Mocidade Desfile2019 076

Nome do enredo: Elza Deusa Soares
Nome do carnavalesco: Jack Vasconcelos

No limiar das duas estrelas de Padre Miguel: Elza Soares e Mocidade Independente

A Mocidade Independente de Padre Miguel trará, para o carnaval de 2020, o enredo Elza Deusa Soares, o qual é muito esperado pelo grande público do Carnaval e reivindicado há muito tempo pelos torcedores da verde e branco de Padre Miguel. O enredo tende a não se prender somente à vida pessoal de Elza, mas como vida e obra estão intimamente relacionadas: cantam-se as dores da vida. O enredo, nesse sentido, é canto de luta, é denúncia, é voz da negritude, da mulher.

Como texto base para a realização do enredo, há uma sinopse bastante poética, em terceira pessoa, que remete logo à Mocidade contando a história de Elza Soares, uma de suas filhas. Há, nesse sentido, na sinopse, o encontro em duas estrelas: a de Padre Miguel e a da artista Elza.. A sinopse, ainda, possui breves narrações sobre momentos marcantes da vida e carreira da cantora. A emoção é o carro-chefe do texto. Algumas passagens do texto levam o leitor a vivenciar, de forma afetiva e emocionante, cenas arrebatadoras vividas por Elza. É, nesse sentido, tamanho o cuidado e detalhes descritivos do texto ao apresentar as cenas, como a seguinte passagem: “Na aquarela de Ary, não havia destaque para a cor da resposta visceral, raio cósmico, cortina do passado dilacerada ante a metamorfose de uma divindade em flor: “eu vim do planeta fome”. Desvario. Apoteose. A primeira.”. O texto é, portanto, uma produção instigante e ilustrativa, pois, além de transportar o leitor/espectador à cena, transmite, nas entrelinhas, o silêncio, a surpresa, o momento.

A relação de identidade entre o enredo e a escola é imediata. Ora, falar de Mocidade é falar de Elza, assim como falar de Elza é falar de Mocidade. O enredo, nesse sentido, não somente apresenta uma figura de forte representatividade social, racial e cultural da música popular brasileira, mas também uma mulher intimamente ligada à agremiação, abraçada pela comunidade e pelo mundo do samba, que representa, de certa forma, a voz das minorias ignoradas e exploradas pelo Estado, como o negro, melhor, a mulher negra, por exemplo.

A sinopse possui ainda forte apelo narrativo e descritivo de cenas e elementos, remetendo a uma determinada estética e a uma dramatização das histórias apresentadas. Quanto à estética, trabalha a da era de ouro do Rádio no Brasil, principalmente nos anos 50, quando Elza faz sua primeira apresentação ao vivo no rádio. O elemento de dramatização da sinopse está presente na apresentação da história da cantora, sua infância pobre, filhos, amores, altos e baixos de sua vida e carreira.

Embora haja certa linearidade quanto à apresentação da história de vida, carreira, sucessos, ligação da homenageada com a Mocidade, declínio da carreira e retorno de grande sucesso como momento apoteótico do enredo, há uma característica da sinopse que salta aos olhos: a leveza com que são apresentados dados fundamentais para se contar a história, como o local de nascimento e ligação entre Elza Soares e Mocidade. Esses dados, ora, são integrados ao texto de forma leve, poética, descritiva e envolvente, que tende a tirar certo “engessamento” que muitas vezes são frequentes em enredos biográficos.

Para a atualidade, é muito interessante e necessário reconhecer a importância do enredo, não só para o Carnaval carioca, mas para a sociedade brasileira. Falar de mulher, da mulher negra e de origem humilde, que dá voz a minorias e possui um grande legado artístico que faz parte da história da música brasileira e ainda se apresenta enquanto atual é essencial. Falar de Elza Soares, portanto, vai além de falar da grandiosa história de luta, superação e sucesso da cantora. É falar também do protagonismo feminino, como mencionado na sinopse, sobretudo da luta enfrentada pela mulher negra na sociedade brasileira. Um enredo, de certa forma, politizado ao mesmo tempo em que se apresenta enquanto resgate de um personagem da Mocidade Independente de Padre Miguel.

O enredo ainda trabalha questões de representatividade muito significativas para o lugar da mulher negra na sociedade brasileira. Quanto ao primeiro aspecto, traz à tona o lugar que, historicamente, é reservado à mulher negra na sociedade: a mulher pobre, a empregada doméstica, a cuidadora (…); logo após, aponta o lugar da superação, ou das superações, dessas “barreiras” impostas por uma sociedade preconceituosa. Coloca a negritude como vencedora: o lugar de produção, de protagonismo da mulher negra na sua história, mostrando o potencial artístico e de trabalho de Elza Soares, o potencial de superação. A Mocidade toca, nesse sentido, em algumas das feridas da sociedade brasileira.

Portanto, com uma forte característica política e de crítica social, a Mocidade trará Elza, a mulher negra de uma comunidade que dará voz para tantas outras que foram e ainda são silenciadas pela sociedade brasileira. Raio de verdade e de luz na escuridão da violência, do preconceito, Elza iluminará a Marquês de Sapucaí com verdade de suas lutas, suas glórias e da sempre esperança de vencer. Não importa o resultado na pista: Elza e Mocidade já venceram! Salve Padre Miguel!

Daniel Paiva Vieira da Cruz – [email protected]
História – Instituto de História UFRJ
Membro Efetivo OBCAR/UFRJ
Leitor orientador: Mateus Almeida Pranto
Letras / Literatura – Faculdade de Letras UFRJ

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