As justificativas dos julgadores do quesito Samba-Enredo no Grupo Especial do Rio, referentes ao Carnaval 2025, jogaram luz sobre um debate necessário: afinal, o que se espera de um samba-enredo? A resposta, a julgar pelos apontamentos de Alfredo Del Penho, Ana Paula Fernandes, Alessandro Ventura e Igor Fagundes, parece ainda confusa, e, em alguns casos, preocupantemente contaminada por visões diferentes do que acharam sambistas e imprensa especializada.
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O Manual do Julgador do Carnaval 2025 é claro em seus critérios: a letra deve interpretar o enredo de maneira artística, com liberdade poética, sem a necessidade de seguir ordem cronológica ou listar elementos do desfile. A melodia, por sua vez, deve se harmonizar com os versos, facilitar o canto dos componentes e manter o equilíbrio entre emoção e clareza. No entanto, o que se vê em algumas justificativas é uma cobrança que ultrapassa os limites da razoabilidade, e, pior, que por vezes desconsidera o papel do samba como manifestação popular, afro-brasileira e simbólica.
Entre os trechos mais graves está a crítica de Ana Paula Fernandes ao uso “excessivo de palavras em iorubá” no samba da Unidos de Padre Miguel, que, segundo ela, teria prejudicado o entendimento do samba. A declaração é, no mínimo, desrespeitosa. Tratar a presença de palavras sagradas de uma matriz religiosa afro como um “excesso” revela não apenas desconhecimento da proposta estética da obra, mas ecoa preconceitos históricos que marginalizam culturas negras no Brasil. Se a proposta era valorizar uma narrativa ligada às religiões de matriz africana, como negar sua linguagem própria? Criticar o uso do iorubá com base na “dificuldade de entendimento” é uma forma disfarçada de racismo religioso, ainda mais vindo de um espaço que deveria compreender a complexidade cultural do samba e da avenida.
Outro ponto que causa perplexidade está na justificativa dada para descontar décimos do samba da Viradouro. O jurado Igor Fagundes, mesmo elogiando o verso “acenda tudo que for de acender” como belo em letra e melodia, penaliza a escola com base em uma suposta “comprometida dicção”. A incoerência é evidente: se letra e melodia são bons isoladamente, mas juntos causam impacto negativo, o problema, caso houvesse (o que não considero) estaria na execução, o que deveria ser julgado no quesito Harmonia, não no Samba-Enredo. Essa confusão de fronteiras entre critérios é sintomática e abre margem para distorções perigosas no julgamento.
A Imperatriz, por sua vez, foi acusada de conter “trechos pouco compreensíveis pelo andamento do samba”. A crítica, no entanto, se desmonta diante da realidade do desfile. O samba foi amplamente compreendido, cantado com potência pelo desfile inteiro e abraçado pelo público da Sapucaí. As atuações de Pitty de Menezes, intérprete oficial da escola, e da bateria, de mestre Lolo, foram amplamente elogiadas justamente pela clareza, ritmo e pela emoção com que conduziram a obra. Penalizar um samba que funcionou plenamente na avenida é um equívoco que fere a essência do julgamento.
Também não passa despercebido o tratamento desigual dado a escolas diferentes. Samba extenso, fragmentado, com repetições melódicas, versos pouco inspirados, obras “marcheadas”, excesso de clichês e falta de inovação: os julgadores listaram problemas variados, alguns reais, outros subjetivos, mas a régua da cobrança parece ter variado conforme o nome na ficha de avaliação. A subjetividade do julgamento é inevitável, mas precisa ser minimamente ancorada em coerência e conhecimento técnico.
Causa também estranheza a nota máxima atribuída ao samba da Portela. A obra foi amplamente questionada ao longo da temporada por sambistas e especialistas, que apontaram falhas na fluidez melódica, repetições estruturais e uma certa frieza poética diante de um enredo tão promissor. Ainda assim, o samba passou perfeito pelo julgamento, sem qualquer crítica nas justificativas e com pontuação máxima. Fica a pergunta: por que sambas potentes e aclamados pelo público foram punidos, enquanto uma obra visivelmente contestada recebeu nota 40? A sensação de dois pesos e duas medidas salta aos olhos e isso fragiliza a credibilidade do julgamento, além de desencorajar quem busca inovação e excelência no samba-enredo.
As disputas de samba para o Carnaval 2026, que já estão em curso, pedem reflexão sobre as avaliações dadas nos desfiles de 2025. Se a régua da avaliação continuar punindo a criatividade, o experimentalismo e a identidade cultural das obras, corremos o risco de formar sambas burocráticos, feitos apenas para passar pela comissão julgadora, e não para emocionar a Marquês de Sapucaí. Isso é perigoso.
O samba-enredo é mais do que uma partitura com letra e melodia. Ele é crônica, poesia, narrativa, resistência. É expressão de um povo que canta sua história e seu presente com liberdade. Cabe aos jurados entender isso, respeitar os códigos culturais de cada obra e julgar com mais responsabilidade.