“A Mina é Cocoriô” tem grande chance de ser o verso mais cantado, ouvido, gritado no carnaval de 2025. O samba da Grande Rio é uma rara espécie de “clássico instantâneo” no gênero samba-enredo. Desde que foi lançado como concorrente causou impacto. Isso porque alcançou a árdua tarefa de unir, com extrema sensibilidade, o samba carioca à magia da musicalidade paraense. Sua maior virtude é ter muito da sonoridade local, é ter cheiro de Pará. Isso lhe confere uma “verdade” pouco comum no universo de sambas de enredo, quando se fala de temas distantes do Rio de Janeiro.

* Seja o primeiro a saber as notícias do carnaval! Clique aqui e siga o CARNAVALESCO no WhatsApp

O enredo dos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad constrói, a partir da lenda das princesas turcas, um mosaico da cultura popular paraense. É uma história envolta em magia, ancestralidade e fé. Tem como base as religiões Tambor de Mina e Catimbó-Jurema, braços da Umbanda, muito populares na região. E abraça a cultura do local através de ritmos como o Carimbó que tem muitas músicas cujas letras abordam estes cultos miscigenados. Algumas destas músicas estão inclusive presentes na sinopse como forma de compor o cenário místico do enredo e mostrar o quanto ele se identifica com a crença dos paraenses.

As princesas Mariana, Herondina e Jarina teriam partido da Turquia fugindo de uma guerra, que teoricamente é a guerra que marcou o fim do Império Otomano – há pouco mais de um século, e chegado até Ilha de Marajó, ou perto dali. Vítimas de um naufrágio, se encantaram e passaram a receber proteção de uma entidade local, o Verequete, indo parar no fundo dos rios amazônicos. Reza o misticismo popular que cada uma se transformou num animal da fauna local, como diz o samba. Aliás, vamos a ele.

Vídeos: apresentação da Grande Rio na Cidade do Samba para o Carnaval 2025

É uma obra que partiu do concurso realizado entre as Escolas de Samba de Belém, a pedido da Grande Rio. Cada agremiação de lá apresentou seu concorrente e dois deles se classificaram para a semifinal em Duque de Caxias. O compositor paraense Ailson Picanço, que há anos já participa das disputas de samba-enredo nas escolas do Rio de Janeiro, foi convidado pela escola “Deixar Falar” para compor o samba deste concurso. Mestre Damasceno, referência da cultura popular marajoara, também foi convocado. Junto com Davison Jaime, Tay Coelho e Marcelo Moraes eles assinam o belo samba da tricolor de Caxias.

A abertura do samba é de uma sonoridade incrível. As palavras são de fácil dicção e a melodia as usa para construir um cenário musical, que combinada com a história que está sendo contada, nos atiça a imaginação e nos transporta para os rios da floresta. Quando um samba toca a imaginação de quem o escuta atinge o máximo do que se pode esperar de uma obra artística musical.

Grande Rio 2025: ouça a versão oficial do samba-enredo

Ailson Picanço contou ao Podcast SAMBA LEAL que a frase “A mina é cocoriô”, que inicia o samba, é usada para iniciar os rituais religiosos do Tambor de Mina. Na sequência a história das princesas é contada com muita sensibilidade de uma forma que só poderia ser feita por quem conhece a fundo essa cultura porque vai desfilando uma série de itens locais e encaixando-os com maestria no desenvolvimento da trama… “Feitiçaria Parawara (o que vive no rio) / A mesma Lua da Turquia / Na travessia foi encantada / Maresia me guia sem medo / Pro banho de cheiro / Na encruzilhada, espuma do mar / Fez a flor do mururé desabrochar”. Este verso, por exemplo, é como se a chegada das princesas despertasse a vida nas plantas aquáticas.

A letra segue desfilando referências locais para descrever a vida em meio às águas amazônicas. “Pororoca me leva pro fundo do igarapé / Se desvia da flecha, “não se escancha em puraqué…”. Aqui há uma citação à música “Este rio é minha rua”, escrita por Ruy Barata e seu filho Paulo André, sucesso na voz de Fafá de Belém. Puraqué é um grande peixe elétrico das bacias amazônicas, que dá choque. Escanchar seria montar no peixe. Quem “se escancha em puraqué” é porque não sabe o que está fazendo e vai se dar mal. Na sequência novas citações a seres do folclore “Quem é de barro, no igapó (parte alagada da floresta), é Caruana (energia subaquática) / Boto assovia, Mãe d’Água dança… Se a Boiúna (cobra grande do fundo do rio) se agita, é banzeiro (movimento das ágias que pode até virar um barco), banzeiro”.

No meio do refrão os autores introduzem outra referência musical. “Quatro contas” é uma das músicas da cantora Dona Onete, que estará no desfile. Essas contas são as três princesas e a Jurema, árvore sagrada. Para depois citar os animais em que se transformam as turcas: “Quatro Contas, um cocar (da Jurema) / Salve Arara Cantadeira (Mariana), Borboleta à espreita e a Onça do Grão-Pará (Herondina)”. Na mitologia Jarina, a terceira princesa se transforma em Jiboia e não em borboleta. Mas há um trecho da sinopse que cita uma borboleta azul em que se pode voar. Lembrem que é um enredo baseado em encantarias e não em fatos científicos.

Galeria de fotos: apresentação da Grande Rio na Cidade do Samba

A segunda parte do samba mergulha fundo nos rituais religiosos. “Na curimba de Babaçuê (Tambor de Mina) / Tem falange de ajuremados / A macaia (ritual na mata) codoense (Codó é uma cidade no Maranhão, estado vizinho ao Pará) é macumba de outro lado / Venham ver as Três Princesas “baiando” no Curimbó / É Doutrina (músicas do tambor de mina) de Santo rodando no meu Carimbó”. Este trecho tem melodia picotada, swingada que dá um balanço diferente para remeter aos batuques.

O samba parte para sua reta final jogando o tom lá no alto em melodia crescente para explodir no refrão enquanto a letra segue tratando do que acontece nos terreiros do tambor de mina. “E foi assim… Suas espadas têm as ervas da Jurema / Novos destinos no mesmo poema / E nos terreiros, perfume de patchouli / Acende a brasa do defumador
Pro mestre batucar a sua fé / Noite de festa… Curió (pássaro cujo nome é indígena e significa amigo do homem) Marajoara / Protege Caxias, nas Águas de Nazaré”.

E chega o refrão muito valente, daqueles para empurrar a evolução da escola. Porque “É força de Caboclo, Vodun e Orixá / Meu povo faz a curva como faz na gira / Chama Jarina, Herondina e Mariana / Grande Rio firma o Samba no Tambor de Mina!”. Um perfeito resumo do enredo citando as princesas, a escola e o tambor de mina.

É um samba com um recheio cultural consistente que se percebe na letra e transborda na melodia. Tem tudo para conduzir a Grande Rio a um desfile inesquecível, com a força dos povos do Pará e de Caxias.