Por Philipe Rabelo
O ditado popular a primeira impressão é a que fica define a sensação de entrar no apartamento de Kennedy Meirelles, fã e colecionador de itens da cantora Clara Nunes, que é enredo da Portela no Carnaval 2019. No chão são mais de 100 itens espalhados, entre eles, revistas, discos de vinil e CD’s, que formam um verdadeiro tapete na sala de estar. Em uma das paredes há uma televisão de 70 polegadas exibindo clipes, entrevistas e programas especiais falando da vida profissional e pessoal de Clara Nunes. E na outra parede, em frente à televisão, estão pendurados dois quadros. Uma pintura de J. Vieira feita em 2000, trazendo a imagem de Clara como na capa de seu último LP, Nação, de 1982, vestida de branco com um arranjo de flores na cabeça. Ao lado deste está emoldurado um dos discos de ouro da cantora que, segundo Kennedy, ela não chegou a receber.
A paixão de Kennedy pela “Sabiá” começou quando ele tinha 9 anos e ouviu a música “Juízo Final” pela primeira vez, dentro de um Ford Galaxie branco, a caminho da Região dos Lagos, onde costumava ir com os pais e a irmã. Em 1981, comprou o primeiro vinil de Clara, Claridade, de 1975. Após iniciar a conhecer melhor a carreira da cantora, se viu surpreendido pela perda. Em 2 de abril de 1983 Clara Nunes faleceu após passar 28 dias internada na clínica São Vicente, no Rio de Janeiro, por complicações durante uma cirurgia estética para eliminar varizes nas pernas. De acordo com uma reportagem do Correio Braziliense, nos 30 anos da morte da cantora, as investigações afirmaram que Clara teve uma reação alérgica a algum componente da anestesia geral, resultando na dilatação dos vasos sanguíneos, o que ocasionou um edema no cérebro.
As notícias da internação e da morte estão plastificadas e fazem parte do acervo do colecionador, que continuou conhecendo a vida de Clara Nunes por meio de algumas coincidências. No dia em que a “Guerreira” faleceu, Kennedy tinha apenas 11 anos e estava brincando no Aterro do Flamengo. Quando se deu conta, estava de frente com o cortejo que levava o corpo da cantora para o cemitério São João Batista, após ter sido velado na quadra da Portela. Kennedy não chegou a ir ao enterro, mas a família do colecionador tem um jazigo no mesmo cemitério, onde estão enterrados os pais e a irmã, inclusive, foi a partir do cemitério que a coleção começou a ganhar força.
“Pode parecer estranho, mas eu ia para o cemitério no Dia de Finados, pois sabia que lá estariam outros fãs da Clara e conseguiria encontrar conteúdo e pegar informações de onde encontrar itens, conhecer pessoas, parentes e amigos da cantora. A cada disco que eu encontrava pelo caminho, parecia que era uma obra nova da Clara lançada para mim. Ela foi se revelando aos poucos”, explicou.
Como não existiam muitas peças nas lojas, Kennedy formou a maior parte da sua coleção com artigos encontrados em sebos, brechós, vendedores ambulantes que trabalham nas calçadas do Rio, principalmente, nos bairros da Gloria, Praça XV, Copacabana e Centro. A coleção dele tem aproximadamente 2 mil itens, entre revistas, CD’s, discos, fitas cassetes, recortes de jornais, fotografias, quadros e cerca de 8h de conteúdo audiovisual. Em 2016, a caminho do trabalho em Copacabana, Kennedy passou pela galeria dos antiquários, na Rua Siqueira Campos, e decidiu entrar. Subindo a escada rolante, viu de relance dois discos de ouro pendurados na parede de uma loja que alugava e consertava equipamentos. Ao se aproximar, carregava consigo o pensamento: ‘imagina se fosse um disco da Clara?’. E na frente da loja viu o selo da gravadora Odeon, única gravadora que assinou contrato com a cantora. Entrou no estabelecimento e confirmou suas expectativas, aquele disco era mesmo de Clara. O disco ao lado era em homenagem a Raul Seixas. Não pensou duas vezes ao adicioná-lo a sua coleção e, como bom colecionador, Kennedy não revelou o valor que pagou pelo disco que, para ele, é incalculável.
Você deve estar se perguntando como esse disco foi para ali. Para essa questão, Kennedy tem apenas uma hipótese: “Assim que comprei o disco liguei para alguns conhecidos e perguntei como aquilo estava fora do acervo do museu. Este disco de ouro é por conta do LP Nação, lançado em 1982. Provavelmente, a gravadora fez o disco de ouro na mesma época para dar à Clara no ano seguinte, mas, com o falecimento, não chegaram a entregar”, explica. A gravadora Odeon acabou fechando as portas em 1995.
‘Ouvir Clara Nunes é uma meditação’
A música que mais marcou Kennedy Meirelles foi “Tristeza pé no chão”, do compositor Armando Fernandes e interpretada por Clara com tamanha maestria, que lhe rendeu o título de campeã do 5º Festival de Música Popular Brasileira de Juiz de Fora, em 1972. Ele explica que essa música ao ser lançada não tinha grandes expectativas, mas acabou surpreendendo a crítica. Clara Nunes tinha influência e contato com nomes consagrados da era do rádio. Ela dizia gostar de ouvir as cantoras Dalva de Oliveira, Elizeth Cardoso, Ângela Maria e Carmen Costa. “Elizeth é meu espelho, minha referência. Em dias chuvosos, ponho para tocar discos com Elizeth. É uma grande honra ser amiga dela”, falou a cantora em entrevista à Rádio Jornal do Brasil AM, em 1973.
Daí pode-se afirmar que vozes marcantes e potentes foram uma inspiração para Clara. Quando questionado sobre a voz da “Guerreira”, Kennedy responde com convicção: “O que eu mais gosto da voz dela é o vibrato, a extensão da voz é única. Confesso que, às vezes, me emociono quando ouço”, afirmou.
O colecionador relata que ouvir Clara Nunes é uma espécie de meditação, é o momento que destina a pensar na vida. Além da voz, Clara também tinha na família um pai violeiro e era a caçula de 7 irmãos, todos já falecidos. Kennedy acabou conhecendo Maria, irmã de Clara, apelidada de Dindinha. Foi ela que passou a tomar conta da, então pequena cantora, órfã aos 6 anos de idade. Kennedy teve dois encontros com Dindinha. O primeiro deles, em 2001, quando foi até Acari para a inauguração da Vila Olímpica Clara Nunes, onde a conheceu. O outro encontro foi uma surpresa que aconteceu no antigo apartamento dele, em 2004, no bairro de Copacabana, na Rua Belfort Roxo. Um amigo em comum levou Dindinha até a casa de Kennedy, junto dela estava Márcio Guima, sobrinho de Clara e também cantor. Kennedy descobriu algum tempo depois que este prédio havia abrigado a residência da cantora assim que ela veio morar no Rio de Janeiro nos anos 60.
O colecionador conta que só foi a Paraopeba (MG), cidade onde nasceu Clara Francisca Gonçalves Pinheiro, no ano de 2011, quando o museu em homenagem à “Sabiá” foi inaugurado. Após a morte de Clara, Paulo Cesar Pinheiro, marido da “Tal Mineira” enviou todos os pertences dela para a casa de Dindinha. Como havia muito material, tudo aquilo ficou guardado no sítio de uma amiga da família por aproximadamente 30 anos, até que o museu foi aberto com um acervo de aproximadamente 6 mil peças, na cidade de Caetanópolis, que só se tornou um município independente de Paraopeba em 1954, doze anos após o nascimento de Clara.
Cantora de um milhão de discos
Clara Nunes chegou a se apresentar com Vinicius de Moraes e Toquinho em um espetáculo chamado “Poeta Moça e Violão”, no ano de 1972, registrado em disco. Neste show, Clara foi elogiada por Vinicius e apontada como um dos maiores nomes da música popular brasileira. “O timbre, a qualidade do tecido da voz dela me encantava de saída e eu senti que um dia nós deveríamos trabalhar juntos. Realmente é a primeira vez que isso acontece, para grande contentamento meu. É com prazer enorme que eu trago para vocês Clara Nunes. Eu gostaria que vocês tivessem o sentimento que eu tenho quando eu ouço ela cantar. Acho uma das maiores cantoras brasileiras do momento e uma das que tem mais possibilidade de fazer uma grande carreira, um grande caminho na canção popular do Brasil”, disse Vinicius na época.
A previsão foi correta, pois Clara Nunes foi a primeira cantora brasileira a bater o recorde e vender mais de 100 mil discos, em 1972. Mas foi em 1974 que ela estourou com o LP Alvorecer, que vendeu mais de 500 mil copias. De acordo com Kennedy, depois de 74, todos os discos da cantora já saiam com tiragem mínima de 250 mil exemplares. O disco Claridade, de 1975, fez a gravadora Odeon ficar fechada para dar conta de prensar os discos, que chegaram a vender mais de 1 milhão de cópias, com todas as músicas veiculadas nas estações de rádio do país. A capa da Revista O Cruzeiro, de 14 de janeiro de 1978, que está na coleção de Kennedy, estampa o título “Clara Nunes a cantora de um milhão de discos”. A Rolling Stones publicou que ao longo da carreira de Clara, outros 3 discos também ultrapassaram essa marca: Canto das Três Raças (1976), Guerreira (1978) e Nação (1982).
Com tamanho sucesso, o que mais incomodou Kennedy e outros fãs foi a falta de menções da imprensa sobre a cantora após a morte, ainda mais na época que não havia internet que permitisse o acesso às imagens e músicas de Clara Nunes, de acordo com demanda de cada fã. “Chorei várias vezes ao ver que a ela não era lembrada por programas como o Vídeo Show, por exemplo. Era certo que no dia do aniversário e de falecimento eu assistia televisão na esperança de ver um pouco mais da história dela, assistir umas imagens, vê-la cantar, matar um pouco da saudade, mas muitas vezes não tinha nem um comentário”, lembrou.
Cerca de 15 anos após a morte, a gravadora relançou os discos de Clara Nunes, só que dessa vez em CD, ação tomada a pedido de Marisa Monte, segundo Kennedy. Clara passou a ser homenageada sobretudo com peças de teatro, e retornou para as escolas de samba como Lins Imperial, que a homenageou em 2001, com o enredo O canto da Guerreira, de Jorge Caribé. Vizinha Faladeira foi campeã do Grupo de Acesso em 1990 com o enredo Clara Nunes, o canto de um povo, assinado por Jorge Nova. Em São Paulo, a portelense também recebeu homenagens no Sambódromo do Anhembi no ano de 2005, pela Mocidade Alegre. O enredo Clara, Claridade… O Canto de Luz no Ylê da Mocidade, assinado por Zilkson Reis conquistou o
terceiro lugar.
“Na Madureira Moderníssima, Hei Sempre de Ouvir Cantar Uma Sabiá”
Para os fãs ainda faltava a homenagem máxima vinda de Madureira. “Eu nem acreditava que haveria esse enredo, quando soube fiquei muito feliz. A sensação é de fechar um ciclo”, explicou Kennedy. A Portela já havia trazido Clara Nunes em 1984, com Contos de Areia e foi campeã do carnaval junto com a Mangueira. No entanto, o enredo tratava de Natal, Paulo da Portela e Clara Nunes. A cantora, além de só ter desfilado pela Portela, é a principal voz do samba exaltação Portela na Avenida, composto em 1981 pelo marido, Paulo Cesar Pinheiro, em parceria com Mauro Duarte.
A inspiração veio da sala de estar do casal. Havia uma Nossa Senhora Aparecida com um manto azul e branco, junto dela a pomba do Espirito Santo. Com a criatividade o manto tomou lugar da bandeira da agremiação, a pomba virou águia e as procissões foram comparadas aos desfiles na Avenida.
Apesar de ser muito ligada ao samba, sobretudo, pela atuação na escola de Madureira, Clara Nunes se intitulava uma cantora de música popular e interpretava vários ritmos. De acordo com a cientista social Rachel Rua Baptista Bakke, podem ser traçados paralelos entre a trajetória artística e religiosa de Clara Nunes com a identidade musical brasileira: “Ela caminha progressivamente do bolero e da música romântica, de forte influência estrangeira, em direção a estilos cada vez mais tidos como brasileiros, marcha-rancho, samba-canção, bossa nova, forró e, principalmente, samba”, explicou no artigo Tem orixá no samba: Clara Nunes e a presença do candomblé e da umbanda na música popular brasileira.
Clara Nunes também deu voz a obra de muitos compositores. Feira de Mangaio, de Sivuca e Glorinha Gadelha, foi uma das músicas mais tocadas em 1979. A cantora gravou composições de Nelson Cavaquinho, Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Chico Buarque, Candeia, Cartola, além dos já citados Toquinho e Vinícius de Moraes. Emplacando cerca de 3 ou 4 músicas de sucesso por ano, chegou a lançar discos no Japão, Argentina, Luanda, Portugal, Itália e Canadá. Todos estão na coleção de Kennedy, assim como o álbum de fotografias inéditas do show Clara Mestiça que chegou nas mãos do colecionador.
Ele também tem as filmagens dos ensaios do show Sabiá Sabiou que não chegou a acontecer. Clara recebeu uma série de homenagens póstumas. De programas especiais na TV Globo e coletâneas reeditadas, a inúmeros CD’s como Clara com vida (1995), que trazia uma série de duetos póstumos da “Sabiá” com nomes da música como Chico Buarque, Elba Ramalho, Gilberto Gil, João Bosco, João Nogueira, Marisa Gata Mansa, Martinho da Vila, Milton Nascimento, Nana Caymmi, Paulinho da Viola, Roberto Ribeiro, Ângela Maria e Alcione, que além dessa participação, lançou em 1999 um álbum chamado Claridade (homônimo do lançado por Clara em 1975) em que interpretava as músicas de Clara Nunes.
Para 2019, a expectativa do desfile da Portela é bem alta para os fãs da cantora. Kennedy confessa que o samba que mais tinha gostado acabou sendo eliminado durante a disputa, mas acredita que o escolhido funcionará muito bem na Avenida. Para o colecionador, a carnavalesca Rosa Magalhães é “um espetáculo e virá contando a história dela de maneira brilhante”. Com o enredo “Na Madureira Moderníssima, Hei Sempre de Ouvir Cantar Uma Sabiá” os fãs se sentem representados: “Estamos em festa, agora é momento de reverenciar a nossa Guerreira”, afirmou Kennedy.