O que você responde sobre o andamento?
Ciça: “Essa pergunta é incrível. Numa escola séria, e eu sei que vou incomodar muita gente falando isso, mestre de bateria nenhum dita o andamento da Avenida. Aqui a gente se senta com o presidente da escola, o diretor do carnaval, o intérprete… com todo mundo, e decide o que vai ser melhor para o desfile. A gente vai colocar 140, 148, 150 bpm? Isso é conversado. Tudo cai na minha conta, devo ser muito forte. Aqui na Viradouro conversamos muito. Na União da Ilha a gente conversava um pouco também, nas outras escolas, na Estácio… a gente não conversava. Decidíamos no toque da caixa. Aqui na Viradouro a gente conversa muito sobre o andamento. Eu gosto do andamento com uma pegada, coisa minha. Sou estaciano, vim da Estácio, moro na Estácio até hoje, e a Estácio tem essa característica. Mas é lógico que a gente precisa pensar no que se encaixa melhor na proposta da escola. Eu estou me adaptando a um andamento mais confortável. Nesse carnaval de 2023 as pessoas vão se surpreender com o andamento da Viradouro, mas é uma coisa que foi conversada. Se eles não conversassem comigo, a minha pegada iria prevalecer. Não que eu goste de correria, porque você pode tocar 147 bpm com swing. Se o menino tocar 140 bpm com swing vai ser a mesma coisa, essa é a diferença. Até exagerei, confesso. É que as pessoas falam que é correria, mas 147 bpm é um andamento com pegada boa. E com swing, porque isso é importante. Quem toca correndo não sabe tocar, viu? Eu posso tocar até 149 bpm que vai ser swingado. É controverso, mas agora… se eu gosto de um andamento mais rápido? Confesso que gosto. Só que preciso me adaptar. Estou com 66 anos, tem garotos novos como mestres de bateria e eles são muito bons. São craques, estudam música. Eu tenho que acompanhar, aprender também. Eu até falo para eles ‘olha, o velho não está morto e na Avenida o pau vai torar’ e isso faz parte. Isso é um aprendizado para mim, a gente nunca sabe tudo. Gosto de conversar com os meus ritmistas, trocar ideias de uma forma que seja confortável para todos. Fiquei rotulado mesmo, mas como eu falei, em escola séria tem conversa com todo mundo. Já aconteceu várias vezes em outra escola de alguém falar ‘tem que botar na frente’, mas ninguém assume. Eu sempre me calei, segurei essa onda sozinho. Se você tem um cantor como o Dominguinhos, por exemplo, que é um monstro e não está reclamando, por que o Ciça tem que segurar a onda sozinho? Por que não pergunta para o Dominguinhos ou para direção da escola? ‘Ah, porque o Ciça gosta de correr’. Repito: mestre de bateria nenhum dita o ritmo da Avenida. Até porque se um presidente chega em você e diz ‘eu estou te pagando, toca desse jeito e acabou’, você vai fazer diferente porque prefere? Duvido que alguém faça diferente. É isso, não sou eu que decido sozinho. Sempre me calei, mas de uns seis anos para cá resolvi colocar as cartas na mesa. Assumo as minhas responsabilidades. Já aconteceu de um diretor de carnaval dizer ‘tem que ser 150 bpm’ e eu disse ‘é isso que você quer?’ e fui 150 bpm na Avenida. Depois que deu errado, ninguém falou nada e caiu na minha conta. Não vou me calar mais. Várias pessoas são responsáveis pela decisão, não só o Ciça”.
Você passou por grandes escolas, mas na Ilha a relação foi bem especial. Você é adorado lá. Foi diferente o trabalho lá?
Ciça: “Sim. A Ilha foi o maior desafio que tive na carreira. A escola é maravilhosa e o bairro é bom. Foi um desafio porque a Ilha já foi a bateria mais premiada do carnaval, pensei que não tivessem nada a ver comigo, mas fui. O Thiago Diogo fez um trabalho belíssimo lá também, aí foi para a Grande Rio e eu para a Ilha. Trocamos de lugar. Meu primeiro ano na Ilha não foi legal porque fui na minha pegada e reparei que lá não funcionava. Aí um dia, num ensaio de bateria num estacionamento, me pediram para resgatar a velha bateria da Ilha. Eles tinham se perdido um pouco. A minha preocupação era não ter gente para tocar. Aí eu fiz um vídeo anunciando, chamando quem quisesse, até os antigos. Na quarta-feira seguinte aquilo ficou lotado de ritmistas e percebi que ia funcionar. Fizemos um trabalho maravilhoso e eu tenho orgulho de ter feito parte desse resgate, de trazer o melhor que a Ilha tinha, embora muitos não gostem do termo. Eu saí e agora o mestre Marcelo está dando continuidade ao trabalho e isso é ótimo. A Ilha é isso, não se deve mudar. Eu acho até que não se deve mudar característica nenhuma da bateria própria quando você é contratado por uma escola de samba. Não pode ter essa vaidade de querer mudar a essência da escola. Já pensou se eu chego na Mangueira e mudo a bateria? Não tem cabimento. Fico feliz com esse carinho que a Ilha tem por mim, como outras escolas também têm, porque eu busco tratar todos da melhor maneira. Dessa vida nada se leva. Nós somos artistas agora, quando chega o momento de entrar na Avenida, mas no decorrer do ano somos pessoas como as outras. É importante lembrar disso. Podem falar mal de mim como mestre de bateria, cada um tem sua opinião, mas nunca por sacanear outras pessoas. Isso eu não faço. Na Grande Rio também recebi muito carinho, foi um trabalho difícil. Peguei a bateria do Odilon, uma bateria que só tirava dez. Confesso que não fui muito feliz lá, poderia ter sido melhor, mas tenho a humildade de falar isso. Em 2010 sei que foi sensacional. Me considero o maior injustiçado em relação aos prêmios que uma bateria pode receber. Não teve bateria melhor que a da Grande Rio em 2010 e ponto. Usando uma gíria, tiramos onda na Avenida. Faz parte. Só fui ganhar um grande prêmio depois de muitos anos na União da Ilha, olha que curioso! Uma característica completamente diferente da minha. Acho que merecia na Estácio também e nunca aconteceu. Voltando para a Grande Rio, foi um trabalho legal. Encontramos bons garotos que hoje estão na bateria. O Fafá faz um trabalho lindo e me sinto muito à vontade para falar isso dele. É a bateria campeã do último carnaval, excepcional. E eu brinco muito hoje com essa rapaziada do carnaval porque foram todos meus ritmistas. Colaboramos muito juntos e sou grato a eles. Sou grato a todos os mestres de bateria, na verdade. Os caras são feras. Somos amigos fora do carnaval, não tem inimizade, e a competição é de um nível elevadíssimo”.
Dói em você ver a Estácio na Série Ouro?
Ciça: “Claro. A Estácio é uma potência, uma escola gigantesca. Posso falar porque moro no bairro e foi onde aprendi tudo na vida. Comecei lá também, e é claro que me dói. Ela está lutando para subir, às vezes sobe e desce mesmo não merecendo o rebaixamento, mas infelizmente o carnaval tem essas coisas. As condições financeiras também não ajudam, mas eu sei que um dia ela vai conseguir se manter. O presidente que elegeram lá faz carnavais belíssimos. Muitas pessoas às vezes falam bobagem, mas não se pode negar que a escola faz carnavais bonitos na Série Ouro. Tanto que na gestão dele a escola subiu duas ou três vezes, mas tenho certeza de que um dia ela vai se assentar. Mas que me entristece ver a Estácio na Série Ouro, entristece. Estou sempre lá, apareço nos ensaios, na quadra…”.
Mestre Fafá e mestre Rodney falaram que você teria que dar o nome para o segundo recuo de bateria no Sambódromo. Homenagem em vida. O que sentiu quando ouviu isso?
Ciça: “As pessoas mandaram para mim, eu não tinha escutado. É uma coisa que mexe com a gente, ninguém vai negar. É uma satisfação ouvir isso de mestres de bateria, saber que estou marcado na história do carnaval… A minha vida toda foi na Sapucaí, no samba e isso é muito bom. Fico na torcida de um dia realizar esse sonho. Como eles disseram, precisa ser em vida. Tivemos grandes mestres passando na Sapucaí e se partiu do Fafá e do Rodney, agradeço muito. É satisfatório demais esse reconhecimento. Tem gente vindo me perguntar sobre, mas não sou que tenho que planejar isso. Espero que dê certo. Não esperem eu morrer, por favor”.