Milton Cunha: “O texto do amigo Hélio Rainho, passista, lança luz sobre estilhaços de um corpo negro desconstruído num doutorado em andamento na FGV. Sou movido por estas proposições desconcertantes. Boa leitura”.
“DESENQUADRANDO FOLIAS”: POR UM BASQUIAT DO SAMBA
Por Hélio Ricardo Rainho
Um preto elegante, terno, gravata, defendendo sua arte e afirmando sua cultura negra em meio a uma sociedade branca e hostil. Paulo da Portela nos anos 20?! Não. Jean-Michel Basquiat nos anos 70!
A figura negra, garbosa, imponente, africanizada, resiste ao tempo, ao mistério da vida e da morte. Nascido no Brooklyn em 1960, o pintor negro mais importante do mundo, colocado entre os quatro mais caros do mercado da arte neste século, morreu aos 27 anos em 1988, em seu loft nova-iorquino, milionário e com um legado de mais de duas mil obras produzidas.
“Que temos nós, brasileiros, a ver com isso?” – perguntam os ufanos, os canônicos, os acadêmicos, os xenófobos…esses “enquadrados” que não compreendem a tríade conceitual do pintor sobre “a realeza, o heroísmo e as ruas” (em suas palavras, a síntese de sua arte).
Acordem! “Desenquadrem-se”! Basquiat chegou!
Os quadros do artista colocaram nas galerias de arte a imagem e as dores dos negros, o brado antirracista, a denúncia dos maus tratos coloniais em traços desconexos, corpos desfigurados, ares surrealistas, neo-expressionistas. Basquiat transitou nas ruas, conheceu a cultura marginal do Low Manhattan, dialogou com os desprovidos, os guetos, os redutos de negros e latinos largados e ameaçados pelo poder. Veio de família abastada, mas escolheu conviver com os desvalidos para dar-lhes voz nas obras, que invadiram as galerias onde jamais um artista negro conseguiu entrar. E está nelas até hoje! Um agente estratégico que muito nos tem a ensinar!
Há um mistério em Jean-Michel Basquiat que ninguém explica, mas o samba tem a pretensão de querer explicar.
Em 2018, recebi um convite da Brazilian Council on Samba, uma organização sem fins lucrativos de Nova York que promove a cultura do samba brasileiro entre comunidades negras e latinas locais, para desenvolver um enredo sobre as premissas da ONU para a década dos afrodescendentes. Eu estava fascinado com uma visita a Nova York em 2015 onde encontrei as obras de Basquiat nos museus, com a recente exposição sobre o artista no CCBB em 2018, com a bibliografia que há algum tempo já levantava sobre ele, com um trabalho que já havia feito chamado Meninos do Samba no qual um passista (Brener Belisário, das escolas de Padre Miguel) o havia representado. Propus que fizéssemos não um enredo panfletário sobre premissas, mas com um personagem protagonizando tudo o que a ONU apregoava e, ao mesmo tempo, filho nativo daquela Nova York onde o desfile seria realizado. Criei o enredo Basquiat – Every Boy is a King como tema da parade (adiada devido à pandemia da covid-19), conjugando a biografia do artista com a proposta da ONU. Não teve o desfile, mas o colecionador Randall Smith, dono de 95 obras do acervo The Lost Masterworks of Jean-Michel Basquiat – 1981- 1987, me procurou e concedeu-me direito de uso e estudo de toda sua coleção com exclusividade. Um brasileiro sendo, pela primeira vez, contemplado com essa grandeza! Basquiat virou, então, tema da minha tese de doutorado.
De lá pra cá não parei de pensar que Basquiat tinha elo comum com o samba. O dândi negro de terno e gravata era um apóstolo e um apóstata de Paulo da Portela. “Pés e pescoço ocupados!”- bradava o Príncipe Negro do Samba. Mas Basquiat quis ser atrevido quatro décadas depois: ocupou o pescoço, mas “desocupou os pés”. A imagem clássica da cabeça com tranças/dreads e dos pés descalços em forte contextualização africana é combinada com o corpo de terno. A especialista em literatura contemporânea afro-americana e estudos culturais afro-diaspóricos Monica L. Miller nos lembra que “A história do dandismo negro na diáspora atlântica é a história de como e por que os negros se tornaram árbitros do estilo e como usam roupas e trajes para definir sua identidade em diferentes contextos políticos e culturais” (Slaves to Fashion: Black Dandyism and the Styling of Black Diasporic Identity. Londres: Duke University Press, 2009:50-51). Paulo e Basquiat eram dândis negros e sabiam disso! Fizeram do terno europeu o ícone de uma elegância representativa na luta pela afirmação de sua identidade e seu poder de ressignificação. Apropriaram-se do traje do colonizador e o reconfiguraram. Basquiat recebia caixas de ternos Armani e Versace…e pintava seus quadros com eles em seu estúdio, os respingando de tinta. “Danem-se os cânones: eu quero é desenquadrá-los”!!! Manda o luxo pro lixo!!!
Frantz Fanon afirmou que o africano “parece ser hostil com essa conformidade com as categorias do tempo” e que “para ele, o passado é um passado pungente” (“Em Defesa da Revolução Africana”, Ed. Sá da Costa, 1980, p.8). Basquiat escolheu não querer o passado, soube dominar o presente e fazer-se “futuro”. Um afrofuturista de si mesmo!
Basquiat escolheu não morrer mesmo tendo a certeza da morte. Eternizou-se como figura, imagem, fantasmagoria benjaminiana no século XXI. Passou a perna no teórico alemão: a imagem fotográfica não lhe “roubou a aura”, como na teoria de Benjamin; pra Basquiat, a aura seguiu adiante, virtuosa e pulsante.
Se vivo, faria 60 anos. Capoeira Machado, bamba do Império Serrano, integrante da Velha Guarda Show, afirmou em depoimento: “Basquiat era um malandro, driblou muitas dificuldades pra afirmar sua arte e ocupar espaços! Se fosse vivo, aos 60 anos, poderia fazer parte da nossa Velha Guarda”.
Já foi-se o tempo em que a arte negra podia ter CEP, endereço, lugar. “Afro-atlânticos” na concepção do historiador inglês Paul Gilroy, “afro-diaspóricos” na concepção do martiniquense Frantz Fanon, “afro-modernistas” na concepção do nigeriano Chika Okeke-Agulu ou “donos do corpo” na concepção do brasileiro Muniz Sodré – estão desterritorializados e ocupam todos os lugares. Os negros espalhados pelos continentes estão na mesma luta, na mesma afirmação, em busca das mesmas estratégias de desenquadramento da estruturação racista e colonizadora.
Basquiat está vivo, dá samba, dá enredo, dá linha a tudo isso! Mas desenquadra tudo, até mesmo a própria folia. “Quem nunca sentiu o corpo arrepiar ao ver esse rio passar?”
Hélio Ricardo Rainho é doutorando e mestre em História, Política e Bens Culturais e crítico dos desfiles de escolas de samba.