Depois da saída de Laíla, ao final do carnaval vitorioso de 2018, a poderosa Beija-Flor não voltou a ser campeã. No próximo carnaval a escola clama pela ajuda daquele que construiu as bases “sambísticas” que a fizeram tantas vezes vencedora. Laíla nos deixou vítima de Covid, em 2021, mas é verdade que seu legado ainda está presente em algumas características da “Deusa da passarela”. Uma das maneiras de atestar isso é o samba nilopolitano para 2025: tem cara e jeito de Laíla: é pujante, forte, emocionado e emocionante. Tem pegada de comunidade. Fruto óbvio das sementes plantadas pelo mestre.
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E os compositores nunca negaram isso. Rômulo Massacesi, Junior Trindade, Serginho Aguiar Centeno, Ailson Picanço, Gladiador e Felipe Sena – com a participação indisfarçada de Samir Trindade – cresceram enquanto autores de samba-enredo sob a batuta e orientação do velho griô. E eles entenderam que para representa-lo no enredo “Laíla de todos os santos; Laíla de todos os sambas” o único caminho possível era a emoção.
A letra do samba se fixou mais na introdução do enredo do que exatamente na sinopse que vem a seguir. Até porque, embora o texto base siga uma certa cronologia para contar a vida do homenageado, não conta exatamente história com início, meio e fim. Se fosse fiel à história de Laíla teria, obrigatoriamente, de dedicar uma expressiva parte de seu desenvolvimento ao Salgueiro, onde ele foi criado como sambista – mas isso não acontece. O caminho escolhido foi outro. Laíla do enredo é antes de tudo um personagem da Beija-Flor que ela ajudou a fazer vitoriosa.
Vídeos: apresentação da Beija-Flor na Cidade do Samba para o Carnaval 2025
Por isso o samba já começa acertando em cheio ao clamar, pela primeira vez, por sua ajuda: “Kaô, meu velho! Volta e me dá os caminhos / Conduz outra vez meu destino/ Traz os ventos de Oyá” – versos já explicam todo o enredo. E segue na mesma estrada “Agô, meu mestre / Tua presença ainda está aqui / Mesmo sem ver, eu posso sentir / Faz Nilópolis cantar!”. Elementos da religiosidade afro-brasileira como “Kaô (saudação a Xangô, orixá de cabeça de Laíla); Agô (um pedido de licença) e Oyá (codinome de Iansã, a quem Laíla pediu os ventos antes do desfile de 2005 e foi atendido) estão presentes. Eles são usados para ajudar a contextualizar o enredo, já que Laíla também foi escolhido pela sua ligação com este universo, algo que a agremiação buscava.A religiosidade continua nos versos seguintes em que os autores falam dos personagens próximos ao homenageado desde a infância. “Desce o morro de Oyó, Benedito e Catimbó / O alabá Doum / Traz o terço pra benzer / E a cigana puerê / Meu Exu”.
Para em seguida já entrar no dia a dia de Laíla na Beija-flor – “De copo no palco, sandália rastera / No chão sagrado toda quinta-feira”, fazendo alusão à condução musical que ele fazia nos ensaios da agremiação, que continuam acontecendo às quintas, sempre com um copo de cerveja na mão, uma cena única. O refrão central vai desfilando mais traços da personalidade do homem e do carnavalesco Luiz Fernando do Carmo: “O brado no tambor, feitiço / Brigou pela cor, catiço / Coragem na fala sem temer a queda / O dedo na cara, quem for contra reza”. No alvo!
A “segunda” inicia um caminho melódico de muita vibração que vai crescendo até explodir no refrão final. E os versos continuam descrevendo a personagem sem se prender a roteirizações. “Vencer o seu verbo / Gênio do ouvido perfeito / A trança nos versos / Divino e humano em seu jeito / Queria paz mas era bom na guerra / Apitou em outras terras, viajou nas ilusões / Deu voz à favela e a tantas gerações”. Uma das grandes virtudes deste samba e do enredo é que eles não precisam de muita explicação. Principalmente para quem conhecia um pouco do homenageado. É tudo auto-explicativo.
Galeria de fotos: apresentação da Beija-Flor na Cidade do Samba
Aqui começa o momento mais emotivo da obra musical, quando a comunidade da escola se coloca órfã de seus grandes líderes criativos, assume a importância de Laíla e “chama Joãosinho 30”, que por muitos anos foi seu parceiro (embora depois tenham brigado). “Eu vou seguir sem esquecer nossa jornada / Emocionada, a Baixada em redenção / Chama João pra matar a saudade / Vem comandar sua comunidade”, mais uma vez clamando pela ajuda e participação de Laíla para trazer de volta as glórias da escola.
“Óh Jakutá (Xangô), o Cristo preto me fez quem eu sou / Receba toda gratidão, Obá /Dessa nação nagô”. Aqui há uma referência à alegoria que ficou conhecida como “Cristo Mendingo” no carnaval 1989, que saiu coberto por plástico preto e com o cartaz “Mesmo proibido olhai por nós”. Laíla reivindicava para si esta solução. Ao mesmo tempo o verso pode ser lido como uma referência ao homenageado como um Cristo para sua comunidade.
E vem o refrão que já ganhou uma coreografia agitada e viralizada. Aqui os compositores falam do padroeiro da agremiação (Ogum), dono da casa, mas repetem a alusão a Xangô, o guia de Laíla, líder dos componentes. O samba fala em dobra dos atabaques para saudar o grande Laíla, dono do terreiro da escola. “Da casa de Ogum, Xangô me guia / Da casa de Ogum, Xangô me guia / Dobram atabaques no quilombo Beija-Flor / Terreiro de Laíla meu griô”.
Este hino encheu meus olhos d´água na primeira audição. E sei que isso deve ter acontecido com muita gente. É feito para arrepiar, para a comunidade passar rasgando o asfalto. Pode ser um pouco repetitivo em alguns pontos, não ter o refino poético de outros, mas tem o mais importante: a essência de Laíla. Não espero nada menos que um sacode.