Virado o novo ano no calendário, a nossa amada folia se aproxima. Depois de um abril que matou nossas saudades da Avenida, tivemos um tempo mais curto de preparação entre um carnaval e outro nesses últimos meses. Na missão de seguir comentando um poucos dos enredos que serão cantados, como fiz nos últimos anos aqui no CARNAVALESCO, dou início a essa temporada de análise, que vai resultar em três textos que dão conta das doze escolas do Especial carioca.

Para abrir os trabalhos, vale uma contextualização de tudo que vimos em 2022 e seus desdobramentos, principalmente, porque a folia após a pandemia marcou uma quantidade significativa de enredos ligados à cultura afro-brasileira e ao próprio carnaval. É óbvio dizer que a principal “tendência” dos últimos anos foram as narrativas políticas e sociais, tanto porque garantiram alguns títulos mas principalmente por serem tão bem realizadas pela chamada “nova geração” de carnavalescos.

Numa primeira olhada para as temáticas de 2023, pode se dizer que esse tipo de narrativa perdeu força. Se o enfrentamento de questões urgentes era a tônica, notamos agora um movimento contrário: há um significativo número de narrativas que parecem querer fugir da realidade. Esse desejo é expresso em alguns passeios da dimensão divina ou extracorpórea, como o paraíso, o céu e o inferno.

Exemplificando exatamente essa transição do político ao delirante — não que necessariamente esta seja uma dicotomia — está o trabalho de Leandro Vieira e seu enredo na Imperatriz Leopoldinense. Após um já histórico e bem sucedido casamento com a Mangueira, o artista propõe para a Rainha de Ramos algo muito diferente do que havia feito na Verde e Rosa. O enredo se baseia na literatura de cordel para narrar a saga do cangaceiro Lampião em busca de guarida no céu e no inferno.

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Trata-se de uma bela narrativa, pertinente e original, que tem tudo para render um bom visual. O texto bem escrito da sinopse detalha a saga do nordestino explorando muito bem suas nuances e personagens, o que foi belamente traduzido no samba-enredo da agremiação. O que mais me chama atenção na narrativa é seu desfecho poético e contundente, afirmando que Lampião vagueia no imaginário de quem construiu a identidade nordestina. É sem dúvidas um dos destaques da safra, tanto por seu aspecto lúdico como por mergulhar por uma face fundamental da cultura brasileira.

Já que falamos de paraíso, não tem como deixar de mencionar “Delírios de um paraíso vermelho”, enredo que o Salgueiro vai apresentar sob a batuta criativa de Edson Pereira. Assim como a proposta da Imperatriz, a fuga da realidade também parece ser uma premissa nesse caso, mas, em comparação, acaba “pecando” — com o perdão do trocadilho — em alguns aspectos. Parece importante contextualizar que ao longo da sua carreira como carnavalesco, Edson sempre se demonstrou um habilidoso criador visual, mas geralmente deixou a desejar na condução de alguns temas. É exatamente essa falha que voltamos a observar no enredo que o Salgueiro nos apresenta até aqui. Parece ser um consenso entre o público geral que não está muito claro do que se trata a narrativa e de como ela se desenvolve.

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Após uma leitura da sinopse, a narrativa parece ter o carnavalesco Joãosinho Trinta como fio condutor, num enredo que parte de um paraíso delirante, navega pelos pecados humanos, vê chegar um inevitável apocalipse e busca a redenção com um juízo final que traz a cena marginalizados. Tudo isso, para terminar num outro Éden, agora tomado pela folia carnavalesca, como pregou Trinta em sua “revolução da alegria”. É uma narrativa bastante ousada, em múltiplos sentidos, que tem potencial e que pode até render bons momentos visuais, basta se mostrar mais coesa e clara na Avenida.

Retornando para a região nordeste do Brasil, a antiga rival da Imperatriz na década de 1990 também se voltou para essa cenário tão rico culturalmente.Trata-se de mais um enredo de Marcus Ferreira que passeia por esse campo temático, pois o artista já contou sobre os bonecos mamulengos, a xilogravura e as ganhadeiras de itapuã. Dessa vez, ele se dedica à escultura de barro que também compõe a identidade cultural nordestina.

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Para isso, temos a figura do grandioso Mestre Vitalino como guia. Se nas figuras e modelagens na terra estão cenas da cultura local, o enredo também brinca com o universo cósmico. Diferente de Salgueiro e Imperatriz que passeiam pela noção cristã de paraíso e inferno, a Estrela Guia se volta ao céu “real”, o espaço sideral. É daí que vem uma das boas sacadas do enredo, que brinca com o criador e a criatura, fazendo referência ao desfile campeão de 1996 da verde e branco, para falar do ato de criação artística dos escultores. Numa possível interpretação da sinopse, o gesto de olhar o céu é um momento necessário de escapismo da realidade em busca de um acalanto de esperança.

Quem também está olhando para o alto neste ano é a Portela. Aliás, não só para o alto como para o seu passado. A azul e branco se volta ao “além”, a dimensão que ultrapassa o terreno, onde estão os que já desencarnaram. Tudo isso pois é nesse “plano” que estão grandes nomes da agremiação, que merecem ser lembrados no cortejo que irá celebrar o centenário da fundação dos grupos carnavalescos que deram origem à Portela.

A principal dificuldade dessa narrativa é dar conta da complexidade de uma história tão longa quanto múltipla. Fazendo pensar que qualquer condução escolhida para esse enredo poderia gerar controvérsia. De certo, dá para afirmar que temos uma das mais belas sinopses do ano, que apresenta muito bem a contribuição da Portela e de seus artistas para a folia carnavalesca.

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A condução do enredo, na verdade, parece traduzir a própria dificuldade de explicar uma instituição centenária tão relevante para a arte e a cultura brasileira, que também mobiliza tantos torcedores apaixonados. Afinal, como tentaram Monarco e Paulinho em seus versos, como explicar a Portela? O trecho final da sinopse da azul e branco parece sintetizar essa questão, mostrando que apenas olhar para o infinito e cogitar que existe “uma força maior que nos guia” pode ser uma interpretação. Tamanha grandeza de uma escola só pode vir mesmo do infinito, não cabe uma explicação lógica e terrena.

Também sem maiores explicações me despeço por aqui e prometo voltar em breve, dessa vez longe de enredos delirantes e destacando outros pontos em comum entre algumas narrativas para o carnaval de 2023. Até!