Por Leonardo Antan

Foi dada a largada para o maior espetáculo artístico visual do planeta! Numa noite com desfiles de alto nível, as escolas de samba surpreenderam e o que se viu foram trabalhos plásticos interessantes e de teor elaborado e criativo, mesmo com a crise financeira. Marcando assim uma noite competitiva em que desfilaram escolas tradicionais da folia carioca. Em especial, tivemos apresentações extremamente felizes no que se refere a Enredo e narrativa, com uma exuberância de temas bem desenvolvidos e alinhados que há muito não se via no grupo especial, com exceção de apenas uma agremiação que deixou a desejar neste quesito.

A noite começou com uma aula da professora Rosa Magalhães. Uma das maiores artistas plásticas em atividade no país, completou incríveis cinquenta anos de atividade na folia e seguiu se renovando. Apesar do enredo criticado no pré-carnaval, com sua sabedoria e um infindável baú de referências, a carnavalesca apresentou uma estruturação interessante de setores e um desenvolvimento correto de sua narrativa, explorando mais uma vez a junção de propostas mais fragmentadas, como é de sua características em outros carnavais. A proposta do enredo se materializou de maneira competente em um conjunto de fantasias que se destacou pelo seu brilho intenso e um ótimo efeito visual cromático. As alegorias também não ficaram atrás, os famosos caixotinhos de Rosa estavam muito bem vestidos.

A noite seguiu com um enredo forte e precioso da Viradouro. A homenagem sobre as Ganhadeiras de Itapuã feita pela dupla Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon explorou de maneira interessante um imaginário das religiões afro-brasileiras e a formação da figura da baiana na cultura brasileira. Embora a narrativa tinha seguido uma linha tradicional, ela se mostrou coesa e foi materializada de maneira exuberante e opulenta, apostando em imagens mais tradicionais em menos inovadores sobre o universo baiano. A vermelho e branco fez uma apresentação para quem gosta de luxo, e apesar da beleza plástica, não deixou de apresentar um mensagem contundente. Um belo momento da noite desde domingo.

O falado enredo sobre Jesus Cristo de Leandro Vieira dividiu opiniões. Prometendo recriar a história do messias, incorporando elementos atuais a narrativa bíblica clássico, o que se viu na pista foi uma estética clássica e inspirada em imagens tradicionais da iconografia cristã. O desfile seguiu de maneira clara sua narrativa, desde o nascimento de Jesus até sua ressurreição. Dialogando com artistas do renascimento e da pintura espanhola, o carnavalesco trouxe ainda esculturas que lembravam os trabalhos do escultor Aleijadinho para reproduzir os passos da paixão de Cristo. A subversão do enredo se deu de forma sútil, as muitas faces do profeta surgiram reimaginadas em meio a esses símbolos tão clássicos. O Jesus da Mangueira foi negro, indígena e mulher. Os momentos em que os paralelos com uma crítica social mais atual foram poucos, começando pela excelente Comissão de Frente da verde e rosa e que seguiu por alas como “Bandido bom é bandido morto” e “Maria Madalena dos anos 2000”. Com isso tudo, foi mais uma aula de bom gosto e requinte de Leandro Vieira, que se firma como um dos artistas mais fundamentais e talentosos da década.

O cristianismo voltou a aparecer na apresentação da Paraíso do Tuiuti que trouxe São Sebastião num bela homenagem ao padroeira da escola. A história de São Sebastião e do rei português de mesmo nome se traduziu de maneira coesa e bem amarrada, sendo materializada com bastante requinte e opulência João Vitor Araújo. Um dos pontos altos da azul e amarelo foi sua segunda alegoria, lembrando um grande deserto uma interessante textura que remetia a areia em junção de uma bela iluminação. O tema que foi desenvolvido pelo enredista João Gustavo Melo se destacou pela forte pesquisa histórica. Qualidade que não faltou também a próximo escola a se apresentar.

Em um momento cintilante, a Grande Rio fez uma das grandes apresentações da noite e um dos enredos mais ricos e bem construídos do Carnaval. A história do pai de santo Joãosinho da Gomeia se mostrou um tratado da história social, artística e religiosa brasileira. A narrativa explorou elementos das religiões de matriz africana de maneira inédita e arrojada, inspirada no trabalho artístico de nomes como Carybé, Abdias Nascimento e Djanira. Cada alegoria apresentava um mundo de possibilidades criativas, com milhões de detalhes que se justificavam numa construção marcada por um forte teor acadêmico. A pesquisa densa dos carnavalesco Leonardo Bora e Gabriel Haddad não passou de maneira hermética na Avenida, as alas de fantasias e alegorias tinha leituras claras e exploram bem suas possibilidades. Uma verdadeira aula de arte e sociedade que apresentou a tricolor de Caxias.

O único destaque negativo neste dia foi a União da Ilha. Depois de narrativas densas e bem estruturadas, a tricolor insulana deixou muito a desejar em sua contundente crítica social. O enredo elaborado após a escolha do samba-enredo da agremiação, num modelo inovador proposto por Laíla, não se provou na pista. As alegorias e fantasias apostam num visual mais realista e cênico, trazendo as mazelas sociais em encenações mais violentas e até debochadas. A falta de unidade visual também foi um problema em alegorias que traziam estilos e possuíam uma falta de coesão entre o que era apresentado. As fantasias mostravam outra fragilidade do desenvolvimento, passaram vários profissões como médicos, professores, ambulantes e vendedores, numa sequência que pouco significava. A falta de coesão e da estrutura bem amarrada do clássico “início, meio e fim” fez a Ilha ser o destaque negativo no aspecto narrativo.

Encerrando já com o dia claro, a Portela finalmente materializou o que prometia ser um dos enredos mais interessantes do ano, que chamou atenção desde o lançamento de uma ótima sinopse escrita pela carnavalesca Márcia Lage. A azul e branco contou seu “Guajupiá, Terra sem Males” numa interessante proposta em explorar o universo indígena de maneira menos tradicional. Com um trabalho plástico bem tradicional e coerente, se viu belas alegorias e um interessante trabalho cromático que se manifestou em belas fantasias com elementos conhecidos da cultura ameríndia. Apesar da última alegoria destoar na narrativa proposta, que apresenta o mundo dos povos nativos antes do contato com os colonizadores, o desfile da agremiação também abre interessantes aspectos a serem analisados em seu processo de desenrolar.

No geral, o que se viu foi uma noite de alta qualidade artística, sobretudo na aposta de desfiles com linguagens completamente diferentes e interessantes entre si. Teve o melhor estilo tradicional dos sempre atuais, Rosa Magalhães e Renato Lage, assim como o requinte e densidade histórica de Leonardo Bora e Gabriel Haddad, como o bom gosto e as formas de Leandro Vieira, chegando a opulência e gigantismo da dupla Marcus e Tarcísio, até ao trabalho cuidadoso e rococó de João Vitor Araújo. Ganha a festa com apresentações de tão alto nível e com apostas estéticas e musicais que valorizam as personalidades das agremiações e seus artistas. A diversidade é fundamental. Viva a importância de narrativa relevantes que contribuem para a cultura brasileira.

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