Paulo Barros e a Unidos de Vila Isabel vão levar um Trem-fantasma para a avenida, passear pelas mais diversas “assombrações” e encerrar com um grande baile de Haloween. Este “Quanto mais eu rezo mais assombração aparece”, é claramente um enredo na contramão da temática afro-religiosa reinante no carnaval atual. Não só porque busca outro caminho, mas também porque pode ser entendido como uma ironia aos muitos desfiles que têm falado de entidades espirituais. Não deixa de ser uma espécie de revisita à temática do “terror”, que o próprio Paulo Barros apresentou em 2011 na Unidos da Tijuca com “Esta noite levarei a tua alma”. A proposta, à primeira vista, parece ser realizar um desfile leve e descontraído, recheado pelas surpresas que já viraram tradição na obra do carnavalesco. Mas uma leitura das entrelinhas revela algo mais.
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O samba de Raoni Ventapane (neto de Martinho da Vila), Ricardo Mendonça, Dedé Aguiar, Guilherme Karraz, Miguel Dibo e Gigi da Estiva traz a ideia de leveza e simplicidade. É curto (dura cerca de dois minutos), com versos e melodia fáceis, sem muitas travas ou grandes variações melódicas. Nas primeiras linhas faz uma introdução ao tema, convidando o público a curtir a brincadeira da escola. Aqui os compositores ainda aproveitaram para afagar o ego do patrono da agremiação, ao incluí-lo indiretamente na letra do samba – algo que deve ter ajudado na sua escolha. “Embarque nesse trem da ilusão / Não tenha medo de se entregar / Pois nosso maquinista é capitão / E comanda a legião que vem lá do Boulevard”.
Na sequência a letra inicia a descrição dos setores do enredo que tratam seres folclóricos do país que, em geral são entidades protetoras da floresta, como “assombrações”. O Curupira, por exemplo, ganha um “passa-fora” na letra debochada do samba: “O breu e o susto em meio à floresta / Por entre os arbustos, quem se manifesta? / Cara feia pra mim é fome / Vade-retro lobisomem, Curupira sai pra lá / No clarão da lua cheia / Margeando rio abaixo /Ouço um canto de sereia”.
O refrão central traz um recurso estilístico chamado Anadiplose, quando você repete palavras, no caso “Água, Assombra/Sombra e Noite”, em versos subsequentes para dar ênfase a elas. Não deve ser encarado como falta de riqueza poética. Neste trecho o samba fala sobre uma tempestade noturna que os viajantes são obrigados a encarar. “Ê caboclo d’água / Da água que me assombra / À sombra da meia-noite / Foi-se a noite de luar (oooi) / Na tempestade, encantada é a gaiola / Chora viola, pra alma penada sambar”.
Veja o clipe feito pela Vila Isabel para o samba-enredo de 2025
A segunda parte começa com mais um bis, num trecho que traz consigo mais uma referência ao catolicismo (“Ave Maria”) e que cujos versos permitem a interpretação de outra ironia às exaltações a entidades que outras escolas vêm fazendo e farão em 2025: “Nas redondezas, credo em cruz Ave Maria / Quanto mais samba tocava, mais defunto aparecia”.
Num enredo cujo fio condutor é um Trem-fantasma havia de chegar a hora dos vampiros. E eles lá estão representados na “segunda” do samba – “Silêncio / Ao som do último suspiro vai chegar / A batucada suingada de vampiros / Quando o apito anunciar…”.
Barros lembrou ainda do medo que as crianças tinham antigamente de um tal “bicho-papão”, que os compositores aproveitaram para transformar numa exaltação à escola colocando-a como temida no mundo do samba. Um temor que, neste caso, gera atração: “Eu aprendi que desde os tempos de criança / A minha Vila sempre foi bicho-papão / Por isso, me encantei com esse feitiço / Que hoje causa rebuliço arrastando a multidão”.
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O Haloween que encerra o desfile após o desembarque do “Trem-fantasma” está no refrão final. Uma pertinente referência ao grito de guerra do intérprete Tinga logo no seu início e exalta a escola, prometendo muita animação e brincadeira. “Solta o bicho, dá um baile de alegria / É o povo do samba virado na bruxaria / O caldeirão vai ferver, eu quero ver segurar / Não tem jeito, a Vila vai te pegar!”.
A Vila parece estar num momento de crise de identidade quanto a seus enredos e sambas. A escola de Martinho, que transcendeu com uma Kizomba repleta de axé espiritual, mas que também cantou “Direito é Direito”, a luta dos trabalhadores e tantos outros enredos profundamente culturais, hoje propõe uma festa do terror que foge da sua linha histórica.
Os sambas de enredo seguem esta mesma irregularidade. Depois de um longo período embalada por bons sambas de André Diniz e Evandro Bocão, nos últimos carnavais a Vila variou entre um samba clássico reeditado de Martinho e outros dois que nada têm a ver em estilo com ele. A referência deste de 2025 na história recente da agremiação é o hino de 2023, sobre as festas. Um samba que proporcionou bom desfile de chão, mas que foi castigado pelos julgadores devido à sua extrema simplicidade estética.
Lembro que uma vez, em 1994, eu estava no ensaio da branco-e-azul na escola Equador, à luz do luar, na quadra de esportes. Naquela noite a Vila foi visitada por compositores da Caprichosos, que receberam olhares atravessados quando cantaram o samba daquela temporada. Uma obra leve, descompromissada e descontraída. Os tempos mudaram e hoje é a Vila que opta por este estilo.
Vamos ver como público e, principalmente, os julgadores vão entender esta proposta tão diversa. Pode ser um gol de placa, que mudaria as tendências de enredos e sambas. Ou o contrário.