A Mocidade Alegre trará para o Sambódromo do Anhembi em 2023 o enredo “Yasuke”. Ao longo do desfile da escola, o público conhecerá a saga do negro que foi levado por jesuítas ao Japão e se tornou um dos maiores samurais de sua época. Em conversa com o Site CARNAVALESCO, Jorge Silveira, que assina o Carnaval da Morada do Samba, contou o que virá pela frente.
Origem do enredo
“O Yasuke apareceu para mim como uma possibilidade há mais ou menos dois anos, apresentado pelo Ricardo, que era meu assistente na época. Ele me apresentou o personagem, que eu não conhecia. Imediatamente, quando ele me mostrou, eu falei que achava ser um tema com um potencial enorme para Carnaval. Comecei a me debruçar sobre o assunto, buscar referências, bibliografia. Achei muito conteúdo na internet, muito material. Existem vários vídeos que falam sobre a história dele. Embora ele seja desconhecido no Ocidente, no Oriente ele é cultuado como um herói, então existe muito material farto sobre ele. A partir daí, comecei a aprofundar a pesquisa e criar uma linha narrativa que pudesse contar a saga do Yasuke. É assim que ele aparece para mim, como a sugestão de um amigo.”
Saga de Yasuke, segundo a Morada do Samba
Existem muitas informações a respeito da possível origem de Yasuke, sua vida no Japão e até mesmo o que aconteceu com o samurai. De acordo com o carnavalesco, a ideia é criar uma linha narrativa carnavalizada e de fácil leitura para o público nas arquibancadas.
“A versão que a Mocidade levará para a Avenida é a versão da Mocidade. Contaremos a trajetória histórica do personagem, desde quando ele chega ao Japão até ele desaparecer. Daremos um desfecho para essa história trazendo para o universo contemporâneo e adaptando para a nossa linguagem do Carnaval. Embora existam muitas formas de contar a história dele, o nosso foco, o que nos interessa, é a saga do herói, a construção do herói. O processo de construção da narrativa da história dele é tipicamente a construção de um mito, de um herói, que surge da adversidade e vai gradativamente construindo sua linha de crescimento até se transformar em uma referência para aquela sociedade. Usaremos essa mesma linha de trajetória. Contaremos de quando ele chega escravizado até o Oriente. É o primeiro negro que se tem história, naquela época, a pisar em solo japonês. É preciso contextualizar que o Japão, há 500 anos atrás, era um território fechado politicamente, que não se comunicava com os países vizinhos, que tinham uma série de restrições. Ele era um indivíduo diferente dos demais, então chamou muita atenção por isso. A partir desse contraste social, começo a desenhar a história até o desenlace, trazendo ele para o contemporâneo, para os dias atuais.”
Reação do Japão feudal ao ver um negro pela primeira vez
A história da humanidade tem uma grave mancha que é a escravidão dos negros africanos em prol da ganância de grandes impérios. Em contrapartida, a sociedade japonesa, por entre os fatores o fato de ser uma ilha, se desenvolveu de forma isolada do restante do mundo. Ao se depararem pela primeira vez com um homem forte e de pele negra, a reação foi totalmente diferente.
“Antes mesmo de eu trabalhar com o Yasuke, eu já sou naturalmente um admirador da cultura japonesa. Sempre fui um consumidor da cultura japonesa. Eu sempre percebi que eles tem um traço de humanidade, de generosidade, que é diferente do Ocidente. Em um primeiro momento, o personagem causou um contraste, mas logo depois ele foi compreendido, aceito e absorvido por suas qualidades e virtudes. Quando o negro foi trazido para o nosso território, o olhar era totalmente outro, totalmente adverso. No Oriente foi diferente, com ele foi diferente. Eles conseguiram enxergar nele as virtudes de um grande homem, o conhecimento de um grande homem. Tanto que ele foi catapultado à condição de ser apto a ser treinado para ser um samurai. O conceito de samurai é muito mais amplo do que os filmes e a cultura pop vendem para a gente. Um samurai nessa época é um homem de honra, de virtude, de dignidade. É um homem que é letrado, que entende de poesia, de artes. É um homem que tem uma vasta visão cultural. Não é só um homem de armas. Isso faz parte do ofício dele, mas ele sobretudo é uma pessoa que se destaca naquela sociedade. A cultura japonesa visualizou nesse homem, que até o momento não se chamava Yasuke. Esse encontro cultural é o que me chamou mais atenção. A maneira como essa bagagem que ele traz, como a ancestralidade dele africana é observada como um tesouro pela cultura japonesa ao ponto deles se juntarem, se mesclarem e criarem um novo indivíduo, único naquela sociedade”.
Um enredo com a essência da Mocidade Alegre
Conhecida por excelentes carnavais de temas ligados à África, em um primeiro momento pode soar estranho a Mocidade Alegre trazer uma temática ligada ao mundo Oriental. A jornada de Yasuke, porém, remete às suas origens ancestrais e inicialmente similar a de tantos outros negros escravizados que vieram ao Brasil. Na essência, é tão característico da Morada do Samba quanto outros consagrados na Avenida.
“Acho que é importante dizer que é um enredo de representatividade. É um enredo que traz a Mocidade, embora eu tenha até ouvido muitas pessoas dizendo que foge um pouco do tradicional, mas o enredo tem fundamentos que tem tudo a ver com a essência das coisas que a Mocidade gosta de trabalhar, que é ancestralidade, respeito à comunidade, um tema que se relacione com um conteúdo que as pessoas se identifiquem, e a comunidade criou uma relação de identidade muito forte com o personagem. Eu vejo isso no desenvolvimento do trabalho, vejo isso na quadra. Temos usado muito a expressão “Somos todos Yasuke”. Toda a nossa galera da diretoria que estará na pista durante o desfile, não estarão discriminados como harmonia, direção disso ou daquilo, na blusa estará escrito “Somos todos Yasuke”. Isso criou para nós um sentido de unidade. Ao invés de o único momento que o Yasuke aparece é no samba, encarnado em determinado momento em alegorias, como personagem ele o coletivo. Nós todos carregamos a história dele em um coletivo em conjunto. É uma escola que se fortifica pelo somatório da sua comunidade. Ela se identificou com o personagem e está carregando ele nos braços. Para mim, é o melhor que pode acontecer, o melhor dos mundos. É quando a comunidade acredita na ideia, se identifica e canta como se não tivesse amanhã”.
Conheça o desfile da Mocidade Alegre
A Mocidade Alegre fará um Carnaval na forma da saga de um herói. Conheceremos Yasuke desde suas origens africanas até ele se tornar o samurai que ficou conhecido como “o guerreiro com a força de dez homens”. O desfile de encerrará mostrando a maneira como os jovens negros da nossa sociedade atual precisam das mesmas virtudes de Yasuke para superar as adversidades da vida, renascendo a cada dia nos sonhos e lutas de cada um deles.
Setor 1 – A origem ancestral de Yasuke
“Abrimos o Carnaval mostrando a origem do Yasuke. Existem muitas possíveis origens para o personagem, e a mais provável tratada pelos historiadores, é que ele tenha vindo de Moçambique. E sendo um negro originário de Moçambique, a cultura religiosa é a cultura Banto, ao contrário da cultura Jeje-Nagô, que é a da maioria dos africanos que vieram ao Brasil escravizados. É uma outra linguagem cultural e espiritual. Existem outras divindades cultuadas por essas religiões. Eles tratam essas divindades como “Inquices”, e a nossa abertura faz referência a dois inquices da cultura Banto, que é Nzazi e Nzuzu, que são os guardiões dos mares e o guardião da força e da justiça. Simbolicamente no nosso enredo, eu escolhi essas duas divindades primeiro porque uma significaria a divindade que traz o personagem pelos mares até o Japão, que essa divindade guia o personagem pelos oceanos, e o outro inspira ele de força e coragem, qeu são as ferramentas necessárias para ele se tornar um samurai. Nossa abertura é a convocação dessas duas divindades que vão trazer o Yasuke e entregar até às divindades do Oriente, para que elas cuidem dele a partir desse momento”.
Setor 2 – O Japão conhece Yasuke
“A gente mostra o encontro cultural. Já é o personagem caminhando pelas terras japonesas e conhecendo esse mundo novo e diferente, e esse mundo novo o conhecendo. Temos nesse momento uma passagem muito importante que é o momento em que ele chega até o local, e pela diferença da cor, o Daimiô, que é o líder político local, ordena que ele seja lavado, que ele seja banhado, porque acreditava-se que estavam tentando pregar uma peça nele, que ele havia sido pintado. Diante disso ele é banhado, e obviamente a cor não sai, como o samba diz, revela a beleza dele, e aí o Daimiô, muito envergonhado, passa a querer conhecer e entender esse homem”.
Setor 3 – O guerreiro com a força de dez homens
“Mostramos a maneira como ele se torna Yasuke. Como ele se torna um samurai próximo ao Daimiô. Ganha a armadura, se torna guardião da espada do líder do local. Se torna o mais importante samurai da sua geração.”
Setor 4 – A luz de Yasuke renasce em cada jovem negro
“É o desfecho da história. Acredita-se que ele tenha desaparecido. Tem muitas versões. Não se sabe se ele voltou a morar com os jesuítas no final da vida, se ele morreu efetivamente em batalha, se ele virou um eremita no Japão e desapareceu. Para nós isso não é importante. Para nós é importante dizer que a alma dele renasce todas as vezes que um jovem da nossa cidade, da nossa periferia, precisa se erguer todo dia de manhã, se vestindo da armadura da coragem de um samurai, para enfrentar os desafios do preconceito, das diferentes sociais, para poder vencer essa batalha da vida. O Yasuke nasce e renasce toda vez que é necessário travar esses desafios. A maneira como o contexto cultural da nossa sociedade se organizou faz com que isso seja necessário, que os nossos jovens precisem ter essa força. É isso que a gente termina, com uma mensagem de esperança, de que o Yasuke é um exemplo a ser seguido por essa garotada, pela sua bravura, pela sua dignidade, pela sua honradez”.
Ficha técnica
Enredo: “Yasuke”
Alas: 19
Alegorias: 4
Componentes: 1600
Posição de desfile: Quinta a desfilar no sábado, dia 18 de fevereiro de 2023, pelo Grupo Especial