O enredo do Tuiuti para 2025 (“Quem tem medo de XicaManicongo”) é, antes de um tema histórico, um manifesto em prol das travestis. Um assunto polêmico que, conforme for ganhando publicidade com a aproximação do desfile, levantará reações cada vez mais raivosas dos setores conservadores, hoje muito organizados e populares. Por isso é um enredo importante. Não deixa essa luta eternamente no submundo, como a tal “sociedade” sempre tentou fazer, ao contrário: exibe para todo o país a força que as travestis têm ganhado e traz o tema para ser debatido por muito mais gente, ajudando a desmistificá-lo. É preciso ter coragem para “esticar a corda” e ultrapassar a simples defesa da liberdade sexual. O Tuiuti mexe num vespeiro dos mais encrencados e mostra sua disposição para representar os que não têm respaldo público.
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A sinopse começa pela história de Xica, que tem poucos registros oficiais além de um documento da “Inquisição” promovida pelos portugueses. Por isso, o carnavalesco Jack Vasconcelos foi buscar elementos para enriquecê-la. Ele parte na África, a origem de Xica, o povo Bantu que entendia as pessoas que vinham no corpo de um sexo, mas com cabeça de outro como seres especiais por fazerem a transição entre as energias masculinas e femininas. Depois narra a escravização da personagem, a imposição de um gênero quando da sua chegada ao Brasil e a perseguição que recebeu até aceitar viver “como homem” para não ser presa por bruxaria. Jack parte então para diferentes figuras de travestis e vai buscar na Jurema sagrada a religião que aceita Xica como ela era. Para encerrar falando do que significa a história de Xica para todas as travestis que ainda lutam contra preconceitos, perseguições e assassinatos.
O samba mais uma vez foi encomendado, desta vez a apenas dois compositores: Claudio Russo e Gusttavo Clarão. Dois nomes consagrados do gênero que fizeram uma obra ousada na letra e “comportada” na melodia. A narrativa não é exatamente cronológica e os primeiros versos constituem um módulo que apresenta a luta contra o preconceito, ao bradarem: Só não venha me julgar / Pela boca que eu beijo / Pela cor da minha blusa / E a fé que eu professar / Não venha me julgar/ Eu conheço o meu desejo / Este dedo que acusa / Não vai me fazer parar.
Colocado o tema, o samba inicia a história de Xica, sempre em primeira pessoa. E explicita o conflito religioso com o cristianismo, uma ideologia que não aceitou sua natureza. Os versos deixam isso claro: Faz tempo que eu digo não / Ao velho discurso cristão / Sou Manicongo / Há duas cabeças em um coração / São tantas e uma só eu sou a transição / Carrego dois mundos no ombro.
O refrão central explicita sua origem e começa a fazer uso de um linguajar mais popular, juntando palavras originalmente africanas (Mumunha, N´ganga); verbetes de um dialeto específico usado pelas travestis, o “Pajubá” e expressões indígenas (Jimbanda, que siginifca gay) ou religiosas. Vim Da África Mãe Eh Oh / Mas se a vida é vã Eh Oh / Mumunha / Jimbanda me fiz / N Ganga é raiz / Eu pego o touro na unha.
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No início da segunda parte a letra é mais ácida e direta na relação de Xica com a “sociedade” colonial brasileira. A bicha, invertida e vulgar / A voz que calou o “Cis tema” / A bruxa do conservador / O prazer e a dor / Fui pombogirar na Jurema.
Encerrada a narração da trajetória de Xica os compositores ampliam o foco para as demais travestis e figuras que vivem à margem da sociedade, como a letra diz, perseguidas. E convocam todas para a luta: Chama a Navalha, a da Praia e a Padilha / As perseguidas na parada popular / E a Mavambo reza na mesma cartilha / Pra quem tem medo o meu povo vai gritar.
A modulação final antes do refrão principal deveria ser um grito de luta, mas acaba mesclando frases de efeito, algumas delas presentes na sinopse em diferentes contextos que, postas em sequência, não criam exatamente uma conexão que tenha significado marcante. Soam como encaixes de dizeres dentro da melodia, em busca de rimas. Eu travesti estou no cruzo da esquina / Pra enfrentar a chacina / Que assim se faça / Meu Tuiuti que o Brasil da terra plana / Tenha consciência humana / Chica vive na fumaça.
O refrão final é dividido em dois momentos. Nos dois primeiros versos os compositores fazem referência ao dialeto usado pelas travestis na rua para se comunicarem sem que a polícia entenda, o Pajubá; e os dois últimos fazem uma saudação a Exu, o dono da rua. Eh! Pajubá! / Acuendá sem xoxá pra fazer fuzuê / É Mojubá / Põe marafo, fubá e dendê.
A poesia é direta e valente ao se colocar em primeira pessoa, falar como uma travesti. E mostra intensa profundidade de pesquisa para constituir um vocabulário que represente a verdade destas pessoas.
Embora a letra tenha muitas linhas (38) o samba não fica arrastado, porque os versos são curtos e fluem com facilidade. As palavras estão muito bem colocadas e fáceis de serem pronunciadas. A melodia, leve, facilita canto e evolução com variações bem marcadas a cada módulo e sempre muito bem encaixadas. A questão é se o tema não pedia algo diferente na musicalidade, que acompanhasse o tom panfletário da poesia e que incorporasse sentimentos como sofrimento, revolta e luta – pontos fundamentais da narrativa. De qualquer forma o Tuiuti tem, no plano técnico, um samba competente de acordo com os padrões normalmente aprovados pelos julgadores oficiais.