Por Beta Redação*
Parecia quase impossível, mas aconteceu. Apesar das dificuldades e limitações, em 2019 as escolas de samba de Porto Alegre ocuparam a avenida novamente. Após dois anos de silêncio, o Complexo do Porto Seco, na Zona Norte da cidade, voltou a integrar o mapa imaginário e afetivo da cidade nesta sexta-feira, 16 de março, em meio a enredos e com direito a muito brilho na passarela. O recado aos componentes das escolas e ao público foi claro: resistiram.
A união e a persistência das sete escolas foram essenciais para que o desfile saísse – ainda que de modo mais modesto do que se está habituado a ver.
A falta de recursos também foi levada em conta na hora de definir as categorias que estão sendo avaliadas para decidir a campeã da festa: alegorias e adereços não integram o julgamento, já que as escolas alegaram dificuldades financeiras. Porém, todas conseguiram trazer para a passarela pelo menos um carro alegórico.
Horas antes de as apresentações começarem, componentes e organizadores foram surpreendidos pela falta de energia elétrica. O corte aconteceu enquanto as escolas ainda estavam se preparando para a noite; a companhia fornecedora do serviço alegou que havia risco de incêndio e ligações irregulares. Não demorou, no entanto, para que a situação se normalizasse.
Comunidade unida
Quem entrasse no barracão A2 podia notar que havia um olhar atencioso dos integrantes nos preparativos das alegorias, fantasias que logo mais levariam o brilho da Imperatriz Dona Leopoldina para o Porto Seco – a escola da Série Ouro, a principal do carnaval porto-alegrense, que encerraria a primeira noite de desfiles.
“Fizemos tudo com muito amor, não é apenas um dia, são 365 dias de muita preparação”, explicava Luciano Silva da Rosa, 38 anos, enquanto ajustava as luzes do primeiro carro alegórico que iria entrar para trazer todo o trabalho realizado pela escola. Ele é responsável pelos adereços e é um dos organizadores do barracão.
E quando o assunto é detalhes, a “Impera” – apelido da escola – busca estar impecável. Rosa Maria Blaich, 60 anos, que desfilou pela primeira vez na Imperatriz Dona Leopoldina, fazia os últimos ajustes da sua fantasia enquanto aguardava a hora de entrar na avenida. Ansiosa e cheia de expectativas, ela saiu na ala “Paz Manchada de Sangue”. Rosa vem de longe para desfilar pelas cores laranja, preto e branco.
“Moro na Suíça há 34 anos. Minha família sempre esteve no meio do carnaval”.
Com desafios, mas com uma comunidade cheia de energia para ajudar, o presidente da Imperatriz Dona Leopoldina, André Nunes dos Santos, diz que a dificuldade financeira esteve presente em todas as escolas. A reação, segundo ele, foi um trabalho forte nas comunidades, por meio de uma série de ações, atividades, projetos sociais. Um dos diretores de Carnaval, Cleber Soares complementa.
“Nós confeccionamos todas as fantasias da escola, assim fomentando a cadeia produtiva do Carnaval. Pessoas trabalharam com adereços, com costura, sapatilha. Tudo foi feito aqui no Rio Grande do Sul”.
Com 15 alas e aproximadamente 1 mil pessoas, a escola escolheu a cidade de Triunfo, no Rio Grande do Sul, para homenagear.
“Fizemos um enredo em homenagem a uma cidade histórica, com importância e relevância para o Estado. A cidade nos ajudou com shows, buscou parceiros”, explica o presidente. O prefeito de Triunfo, Valdair Kuhn, considera esta uma valorização da cidade.
As três alegorias que contaram a história de Triunfo e encerraram a noite na passarela do samba construíram uma linha do tempo. Ao sair da pista de desfiles, cada integrante da escola teve a certeza de ter apresentado um significado claro em sua fantasia. Eloísa Mota Rodrigues, 66 anos, que se considera uma das novatas da ala das baianas, explica que o relógio que trouxeram na roupa representa a ideia do ciclo da vida, a questão da passagem do tempo.
Diante da resistência, a Imperatriz Dona Leopoldina mesclou a experiência com a juventude.
“Temos um barracão muito firme, com pessoas de grande experiências. Fizemos essa mescla, todo mundo se ajudando, e assim a gente conseguiu fazer alegorias bem bonitas, bem dentro do enredo e valorizando o carnaval de Porto Alegre”, argumenta Soares.
Política no samba
Logo antes do raiar do dia, a penúltima agremiação entrava na passarela: “Alô Vila!”, anunciou Mestre Boneco. A locomotiva tricolor da União da Vila do IAPI adentrou clamando por democracia. O desfile foi criado para homenagear o primeiro – e único – governador negro do Rio Grande do Sul, Alceu de Deus Collares.
Com impecáveis fantasias idealizadas pelo carnavalesco Sérgio Guerra, distribuídas em 18 alas, a escola mostrou uma trajetória detalhada da vida de Collares. Desde seu ano de nascimento, passando pela época de vendedor de laranjas e a graduação na faculdade de Direito, a passarela da tricolor da Zona Norte foi uniforme e cheia das cores da bandeira do Brasil. Verde, amarelo e azul eram, aliás, as cores das roupas do primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira, Fábio Júnior Nicoletti e Natally Santina Lemos Silveira. Para Guerra, a peça-chave para a confecção das fantasias foi o tempo: a Vila iniciou seus trabalhos em outubro do ano passado.
“Confeccionamos com os mínimos detalhes, com vários tipos de materiais”, conta o carnavalesco, que trabalha há 12 anos na escola.
Em contraste com a extravagância das fantasias e alegorias do desfile, Collares vestia apenas uma roupa inteiramente branca. Emocionado, o ícone máximo do samba-enredo da Vila lembrou que a IAPI é obra do trabalho do presidente Getúlio Vargas.
“As casas são todas bem colocadas, ainda bem conservadas, bem aprimoradas da época do Getúlio”. Quando questionado sobre o sentimento de desfilar com a tricolor, Collares se diverte: “Fiquei extremamente alegre. Sou um negão de Carnaval”.
Para o diretor de Carnaval da União, Jorge Sodré, o ex-governador é uma personalidade de destaque que merece ter sua memória recontada na passarela do Carnaval de Porto Alegre. “A nós gaúchos e a nós porto-alegrenses, nos alegra muito”, pontua.
Entusiasmo e africanidade
A linha amarela da avenida simbolizava um início para a escola que abriu o momento mais esperado do amanhecer de sábado: os desfiles da Série Ouro. Quando a sirene soou no Porto Seco, era sinal de que a águia do Bambas da Orgia podia alçar voo depois de longos dois anos desde o último Carnaval que desfilara, em 2017.
Além de luta, a escola pretendia apresentar alegria, diversão, força, garra e determinação, o que sempre foi a virtude do Bambas segundo o presidente Nilton Euclides Pereira.
“Se algo é bom, o povo não vai sentir saudade? E é isso que será apresentado no desfile”, diz.
Na noite anterior, a quadra da escola já transbordava otimismo e felicidade pela volta do Carnaval à capital gaúcha. Centenas de pessoas compareceram no último ensaio da bateria Trovão Azul. Segundo a diretora Patricia Lopes, foi montada uma força-tarefa para a participação da escola e a realização do Carnaval 2019, com diversas festas e ensaios.
“Foi necessária muita arrecadação com copa e ingressos com os eventos em nossa quadra”, afirma.
A diretora da águia ainda ressalta que o mais importante para o Bambas da Orgia não é o prêmio, mas sim o resgate do sentido cultural que a festa no Complexo Cultural do Porto Seco voltará a despertar nos gaúchos. “O tema é esse, o Carnaval da resistência. Se não acontecesse este ano, nunca mais iria”, enfatiza.
A ansiedade do público antes do início do desfile foi perceptível na pista. “Oh, moço! você não é dono do Carnaval? Vai ver o que aconteceu”, esbravejou um espectador a um membro da comissão organizadora do evento. Mal sabia ele que o atraso se devia à falta de uma empilhadeira para elevar um destaque ao topo do carro alegórico. Foram longos 15 minutos de espera.
A aposentada Maria Regina da Silva, 60 anos, dançava, pulava e cantava mesmo ainda antes da bateria começar a tocar. “Eu quero ver o Bambas ganhar, essa paixão é de toda a vida”, exclama. Ela conta que durante 13 anos desfilou por outra escola da Série Ouro, porém, a paixão pela águia sempre se manteve. “Era escondido, mas eu sempre torcia para minha escola do coração”, revela.
O homenageado pelo enredo foi Nelson Mandela, ex-presidente sul-africano. Era possível sentir a felicidade da ala das baianas até a bateria. O casal de passistas conseguiu agitar o povo, que cantava “liberdade a Mandela” com toda a força, principalmente no momento em que o som dos instrumentos parou, o que deixou ecoar no Porto Seco o canto dos milhares de apaixonados.
Histórias de vida
A Realeza, mesmo em meio às dificuldades, nunca enrolou a bandeira, e na noite desta sexta-feira não foi diferente: encerrou o desfile da Série Prata – o grupo de acesso do Carnaval de Porto Alegre. Mesmo com a falta de luz que dificultou o trabalho nos barracões, a comunidade encarou o desafio de finalmente apresentar o enredo que havia sido definido para o Carnaval de 2017, quando a escola não saiu.
Segundo a fundadora Lúcia Corrêa, para a realização do Carnaval 2019 a escola realizou bingos, rifas e outras atividades para arrecadação de verba. “O Carnaval só acontece pela luta da comunidade. Não pudemos realizar em 2017 e 2018, e agora enfrentamos essa situação aqui. Esta festa é a maneira de contarmos a nossa história aos nossos filhos e netos, e eles vinham nos impedindo disso”, afirma Lúcia, que desfilou na ala das baianas em um vestido vermelho, preto e dourado.
Com cerca de 400 componentes, a escola desfilou com dois carros alegóricos e mais de 10 alas, que contavam a história da líder quilombola Dandara dos Palmares e falavam sobre a luta por liberdade, igualdade e feminismo. No samba-enredo, uma provocação: por causa do machismo, Dandara não é reconhecida como seu marido, Zumbi dos Palmares.
A escola rosa, lilás e branco é constituída basicamente pelas famílias que moram no entorno da encruzilhada do samba no bairro Partenon. “O Carnaval é diversão, mas também é cultura e um projeto social, pois nós vivemos em uma zona de conflito, onde é muito difícil criar nossos filhos. E o Carnaval e a escola nos ajudam a salvar os nossos jovens”, conta, emocionada, Vera Correa Santos.
Robson Barbosa, 26 anos, é um desses jovens que cresceu dentro da comunidade. Morador do bairro Rubem Berta, em Porto Alegre, o estagiário de administração da Câmara Municipal de Porto Alegre, começou a frequentar a escola logo nos primeiros anos de vida. “O sentimento que fica hoje para toda comunidade é de dever cumprido, de colocar um tema que deveria ter desfila há dois anos. Obviamente temos dificuldades, mas nesse momento o que fica é a realização”, ressalta o jovem, que este ano estreou como mestre da bateria.
Todo mundo dança
A escola de samba Fidalgos e Aristocratas, segunda da Série Prata a desfilar, mostrou no Porto Seco que “quem não dança, dança!”. O desfile contagiou o público que se acomodava em cadeiras trazidas de casa – afinal, pela primeira vez em anos, o sambódromo não oferecia arquibancadas.
O enredo, engavetado desde o Carnaval de 2017, homenageou a história e os tipos de danças, passando por ritmos como o frevo, o xaxado, o maracatu, entre outros. Idealizado pelo carnavalesco Reynaldo Óliver e pelo presidente da agremiação, André Duarte, a ideia foi trazer um “enredo que não se tornaria caro”, conforme declara Duarte.
Mesmo enfrentando uma série de dificuldades, entre elas financeiras e o não uso da sua quadra, localizada no bairro Santana, na Capital, devido à interdição pelo Ministério Público, a campeã do Carnaval de 1973 realizou uma apresentação no mínimo marcante.
A primeira porta-estandarte – figura esta típica do carnaval porto-alegrense – contou com Terpsícore, a deusa da mitologia grega da dança, representada por Letícia Carvalho. Já a ala das baianas, além de abrir os caminhos com a alegoria “Mãe África”, trouxe as “mães de santo”, transmissoras da cultura da dança para os deuses que vieram do continente africano e que resistem a toda dificuldade e discriminação ainda nos dias atuais – qualquer semelhança com a atual realidade não é mera coincidência.
Depois delas, seguiram-se alas que mostraram capoeira, festas juninas, tradições indígenas, minuetos, dança flamenca e até mesmo rock. Um dos grandes momentos do desfile da Vermelho, Verde e Branco, aliás, foi quando um “Michael Jackson” surgiu em meio aos zumbis do clipe Thriller, com a ala de mesmo nome. A maquiagem e caracterização dos componentes estavam de primeira qualidade e chamaram a atenção do público, que registrava os passos da representação a todo instante.
Após o término do desfile, o dirigente André Duarte mostrou-se satisfeito e orgulhoso com o desempenho da Fidalgos e Aristocratas, chamando os componentes de “guerreiros que fizeram de tudo e mais um pouco para fazer um Carnaval digno”.
Homenagem verde e rosa
O sangue da Praiana ferveu no decorrer da avenida do Complexo do Porto Seco, na capital gaúcha. A quase sexagenária Academia de Samba Praiana desfilou na noite desta sexta-feira, 16 de março, homenageando a grande vencedora do Carnaval carioca de 2019, a Estação Primeira de Mangueira – cujas cores são as mesmas da agremiação porto-alegrense.
A letra do samba evocava as santidades protetoras da escola e cantava “lá onde as rosas não falam, meu coração foi morar, pediu licença do meu peito, pegou de jeito, subiu a ladeira e foi mangueirar”. Tomando seu lugar de direito na passarela, Carolina Ferreira, 17 anos, assumiu a frente da harmonia neste ano. Já foi rainha de bateria, mas a sua história na escola começou mesmo aos 5 anos, como rainha mirim. Esta foi a 12ª vez que a estudante vestiu o verde-rosa depois de passar 3 anos afastada da estrondosa batida do Carnaval. Agora, porém, a emoção tomou seu coração.
Um sentimento forte bateu ao pisar pela primeira vez sozinha na avenida, já que as escolas da Série Prata haviam sido impedidas de se apresentar em 2017, o que as fez acumular um jejum de três anos. “Eu achei que nunca mais voltaria a desfilar. Essa é minha homenagem à minha avó, que faleceu em 2016.” O fogo pelo samba é de família, diria a tia-avó de Carolina, Lídia Maria Fogo Garcia Varela. Aos 75 anos e superando as dores físicas que seu corpo impõe, Lídia, que foi a primeira rainha de bateria da história da Praiana, regozijou-se ao representar novamente a sua escola: “Eu estava com uma dor no joelho hoje de manhã, mas no momento que eu senti o samba, passou”.
A força da letra era evidente naqueles que cantavam aos gritos: “Praiana é fogo e sobe o morro, canta Mangueira para voltar ao seu lugar”. Foram necessárias aproximadamente 800 pessoas para apresentar com muito samba no pé os 90 anos de poesia em verde e rosa da Estação Primeira.
Esforço puro
A falta de recursos para disputar o quadro competitivo não foi suficiente para desestimular a Academia Samba Puro: “Hoje o povo vai cantar”, dizia a letra da agremiação que abriu a noite como convidada, fora da disputa.
Com pessoas de todas as idades desfilando, trouxe o samba-enredo “Abram as Cortinas da Folia, o Teatro Hoje é Tema na Passarela da Alegria“, que deve ser apresentado oficialmente no desfile de 2020. O grupo, campeão da categoria Intermediário-A em 2013, espera contar com os recursos necessários para o evento do ano que vem.
Na pista, mesmo que com apenas uma alegoria e com fantasias muito simples, a Academia fez protestos contra o prefeito da Capital, Nelson Marchezan Júnior (PSDB), e demonstrou oposição à privatização do Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE). Os cartazes do grupo ostentavam a frase “Água é vida, saneamento é saúde”, que se somava aos adesivos com #ForaMarchezan.
Conforme o vice-presidente da escola, Dilmair Monte, o desfile deste ano foi um ato de resistência pela valorização do Carnaval, com toda a humildade do povo da Conceição. “Lutamos contra o racismo institucional que se criou contra a figura do sambista”, protesta.
Como convidada, a equipe do morro Maria da Conceição esteve dividida em quatro grandes “setores”, ao invés das tradicionais alas. O último grupo, formado por mulheres, trouxe uma grande bandeira com o rosto da ex-deputada Marielle Franco (PSOL) estampado.
Noite tranquila
Segundo o Capitão Leiria, da Brigada Militar, a primeira noite de Carnaval contou com a participação de cerca de 20 mil pessoas no Complexo Cultural do Porto Seco.
Apesar dos imprevistos na infraestrutura, o evento correu tranquilamente. O pronto-atendimento em saúde, com oito funcionários, prestou poucos atendimentos de baixa gravidade durante a primeira noite do evento.
O desfile recomeça neste sábado, a partir das 21h. A apuração dos resultados está marcada para as 14h de domingo.
* A Beta Redação é o laboratório experimental dos alunos de Jornalismo da Unisinos, em participação especial para o site CARNAVALESCO. Participaram desta cobertura: Diego Alan de Mello, Dyessica dos Santos Abadi, Graziele Iaronka da Silva, Gustavo Bauer Willrich, Jéssica Carina Mendes dos Santos, João Henrique Rosa, Juliane Kerschner, Júlio César Schenkel Hanauer, Lianna Kelly Kunst, Liane Oliveira, Marcelo Janssen Neri da Silva, Matheus Klassmann, Stefany de Jesus Rocha, Thiago Borba, Vitor dos Santos Brandão da Silva e Vitorya da Cruz Paulo. Orientação e edição: Everton Cardoso e Felipe Boff.