O samba da Mangueira para 2025 não foi bem recebido pela chamada “bolha do carnaval” desde a época da disputa. Talvez uma parte disso se deva ao fato da repetição da parceira vitoriosa – reação normal a uma sequência de sambas dos mesmos autores. O enredo também não trouxe uma história completamente nova, apenas o enfoque nos povos Bantu. Isso pode ter contribuído. Mas se nos despirmos de preconceitos e analisarmos fria e tecnicamente o samba ele tem os requisitos necessários para alcançar boas notas. Além de ter algumas passagens musicais bem interessantes.
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O enredo “À Flor da Terra – No Rio da Negritude Entre Dores e Paixões”, do carnavalesco estreante no Rio de Janeiro Sidnei França, propõe “um olhar sobre a presença dos povos bantus no Rio de Janeiro”. Estes povos do mesmo agrupamento linguístico da África Central foram maioria dentre os escravizados na cidade. A região de origem dos bantus hoje corresponde a Angola, Congo, Gabão e Cabinda. A Mangueira promete retratar “a vivência dessa população em toda a cidade, a partir da sua chegada nessa região, revelando sua história à flor da terra”. Ou seja, exaltando as “as vidas negras que florescem no solo carioca”.
Os compositores Lequinho, Júnior Fionda, Gabriel Machado, Júlio Alves, Guilherme Sá e Paulinho Bandolim já começam apontando para duas cidades angolanas, Luanda e Benguela, citando a travessia criminosa dos africanos para o Brasil, e assumindo o papel de quilombola. Outro ponto desta abertura do samba é a referência a rebeldia / resistência marcas dos pretos desde aquela época até os dias atuais.
“Sou Luanda e Benguela
A dor que se rebela, morte e vida no oceano
Resistência quilombola dos pretos novos de Angola
De Cabinda, suburbano…”
O samba continua contextualizando o personagem que conta o enredo, o povo preto da escola, sua “flor de terra”. Que se rebela desde que chegou ao cais do Valongo e transformou o centro do Rio na “Pequena Àfrica”. Este trecho fala das “Kalungas ancestrais”. Na sinopse há um glossário que descreve “Kalungas” como “ideia de grandeza e imensidão. Pode designar a morte, o mar (kalunga grande) e cemitérios (kalunga pequena)”.
“Tronco forte em ribanceira, flor da terra de Mangueira
Revel do Santo Cristo que condena
Mistério das Kalungas ancestrais
Que o tempo revelou no cais
E fez do Rio minha África pequena”.
Os versos seguintes passam a falar da musicalidade e da ginga que os povos bantus trouxeram ao Brasil. “Malungo” era como eles chamavam uns aos outros. Aqui surge mais um país africano, o Congo, de onde vieram mais bantus para o Rio. Este trecho tem uma pegada de refrão, mas não é. Na verdade é uma preparação para ele.
“Ê malungo, que bate tambor de Congo
Faz macumba, dança jongo, ginga na capoeira
Ê malungo, o samba estancou teu sangue
De verde e rosa renasce a nação de Zambi”
O primeiro refrão do samba faz referência à religiosidade com foco em palavras do candomblé de Angola, uma nação que se baseia em rituais das culturas africanas. A expressão “Pembelê” é uma saudação; Kaiango é uma divindade que representa a “Senhora do Fogo”. O “Camutuê” é a “cabeça” do filho de santo. Já “Inquice” são entidades correspondentes aos “Orixás”.
“Bate folha pra benzer Pembelê, Kaiango
Guia meu Camutuê, mãe preta me ensinou
Bate folha pra benzer, Pembelê, Kaiango
Sob a cruz do seu altar Inquice incorporou”
O samba sai do tom maior para o menor na segunda parte quando passa a retratar a história de dificuldades, preconceitos e sofrimentos dos pretos cariocas no dia-a-dia da cidade. Este trecho tem linda melodia, perfeitamente condizente com a representatividade dos versos.
“Forjado no arrepio
Da lei que me fez vadio
Liberto na senzala social
Malandro, arengueiro, marginal
Mas a virada começa com a cultura, que caminha ao lado da resistência. Os Zungus, citados no samba, são descritos na sinopse como “Complexos comerciais, festivos e de habitação em que interagiam, predominantemente, negros escravizados e libertos”. A violência diária, especialmente nas favelas, encerra este trecho do samba com foco nos sobreviventes.
“Na gira, no jogo de ronda e lundu
Onde a escola de vida é Zungu, fui risco iminente
O alvo que a bala insiste em achar
Lamento informar… um sobrevivente
O samba da Mangueira chega à parte em que celebra a musicalidade preta carioca e toda a cultura que floresce a partir dela conquistando o “asfalto”. Outro trecho musicalmente rico.
“Meu som por você maculado
Sempre censurado pela burguesia
Tomou a cidade de assalto
E hoje no asfalto a moda é ser cria
Quer imitar meu riscado, descolorir o cabelo
Bater cabeça no meu terreiro”.
Aqui os compositores repetiram o recurso do “pré-refrão” que eles mesmos usaram nos últimos anos. Funciona no desfile, mas já deixou de ser novidade. Ainda assim é forte, pois exalta Matamba, a equivalente a Iansã – padroeira de Mangueira.
“É de Arerê, força de Matamba
É dela o trono onde reina o samba”
E vem o refrão final, hora da explosão. A gente pode achar que mais uma vez é a Mangueira fazendo uma auto-exaltação. E é. Mas é também para onde o enredo conduz o samba. Então estamos mais uma vez a verde-e-rosa assumindo o papel de ser a voz do gueto. Eu tenho desde a primeira vez que ouvi, a impressão que o verso “dona das multidões” tem um encaixe melódico um pouco forçado, mas o que vem depois é brilhante: “Matriarca das paixões”, aqui sim uma tradução inovadora da simbologia mangueirense. E o samba fecha com dois versos que traduzem e simplificam o enredo. Na mosca!
“Sou a voz do gueto, dona das multidões
Matriarca das paixões, Mangueira
O povo banto que floresce nas vielas
Orgulho de ser favela”.
A história do carnaval já registrou muitos sambas que chegaram à avenida com enorme expectativa e não funcionaram no desfile. O contrário também já aconteceu várias vezes: sambas pouco comentados explodiram na hora “H” beneficiados por uma menor saturação do público. A Mangueira tem chance de fazer isso, surpreender a plateia da Sapucaí. Um samba que pode crescer conforme o visual for conquistando as pessoas e completando a música. E, convenhamos, para uma escola popular como a Estação Primeira isso não seria nada fora do comum.