O Dia Nacional do Samba foi marcado pela abertura da Semana do Samba promovida pelo departamento de velhas-guardas da Liga-SP na noite de segunda-feira. O coquetel organizado pela entidade em sua sede, localizada na Fábrica do Samba, reuniu a imprensa e baluartes de várias agremiações, sendo precedido por discursos de lideranças e homenagens a nomes que marcaram a história do carnaval de São Paulo no anfiteatro. Serão quatro dias de simpósios, com ciclos de encontros e palestras da velha guarda do carnaval de São Paulo no local, tratando de temas como as origens, tradições e rituais relacionados às escolas de samba e aos sambistas, além os elementos que regem a organização dos desfiles e da visão das agremiações como empresas. A abertura da Semana do Samba contou com discursos de representantes do departamento de velhas-guardas, representantes das escolas de samba e do presidente da Liga-SP Sidnei Carriuolo, além das homenagens ao jornalista Clóvis Messias, Albertino Alves da Silva, o Seo Beto da Nenê de Vila Matilde e Maria Aparecida dos Santos, a Tia Nena do Brinco da Marquesa.

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Fotos: Gustavo Lima/CARNAVALESCO

Trazer o conhecimento do passado e as famílias de volta ao samba

O primeiro discurso da noite no anfiteatro da Liga-SP foi de Raimundo Pereira da Silva, o Mestre Mercadoria, um dos maiores diretores de harmonia da história do carnaval de São Paulo. O baluarte conversou com o CARNAVALESCO sobre a importância de a principal entidade do carnaval paulistano abrir esse espaço para as velhas-guardas transmitirem seus conhecimentos.

“A função da Liga das Escolas de Samba de São Paulo é essa mesmo. É trazer, através das velhas guardas, o conhecimento não do futuro, mas do passado. Se existe a Liga das Escolas de Samba, se existe escola de samba, é porque lá atrás alguém fez alguma coisa, que foi a velha guarda. Essa abertura que a diretoria da Liga, através do presidente Sidnei, está dando, é para a gente mostrar para a juventude que para chegar aonde nós chegamos, para o carnaval de São Paulo chegar aonde chegou, houve uma luta muito grande. Não foi à toa que a gente conseguiu esse espaço. Foi com a verdade, foi com seriedade, foi com trabalho, e hoje a gente alcançou um fruto. Essa abertura de hoje e o seminário que vai acontecer é para mostrar para todos a fórmula que foi para alcançar esse sucesso. Nós vamos falar da iniciativa privada, nós vamos falar do encontro tanto do passado como do futuro e principalmente o porquê de toda essa tradição, o porquê dessa cultura, dessa coisa nossa que é brasileira, que só o Brasil faz, que é a escola de samba. Escola de samba é uma cultura nossa. Eles estão imitando lá fora, mas não vão conseguir chegar aonde nós chegamos. A importância de tudo isso, essa abertura da Liga, não é só para as pessoas que estão dentro do carnaval, mas aquele leigo que quer conhecer alguma coisa sobre escolas de samba, sobre essa cultura inexplorada ainda. Só conhece a cultura das escolas de samba quem está dentro da escola. As pessoas acham que a escola de samba termina o desfile, acaba, aguarda tudo e daqui 365 dias volta. Não, é o ano todo. Escola de samba não para de trabalhar, a máquina não para de girar, ela gira os 365 dias do ano. É falácia falar que a escola de samba é coisa de vagabundo, é folia. Não é folia, não é vagabundo, é cultura, cultura mesmo. Infelizmente isso está enraizado, como tudo nesse país. Cria-se uma falácia e as pessoas acreditam. Eu convido todo mundo: quer saber o que realmente é uma escola de samba? Vem aqui na Liga. Nós vamos mostrar os barracões de 14 escolas trabalhando 24 horas por dia para montar um espetáculo para levar para a Avenida. Essa é a realidade do carnaval de São Paulo, das escolas de samba de São Paulo”, declarou.

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Mestre Mercadoria se criou no samba e no samba criou sua família. É pai do mestre de bateria Renato Fuskão e da porta-bandeira Adriana Gomes, que seguiu os passos da mãe Maria Gilsa. Transmitir o legado familiar para as próximas gerações é um desafio, e para o baluarte a iniciativa da Liga-SP de promover o Desfile das Crianças em 2025 pode ser uma ferramenta para atrair os jovens para mundo das escolas de samba.

“Aqui em São Paulo nós temos várias atrações que a juventude tem acesso. O nosso público juvenil, infantil, hoje não está voltado só para a escola de samba. Ele vai para o bloco, ele vai para o funk, ele vai para o rap, é bem diversificado, é um leque muito grande de diversões para ele. Antigamente eu levava meus filhos para a escola de samba, eles não iam para outro lugar, tanto é que uma é porta-bandeira, outro é diretor de bateria. Hoje não, hoje o filho não quer ir com o pai para a escola de samba, ele quer ir para a balada. Essa renovação pode crescer mais agora com a criação aqui em São Paulo do desfile das crianças a partir do ano que vem. Isso vai ser um chamamento para que os nossos jovens, as nossas crianças, voltem para as escolas de samba como era antigamente. A gente tinha muitas crianças, por isso que eu digo que meus filhos foram criados dentro da escola de samba, dentro do Rosas de Ouro. Hoje um é diretor de bateria do Rosas de Ouro e da Imperador do Ipiranga, outra é porta-bandeira da Mancha Verde. Mas por quê? Porque no passado eu levava eles para a escola de samba. Hoje o pai ou a mãe, se forem no carnaval, se estiverem dentro do carnaval, participarem da escola de samba, até tentam levar. Não é que levam, tentam, porque aí o filho: ‘ah, não vou, vou com meus amiguinhos não sei onde e tal’. Eu acho que também não é culpa dos blocos. Arrastaram muita gente das escolas de samba, elas perderam muitos componentes para os blocos, até porque é mais simples, é mais fácil desfilar nos blocos. No bloco você pode tudo, não tem um diretor de harmonia te enchendo o saco para cantar, para dançar, você não pode beber, você não pode fazer nada e no bloco pode fazer tudo. O trabalho nosso agora é para resgatar essas crianças, por isso é fundamental o desfile das crianças a partir do ano que vem”, afirmou.

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Necessidade de documentar a história

Embaixador, grão-mestre, cidadão do samba. São tantos os títulos merecidos para se referir a Gabriel de Souza Martins, o Mestre Gabi, lendário mestre-sala do Camisa Verde e Branco. Em seu discurso no anfiteatro da Liga-SP ele foi enfático ao clamar aos sambistas presentes que documentem suas histórias para que o conhecimento seja preservado para as futuras gerações. Questionado sobre a importância de manter viva a história do carnaval através de registros, o baluarte mencionou a preocupação de se manter tamanho legado apenas através da tradição oral e citou exemplos que mostram a necessidade de fortalecer as escolas de samba como entidades culturais.

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“Nós pretos não temos essa prática de estar escrevendo. Nós falamos e guardamos na cabeça, e isso é ruim. Nós nunca tivemos oportunidade de fazer livros, de documentar. A gente não tem essa expertise, é por isso que nós perdemos muito conhecimento. Tenho tantos amigos que já se foram e muitas coisas eles levaram. Às vezes nós sentávamos conversando, mas eram tantas coisas que surgiam de carnavais passados, de como poderia ser, dando opiniões que hoje a gente vê que muita gente está usando, mas nada disso foi documentado. Eu tenho essa preocupação sim de fazer documentários, de me chamar mais para o lado cultural. O lado do espetáculo já não me preocupa mais porque o espetáculo está aí. Agora, vou perguntar: você sabe por que nós desfilamos, a escola de samba desfila no carnaval? Porque nós não tínhamos a oportunidade de manifestar a nossa cultura fora do carnaval. Por quê? Quando você encontrava o pessoal fazendo uma batucada, a polícia ia, cortava o surdo, cortava tudo, não deixava, era considerado bagunça. ‘Que bagunça é essa?’, e furava tudo. O carnaval, na verdade, é a festa da carne. Era onde a gente podia se manifestar sem ter essa preocupação deles chegarem e furarem os nossos instrumentos. Aqui você via o pessoal do corso lá na Paulista e nós não podíamos participar do corso. Primeiro porque não tinha carro, segundo porque não era bem-vindo. Então fazia-se o Vai-Vai ali embaixo no Bixiga, fazia-se aqueles cordões, a nossa manifestação cultural aqui na Barra Funda porque, nessa época, nós não sofríamos tanto, podíamos fazer porque era a festa da carne mesmo. Por isso que falam que o carnaval é profano. O desfile, o carnaval, eu não discuto. Eu discuto desfile de escola de samba. É cultura, é totalmente cultural. Quando você vê o enredo, e quando o Getúlio Vargas ainda colocou: ‘ah, vai ter escola de samba? Tem? Então, tá bom. Vocês são obrigados a falar só de temas nacionais’. E foi com isso que aconteceu uma curiosidade: Você sabe por que muita gente que é analfabeta sabe de muita coisa? Pelas escolas de samba, pelos enredos. O que se pensava era isso. ‘Ah, vamos falar de D. Pedro I?’ ‘Vamos falar do descobrimento do Brasil?’ ‘Vamos.’ ‘Então, para falar do descobrimento nós temos que falar dos índios, nós temos que falar dos portugueses’. Aí, um dia eu perguntei: ‘o que é Santa Maria, Pinta e Niña?’ ‘Ah, nunca ouvi falar.’ ‘Você já estudou a história do Brasil?’ ‘Já.’ ‘Nunca viu falar? São as três naus que vieram com Cabral.’ ‘Ah, puxa vida!’ Eu estive numa ETEC há pouco tempo falando para eles o porquê que desfile de escola de samba é cultura, e eles falaram: ‘que nada, mestre, carnaval é bagunça’, aí eu fui explicar. Nós fizemos até um enredo dentro da sala de aula, e aí eles: ‘puxa vida, é mesmo! Agora eu vou prestar atenção.’ Muita gente não presta atenção, só canta o samba. Canta o samba, mas não sabe a profundidade. A gente precisa mostrar para eles o que é a nossa cultura”, disse o mestre.

Preservação das tradições

Uma das preocupações mais citadas nos discursos realizados foi a necessidade de se preservar as tradições carnavalescas. Da concepção do primeiro regulamento oficial do carnaval paulistano à menção a um debate ocorrido sobre a possibilidade de se remover a obrigatoriedade do uso de um instrumento de mão pelo mestre-sala, os baluartes clamaram pela necessidade de cautela quanto às renovações no carnaval. O jornalista Clóvis Messias, um dos homenageados na cerimônia, destacou que manter vivas as tradições do carnaval é preservar a história do Brasil.

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“Só as tradições que fizeram com que a gente pudesse crescer e se desenvolver. Quando você fala em manter as coisas antigas falam é coisa de velho. Não, as coisas antigas são cultura, são a história do Brasil. Nós pegamos os folguedos, dessas brincadeiras todas que estão por aí e trazemos para mostrar para as crianças. Todo menino de escola, de rua, que está jogando bola, esse menino vai vir fazer o quê? Vai saber o que é um folguedo, vai começar a discutir a brincadeira na escola, vai no ensaio da escola, começa por aí. Hoje eles não vão mais, é só nós falarmos e oferecermos. Por exemplo, falaram do instrumento do mestre-sala, a pessoa não sabe a função dele, não tem noção, e o que é? É porque ele está com a dama, está fazendo um cortejo para que ela possa evoluir, mostrar para o povo como é que se samba, o que é arte, como é que se tem cultura, também é um gesto de cavalheiro. As pessoas não têm noção, falam que ele vai cair. Se cair, põe para fora porque ele não é mestre-sala. É difícil entender isso? E outra coisa: cuidado com a renovação. A renovação é alguma coisa que pode tirar um pouco da história do Brasil, um pouco da sua função, da sua vida aqui nesse mundo. Nós precisamos trabalhar com tudo isso na cabeça. Vai confrontar? Algum cara fala: ‘eu tenho tanto tempo de escola e vou falar’. Não vai falar, pode mandar falar comigo. Eu saio desde 9 anos de idade e estou com quase 85, saio no samba há 70 anos, sem problema nenhum. Meu pai fazia os instrumentos junto com Seo Nenê. Naquela época você não comprava na esquina, tinha que fazer esses instrumentos. Isso era uma brincadeira gostosa, era uma atividade bonita, tanto que quando fui estudar no Rio eu estava meio dormindo e não sabia o que fazer, até que ele me chamou e falou: ‘o que você vai fazer? Eu vou te levar no samba’. Ele me levou no Salgueiro e eu deslumbrei, aí depois eu ia no Império sozinho. Mas eu primeiro tive que ter um toque. Eu tive o toque, aí agora virou. E quem foi? Era um cara que me levou, que conseguiu perceber. Por quê? Você sabe quando o cara vive no samba, o olhar dele reflete, o olhar dele traz, você sabe que ele tem algo a mais que você não nota porque você não foi moleque ali junto, trabalhando. Isso tudo vem vindo e facilita o nosso entendimento, facilita a nossa fala, facilita com que a gente mostre para as pessoas e consiga fazer com que alguém entenda que isso não pode ser perdido. Apenas isso, nada mais do que isso”, afirmou.