A Unidos de Padre Miguel traz uma frase de impacto para abrir o carnaval. O verso mais forte de seu samba grita que a “Vila Vintém é terra de macumbeiro”! Uma comunidade que chega ao Grupo Especial afirmando sua religiosidade de matriz africana com orgulho é um soco no estômago do preconceito. Uma frase que alguns anos atrás poderia ser usada como “acusação” chega à maior manifestação cultural do país como exaltação. É uma prova de resistência e um atestado da vitória do Candomblé que, no final das contas, é a mensagem que permeia todo o enredo: como uma crença saiu de África, germinou e se estabeleceu forte em outro continente contra todo tipo de retaliação da sociedade.

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Fotos: Allan Duffes/CARNAVALESCO

O enredo começa em Oyó, reino liderado pelo Alafin Xangô, de onde várias pessoas foram arrancadas para serem escravizadas no Brasil. Entre elas estava Yiá (mãe) Nassô que conseguiu criar em Salvador, na Bahia, um Ilê (terreiro) ao lado da Igreja da Barroquinha. É sobre isso que fala a primeira parte do samba, que é resultado da junção de dois concorrentes e que, por isso, leva nada menos que dezesseis assinaturas (Thiago Vaz, W. Corrêa, Richard Valença, Diego Nicolau, Orlando Ambrosio, Renan Diniz, Miguel Dibo, Cabeça Do Ajax, Chacal do Sax, Julio Alves, Igor Federal, Caio Alves, Camila Myngal, Marquinhos, Faustino Maykon e Claudio Russo). Na verdade, da segunda parceria (que começa no nome de Chacal do Sax), entrou apenas o refrão final – importante destacar. O corpo do samba é do time de Thiago Vaz até Miguel Dibo.

A abertura fez uma saudação a Xangô e seu reino e como a fé ficou interiorizada nas pessoas que de lá saíram, como Yiá Nassô. “Eiêô! Kaô Kabesilê Babá Obá! / Couraça de fogo no Orô do velho Ajapá / A raça do povo do Alafin, e arde em mim… / Rubro ventre de Oyó / Na escuridão, nunca andarei só”.

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Os versos seguintes, ainda dentro de uma mesma estrutura melódica, abordam a vinda de Yiá Nassô para terras brasileiras em meio a muito sofrimento, mas sempre mantendo sua fé, até que consegue abrir o primeiro Ilê. “Vovó dizia / Sangue de preto é mais forte que a travessia! / Saudade, que invade! / Foi maré em tempestade Sopra a ancestralidade no mar (ê rainha) / Preceito é herança sem martírio / Airá guarda seus filhos no Ilê da Barroquinha”.

É uma “primeira” de melodia muito forte, comunicativa e envolvente que sofre uma interrupção com os versos que se seguem e que soam como dois refrões centrais. “É a semente que a fé germinou, Yiá Adetá, O fruto que o Axé cultivou, Yiá Akalá / Yiá Nassô, ê Babá Assika / Yiá nassô, ê Babá Assika”, em que se exaltam os primeiros movimentos para a fundação do Candomblé no Brasil e as pessoas responsáveis por isso. E depois, de fato, um refrão: “Vou voltar mainha, eu vou / Vou voltar mainha, chore não / Que lá na Bahia / Xangô fez revolução”, quando os autores falam do momento em que Yiá Nassô, liberta, retorna à África após a revolta dos Malês.

Ouça o samba-enredo da Unidos de Padre Miguel para o Carnaval 2025

Este trecho, permeado por repetições de palavras e linhas melódicas, trava a fluidez melódica da obra. Mas ela reaparece na “segunda” do samba quando os autores chegam a um segundo momento. É a hora em que Yiá Nassô traz sua herdeira, Obatossi, a Salvador e ela cria a Casa Branca do Engenho Velho, terreiro definitivo para a fundação do Candomblé. O samba também fala dos Orixás que servem de pilares desta casa (Oxossi, Oxum, Ogum, Oxalá e volta a Xangô – Agodô). “Oxê… a defesa da alma na palma da mão / No clã de Obatossi, há bravura de Oxossi no meu panteão / É D’Oxum o acalanto que guarda o Otá / Do velho engenho, Xirê que mantenho no meu caminhar Toca o Adarrum que meu Orixá responde / Olorum, guia o boi vermelho seja onde for / Gira saia Aiabá, traz as águas de Oxalá / Justiça de Agodô, tambor guerreiro firma o Alujá”.

Embora a letra aí seja quase um enfileiramento de Orixás com citação a itens que os representam a música vem numa crescente empolgante para explodir no refrão final. Neste ponto se encontram os dois sambas “juntados”, mas o encaixe melódico é perfeito como se os trechos tivessem sido concebidos no mesmo processo criativo. E chega o refrão final, que é onde fica o verso citado na abertura do nosso texto. Antes há mais uma repetição de versos, mas que não parece travar o andamento melódico porque há um crescimento entre o primeiro e o segundo que os diferencia. E depois o fechamento perfeito exaltando o fato de que também na UPM as mulheres são as comandantes e consagrando Yiá Nassô, a grande homenageada, como Rainha do Candomblé. “Awurê Obá Kaô! Awurê Obá Kaô! / Vila Vintém é terra de macumbeiro! / No meu Egbé, governado por mulher… / Iyá Nassô é rainha do Candomblé!”.

Galeria de fotos da final de samba da Unidos de Padre Miguel para o Carnaval 2025

A repetição das palavras em Yorubá “Kaô” e “Obá” no início do refrão e no primeiro verso da estrofe seguinte pode sugerir o que os julgadores têm enquadrado como “falta de riqueza poética”, mas no caso embora a sonoridade seja idêntica elas têm significados diferentes dentro dos contextos citados. “Awurê Obá Kaô”, pelo que procurei saber, significaria algo como “Boa sorte àquele que sobreviveu, ou àquele que a fé não se questionou”. Enquanto na cabeça do samba o “Kaô Kabecilê” é uma saudação ao Rei Xangô e “Obá” parece ser uma referência à sua primeira mulher.

Os sambas repletos de palavras em Yorubá como este ainda geram alguma dificuldade de interpretação para quem não é iniciado nas religiões afro-brasileiras, mas isso já deixou (ou deveria ter deixado) de ser uma questão para os julgadores. A UPM chega ao Grupo Especial, depois de tanta espera, com um sambe valente que tem alguns ótimos momentos melódicos e um refrão explosivo, para mexer com o público.

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