Especial Barracões SP: Questionando a ‘culpa’, Raízes do Samba se prepara para estrear no Anhembi

Escola cruzmaltina apresentará enredo abstrato baseado nos males da sociedade moderna, e usando da magia do carnaval para criar um mundo ideal

De quem é a culpa pela chegada da tradicional série “Barracões” ao ano de 2025? Foi desbravando os preparativos do Raízes do Samba para o desfile do Grupo de Acesso 2 que o CARNAVALESCO procurou conhecer sobre o enredo “De quem é a culpa?”, assinado pelo carnavalesco Arisvaldo Oliveira Soares, o Babu Energia.

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Fotos: Lucas Sampaio/CARNAVALESCO

Vice-campeã do Grupo Especial de Bairros em 2024, a jovem agremiação fundada em 2015 é comandada por sambistas veteranos e se identifica como uma escola “da cidade de São Paulo”. O Raízes do Samba é aberto a todos que se interessarem pela filosofia de resgate de um estilo tradicional de ser de uma escola de samba. “Uma filosofia séria de uma gestão que propõe acolher as pessoas, trazer de volta a comunidade para dentro da quadra, para dentro do barracão”, segundo Babu Energia, que há quatro anos contribui para o projeto da escola.

Fugir do comum para chamar atenção das pessoas

A estreia no Sambódromo é um momento único com o qual muitas escolas de samba dos grupos de bairro sonham um dia conseguirem realizar. Da oportunidade de se apresentar pela primeira vez ao público que frequenta o Anhembi é que vem a ideia do Raízes do Samba em trazer um enredo que fuja do que se tornou comum, como uma jogada de marketing. Babu Energia conta que o enredo já fazia parte de suas ideias, e que a proposta casou com o impacto que a agremiação deseja causar no carnaval de 2025.

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“Quando terminamos o último carnaval, do qual saímos vencedores e que era um grande sonho dos nossos presidentes, o Júnior, a Jaqueline e o Robson, que essa escola chegasse na Liga, achava-se que demoraria um pouco mais. Com a minha chegada, eu dei essa injeção de ânimo. ‘É possível e acho que em dois carnavais’, e batemos forte aqui. A ideia da ‘culpa’ chega para colocar o Raízes no olho da coruja, colocar o Raízes na mídia. Talvez, se eu escolhesse um enredo comum, como enredo afro, um CEP, um artista, eu seria mais um dentro dessa gama de enredos, mas eu precisava de um enredo que chamasse a atenção, que reunisse tudo que todos falavam, e a ‘culpa’ me possibilitou isso. Aí vem a ideia de resgatar esse enredo que não foi criado diretamente para o Raízes. Eu já tinha esse projeto na gaveta e sugeri para a escola que a gente fizesse porque era um enredo que iria chamar muita atenção da imprensa e das outras escolas porque é na contramão. Você pode ver que no nosso grupo não existe um enredo que se aproxime dessa ideia louca e abstrata que é a ‘culpa’”. O primeiro setor é um alerta para o sentimento da culpa porque ela, se a gente parar para analisar, está no nosso dia a dia. Quando a criança faz uma traquinagem dentro de casa, por exemplo, a mãe fala: ‘meu Deus, Chiquinha, a culpa dessa criança é ser assim’. Veja que a todo momento o nosso enredo é lembrado dentro da casa das pessoas, no trabalho. ‘De quem foi a culpa disso?’. ‘Quem fez isso?’. ‘Não é minha, a culpa é dele!’. A todo momento as pessoas vão estar lembrando do Raízes e era essa a minha intenção. Era essa dualidade, esse jogo de marketing que trouxesse as atenções para a escola. Chamamos a atenção das pessoas, como a gente conseguiu fazer, e agora quero que as pessoas se aproximem e entendam essa nova filosofia”, explicou Babu.

Sociedade doente: de quem é a culpa?

Muitas pessoas devem se perguntar como é feita a pesquisa para um enredo abstrato. No caso da “culpa” de Babu Energia, as respostas para algumas perguntas do dia-a-dia vieram de forma bastante profunda, rendendo importantes reflexões e causando choques de realidade. Foi com muita emoção que o carnavalesco contou o momento mais impactante na jornada para descobrir de quem é a culpa pelos males que acometem a sociedade atual, que acabou inspirando alas do desfile do Raízes.

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“As pessoas têm muita curiosidade em como vamos distribuir isso como enredo, já que ele é totalmente abstrato, solto e que envolve variados assuntos. Durante a pesquisa da ‘culpa’, e começou com uma curiosidade muito grande da minha parte, percebi que há uma grande população negra que vive exposta nas ruas como mendigos, sofrendo ataques sociais. É um percentual muito grande e não estou falando isso de pesquisa de internet, estou falando isso de vivência. Passei alguns dias indo ao centro de São Paulo, na Cracolândia, sem que ninguém percebesse, e pude observar no dia a dia, inclusive, como as pessoas tratam. Eu arrepio porque isso foi muito profundo: como as pessoas tratam um mendigo negro e um mendigo branco. Eu vi isso de perto e é horrível, é horrível. Eu pude perceber isso de forma presencial, e como uma pessoa negra me doeu demais. Eu vi um destrato com um mendigo no trânsito. Depois, me aproximei dele e ficamos batendo um papo, isso tudo no período em que eu estava criando a ‘culpa’, e aí abriu uma coisa na minha cabeça. Eu sei que somos formiguinhas muito pequenas, mas falei: “eu vou fazer isso’, então dediquei. Nesse setor de caos social dediquei uma atenção muito bacana na ala que chamamos de ‘Lixo e luxo’, que fala exatamente desse descarte social. Não estou dizendo isso de fonte de pesquisas, eu vi isso. As pessoas saem de restaurantes, de lanchonetes, elas preferem jogar fora a comida a dar para alguém. Foi no ato que eu vi isso ali, pessoas jogando fora e a grande maioria dos mendigos negros mexendo na lata do lixo e comendo. Aquilo foi muito agressivo, e aí nasce a ala ‘Lixo e luxo’, dessas pessoas que vivem nas suas suntuosidades, que moram nas suas coberturas e depois jogam os seus restos, e esses mendigos, na sua maioria negros, que é a discussão ali naquela lacuna dentro do enredo, vivem dessas migalhas. O que a gente precisa fazer para mudar isso? A gente precisa enxergar o ser humano como tal, como ser humano, e dar oportunidades a essas pessoas. Ao contrário do que as pessoas pensam, que são vagabundos que estão nas ruas, ali tem muito pai de família, ali tem muita menina que por falta de direcionamento são expulsas de casas, ali tem gays, muitos novinhos, conheci um de 14 anos. Ali tem muita menina que por falta de direcionamento são expulsas de casas, que a família não aceita. Em plena atualidade a gente ainda enfrenta isso. Pude perceber que é um problema social que as pessoas e o governo deveriam se atentar e criar um projeto de resgatar aquelas pessoas. Por isso que na abertura do samba eu falo sobre o amor. Só através do amor é que a gente vai conseguir tocar o coração do homem, assim como a maldade tocou”, manifestou.

Do Jardim do Éden ao Mundo Ideal

O desfile do Raízes do Samba será dividido em dois setores. Babu Energia pede para que o público fique atento nos detalhes para que o contexto do enredo seja compreendido na sua totalidade. “Temos uma comissão de frente maravilhosa liderada pelo coreógrafo Maurício Oliveira, que também vai ser uma coisa diferenciada, muito bacana. Quero que as pessoas prestem atenção nessa comissão de frente”, apontou.

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O primeiro setor apresentará o Jardim do Éden, trazendo o pecado original da Bíblia cometido por Adão e Eva. A história bíblica conduzirá o caminho inspirado pelas pesquisas do carnavalesco para a apresentação de diferentes males que acometem o mundo, questionando de quem é a culpa por eles existirem.

”Começo a destrinchar outros pontos porque nessa vivência sobre mendigos e pessoas negras vem as questões da galera LGBT, que também é muito crucificada nas ruas. Eu começo a entender a importância desse primeiro setor, e depois é que eu entendo que eu preciso começar com Adão e Eva, que é onde a gente tem a discussão da primeira culpa, que é quando a culpa nasce de fato. Quando se comete o pecado contrariando as ordens do Criador, fica aquela dúvida: de quem foi a culpa? Foi da Eva? Foi do Adão? Foi do anjo que guardava o paraíso e não viu essa energia negativa entrar? Foi da cobra que astutamente seduziu a mulher? A dúvida paira no ar, e as pessoas que se encarreguem de decifrar isso. Não sabemos exatamente se a culpa foi da mulher. A partir daí eu gero uma outra questão, que é a de atribuir a culpa apenas para a figura feminina. Como hoje temos muitos comparando essa questão da sensualidade feminina, em que os homens acham que pode ir lá tocar em uma mulher porque ela está com uma roupa curta. Essas questões tem que ser muito discutidas. Então fica no ar: Foi da Eva? Foi do Adão? Eu vou e volto. Quando fiz essa pesquisa do caos social sobre a culpa no dia a dia, eu tive que voltar para o início para conseguir amarrar todos esses assuntos isolados. Começamos lá com Adão e Eva, a gente faz esse salto comparativo para os dias atuais em que continuamos sendo seduzidos por essa energia maldosa e gerando várias outras culpas. Aí começamos a questionar de quem é a culpa da homofobia, da xenofobia, do abandono social, da violência, da poluição urbana, que são os assuntos pertinentes a esse setor. Temos toda uma gama de alas contando os problemas e o caos social que vai acontecer até o final desse primeiro setor”, contou.

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A história contada pelo Raízes do Samba chega ao seu clímax no ponto considerado surpresa por Babu Energia. Um tripé representará o “Sagrado Coração de Jesus”, mostrando que a solução para os problemas da sociedade pode ser encontrada nas raízes dos ensinamentos de Jesus Cristo.

“O tripé que vai representar o ‘Sagrado Coração de Jesus’, que é um elemento surpresa dentro do enredo. Vamos trazê-lo na divisão do enredo como proposta de acolhimento e ajuntamento de tudo, de todos, todas e todes. Em volta do Coração de Jesus vamos estar falando da união de religião, de pessoas, de gênero. Eu arrepio porque realmente tudo para mim tem que ter essa veracidade e essa verdade. Nessa mensagem eu quero que as pessoas entendam que o Coração de Jesus é livre de todo e qualquer preconceito. Deus é amor, e se Deus é amor é acolhimento, é ajuntamento é aproximação, é irmandade. Através de manequins, eu vou representar isso de mãos dadas em volta desse coração, levando essa mensagem para as pessoas de que antes de qualquer coisa pensem nesse cara que veio à Terra e distribuiu apenas amor e nunca disse o que era certo e o que era errado. Aí eu pergunto: o que é certo e o que é errado? Isso é pertinente a cada um, é você que sabe dos seus valores. Eu posso aqui, diante de você, pintar um Babu maravilhoso e entre quatro paredes eu ser o pior cara do mundo. É lá, entre quatro paredes, que você tem que fazer uma análise, não é expondo para as pessoas. O próprio Cristo ensinou isso: não aponte com a esquerda o que você faz com a mão direita. Quando você faz o bem, faça sem alarde. Quer ajudar alguém? Ajude sem alarde. A ideia desse Sagrado Coração é tocar nesse tema: paz, amor e união”, manifestou.

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Uma vez apresentada a solução, é através da ave mitológica Fênix que o caminho é aberto para o nascimento do mundo ideal. Uma utopia que, de acordo com o carnavalesco, só o carnaval consegue momentaneamente proporcionar através do desfile de uma escola de samba.

“Depois de toda essa gama de discussões, vamos assim dizer, negativas, em um surto criei o mundo ideal. Temos uma ala que é a Fênix aonde nós queimamos todo esse primeiro setor e renascemos, que é a proposta do enredo. Quando chegamos nessa ala fica claro que estamos queimando toda aquela negatividade apresentada na abertura, e essa Fênix renasce com essa proposta do mundo ideal, que eu acho muito legal e muito pontual. As pessoas vão conseguir entender isso porque além da fantasia estar muito bonita ela está muito clara na ideia, tem as labaredas do fogo. Nós queimamos tudo e renascemos das cinzas suntuosos, lindos e maravilhosos, vivendo um mundo de união e total equilíbrio de tudo e de todos. A gente vem com uma plástica belíssima porque o nosso segundo carro ele traz essa proposta de um mundo aquático, e em volta dele as raças, a Mãe Natureza muito feliz brindando e acolhendo a todos. Pós isso vem muita ala bacana: trabalho, saúde, rios correndo livres, natureza. É uma proposta completamente diferente do caos apresentado no primeiro momento, é um bálsamo. Acho também que isso vai provocar uma dinâmica muito gostosa das pessoas terem visto uma coisa obscura e depois uma totalmente diferenciada. Vamos levar muitos elementos-surpresa dentro desses dois setores. Acho que o carnaval é um veículo que nos possibilita o que a vida real não nos dá, que é criar um mundo perfeito onde nesse mundo, dentro do carnaval, todo mundo vai ter trabalho, as raças estarão unidas, não se existe discriminação e o ser humano é visto como ser humano independente da sua cor, raça ou gênero. A natureza é cuidada pelos seres desse mundo ideal, então os rios são limpos, os peixes vivem livres, os animais são felizes. É o equilíbrio entre o homem e a natureza. A gente finaliza esse enredo com um grande ‘exército da paz’, onde a gente propõe tiros de amor, de felicidade, de prosperidade, que serão representados na nossa bateria que vem com um fardamento no estilo militar, mas todo em branco, realmente disparando o amor. Acho que esse enredo, além de ser um enredo que vem em uma contramão, chamando a atenção para ele, também traz essa mensagem positiva”, explicou.

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Babu Energia demonstra satisfação com o resultado obtido ao longo da concepção do projeto. “Mesmo sendo um enredo abstrato, eu consegui um roteiro onde as pessoas conseguem acompanhar o andamento histórico dele. Começamos no Paraíso e damos um salto para os dias atuais fazendo esse comparativo, e finalizamos com esse mundo ideal que é o que acabei criando, que é o sonho de todo mundo e que infelizmente sabemos que só é possível na fantasia. É como falamos lá no enredo: que bom que existe o carnaval e que podemos, pelo menos na fantasia, viver o que não conseguimos na realidade. Essa distribuição foi feita dessa forma: fui amarrando os assuntos no primeiro setor, consegui fazer um equilíbrio histórico de acontecimentos e depois, do segundo setor para o final da escola, é essa ideia complexa de um mundo perfeito”, disse.

Comunidade acolhida é o trunfo do Raízes do Samba

O acolhimento proporcionado pela filosofia de resgate do estilo tradicional de ser é, na visão de Babu Energia, o grande trunfo do Raízes do Samba no ciclo do carnaval de 2025. Para o carnavalesco, as experiências do cotidiano fazem a diferença para que os componentes se sintam parte importante dos objetivos não apenas para o desfile, mas também para o futuro da escola como um todo.

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“Sem dúvidas é o acolhimento. O acolhimento está fazendo com que as pessoas descubram uma escola de samba que resgata o que em sua maioria se perdeu, que é trazer as pessoas para dentro desse quilombo e protegê-las, automaticamente se tornando protegida também por esses soldados. Estávamos aqui em um papo em ‘off’ onde eu estava relatando que uma das nossas chefes de ala, que é a Kelly, é de uma ala que vem lá do Carrão e a ala se chama ‘Amigos do Babu’. Foi maravilhoso perceber que ela veio trazer uma caixinha de chocolate para cada um aqui do barracão. Perceba que essa filosofia, essa distribuição de energia, de resgate, de acolhimento já está retornando para nós quando a pessoa sai da sua casa, vai em uma loja, compra sacolinhas, traz presentes para todo mundo do barracão e agradece, fala que está feliz, que nunca viveu isso em escola nenhuma. Eu percebo que estamos no caminho certo e que esse resgate está acontecendo. Acho que o maior trunfo está exatamente no acolhimento e no resgate real de uma comunidade. Não estou falando daquela comunidade que está lá só nos ensaios, ‘dois para cá, dois para lá’, isso do oba-oba. Isso é uma energia gostosa do carnaval, mas estou falando de fundamento histórico mesmo, de ajuntamento de pessoas que durante o ano vai continuar se falando, fazendo acontecer, e vamos brindar tudo isso no desfile. As pessoas vão perceber uma energia diferenciada no Raízes e isso concurso à parte do carnaval. Claro que queremos o melhor resultado do mundo, mas a nossa primeira preocupação é essa: juntar pessoas, renovar as energias trazer de volta coisas que morreram e fazer um grande carnaval impactante. O Raízes negra, o Raízes escola de samba é a alma negra do carnaval”, afirmou.

Mensagem de Babu Energia para a comunidade do Raízes do Samba

“O que quero dizer para a comunidade do Raízes, eu vou resumir em uma frase de um

raizes barracao6 poema que me representa. ‘A arte não é só talento, mas sobretudo coragem’. Avante, Raízes! Vamos meu povo, que isso é o ponto crucial, a coragem! Que a nossa comunidade esteja muito aguerrida e atenta para o nosso grande sonho! O Raízes crescendo será um bem comum para todos! Crescendo ele já está, que ele continue a crescer! Espero que essa escola chegue no topo máximo e chegue com todos esses pontos que discutimos de acolher, de fazer valer o que nós acreditamos quanto à filosofia! Eu desejo muita coragem, muita sorte, muita fé e muito axé para a nossa comunidade!”.

Ficha Técnica:
Enredo: “De quem é a culpa?”
Componentes: 800
Alegorias: 2 carros + 1 tripé
Alas: 15
Diretor de Barracão: Russo Pescados
Diretor de Ateliê: Nelson Bueno
Ordem de desfile: Primeira escola a desfilar no dia 22 de fevereiro de 2025 pelo Grupo de Acesso 2