O 13 de Maio em Santo Amaro nunca começa na própria data. Dias antes, os preparativos do Bembé antecedem a alvorada: o Padê de Exu, a organização dos presentes que serão oferecidos ao mar, a saudação a João de Obá, aquele que, em 1889, fincou o mastro no mercado municipal para celebrar a liberdade. Quando os fogos de artifício enfim anunciam a alvorada, a rua já se transforma em barracão, o mercado sacralizado acolhe cantos, danças e tambores, e o Bembé, com seus 136 anos de existência, reafirma que a abolição também foi obra da resistência negra. Em 2026, essa celebração atravessa o país: do Largo do Mercado de Santo Amaro à Marquês de Sapucaí. No enredo da Beija-Flor de Nilópolis, o Xirê se transforma em desfile e a avenida em extensão da memória ancestral.
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Quando viu a Beija-Flor cantar em Nilópolis, a historiadora e pesquisadora do Bembé, Ana Rita Machado, não conteve a emoção: “foi um encontro ancestral”. Para ela, a escolha do enredo, assinado pelo carnavalesco João Vitor Araújo, não é apenas uma homenagem, mas a realização de uma promessa: o abraço de duas populações negras que compartilham memória, luta e fé. De Santo Amaro a Nilópolis, o 13 de Maio ganha outros sentidos. Não o oficial, da Princesa Isabel ou dos movimentos abolicionistas, mas o da liberdade fincada pelo povo negro.
Da explosão ao axé: as repressões que marcaram o Bembé
Filha de um topógrafo e de uma cabeleireira, Ana Rita Machado nasceu em Santo Amaro, mas cresceu em diferentes cidades da Bahia, acompanhando as transferências do trabalho do pai como funcionário público. Foi em 1997 que a historiadora teve seu primeiro encontro com o Bembé do Mercado. A festa, tão presente em sua cidade natal, revelou-se marcada por uma lacuna de registros e de compreensão, percepção que guiou sua investigação dali em diante.

O ponto de virada veio numa conversa com Nicinha do Samba, matriarca do samba de roda santo-amarense. Foi ela quem, ao rememorar o 13 de Maio do Bembé, ligou a festa a um dos episódios mais traumáticos da cidade: a explosão do mercado nos anos 1950. “Quando perguntei sobre essa relação, entendi o tamanho da história que estava diante de mim”, recordou Ana Rita.
A explosão ocorreu em 1958, na véspera de São João, quando duas barracas de fogos no Largo do Mercado explodiram e provocaram uma tragédia com mortos e feridos. O impacto se prolongou no cotidiano da cidade: a festa do Bembé foi proibida. Na memória popular, porém, não se tratava de um episódio isolado. Dois anos antes, um delegado havia proibido a celebração por associá-la ao acidente automobilístico sofrido por ele e sua família.
Brigas, enchentes, perseguições policiais e a explosão se acumularam como sinais de um tempo de repressão religiosa. No imaginário popular, a proibição da festa era a causa das catástrofes da cidade. Foi nesse clima que as comunidades de terreiro e grupos de capoeira e maculelê ergueram a voz: o Bembé era uma celebração imprescindível na cidade de Santo Amaro.
“O Bembé não era uma festa sincrética como outras festas populares. A população que fazia essa festa eram populações pretas, pessoas do candomblé, pescadores, marisqueiras, vendedores de cachaça e peixe”, explicou Ana Rita. Para ela, o candomblé é um princípio civilizatório das populações negras: “sempre estruturou as populações negras no pós-abolição”.
Mastro e a cidade-terreiro
João de Obá, em 1889, um ano após a abolição, foi quem fincou o primeiro mastro, acreditando que poderia viver uma experiência de liberdade. A partir dali, o mercado de Santo Amaro se tornava sagrado, transformado em barracão pela força do candomblé.
O mastro é o centro do Bembé. No topo está a comeeira, consagrada a Xangô, orixá de João de Obá e patrono da festa, que simboliza a força da justiça e da alegria. O gesto de fincar e erguer o mastro estabelece a ligação entre dois mundos: a comeeira, no alto, representa o Òrum (mundo espiritual), e o intótu, na base cravada no chão, representa o Àiyé (mundo material). Essa ponte torna o espaço público sagrado.
“É como se aquelas populações negras transformassem a cidade em um terreiro, em um espaço de identidade, pertencimento e poder. O território está ligado a isto: estabelecer um lugar político”, afirmou a pesquisadora.
O levantamento do mastro, no Largo do Mercado, só acontece depois da conclusão dos ritos restritos, que são realizados dias antes do 13 de maio no terreiro do babalorixá ou da yalorixá responsável pela condução ritual. Nesses ritos, são saudados os ancestrais (Eguns), e se oferece o Padê de Exu, Senhor dos Caminhos, para afastar problemas e garantir a segurança da comunidade santo-amarense durante a celebração.
Também se consagram oferendas a Iemanjá e Oxum, as donas da festa, orixás ligadas às águas doce e salgada, de onde a população pesqueira e marisqueira retira o seu sustento. “Essas pessoas que agradecem ao rio e ao mar são pessoas que dependem deles para sobreviver. A água salgada está ligada à nossa trajetória do processo de diáspora e é a energia que nos mantém vivos porque nos dá o que comer, que é a pesca. E o rio, além da pesca, é o que a gente bebe para sobreviver. Não estamos só falando de um princípio religioso, mas de um princípio espiritual”, afirmou Ana Rita. Na celebração do Bembé, há ainda rituais que envolvem a preparação e arrumação dos presentes que serão oferecidos ao mar.
Na alvorada, os fogos de artifício anunciam a chegada dos presentes ao Barracão do Mercado. Logo de manhã inicia-se o Xirê do Mercado do 13 de maio com a presença de babalorixás, ialorixás, ogãs, equedes, ebomins, iaôs e abiãs de 45 comunidades de terreiro da região. O Bembé só termina após todos os presentes serem oferecidos ao mar.
Para Ana Rita Machado, o Bembé estabelece um lugar político porque reorganiza Santo Amaro a partir das experiências da população negra do candomblé. “Essas populações transformaram silenciosamente a rua em espaço de suas próprias experiências e dizem: esse é um lugar de prestígio, importância e poder. Eles reorganizam a cidade nesses dias, eles plantam axés, eles dançam na cidade. Imagine uma cidade extremamente racista, que esconde a festa e faz todo um movimento para a festa deixar de existir”, declarou.
Ao redor do mastro, a cidade se reorganiza. O espaço público passa a ser território de prestígio, de axé, de resistência. É nesse chão demarcado pelo gesto de João de Obá que o Bembé reafirma, ano após ano, que a liberdade não foi concedida, mas conquistada.
O 13 de Maio em disputa
Se para a história oficial o 13 de Maio é data da princesa redentora, que com uma assinatura fez a abolição da escravatura no Brasil, no Bembé ele assume outro sentido: a experiência da própria comunidade negra afirmando sua liberdade. “Durante muito tempo, o 13 de maio foi visto como a história da Princesa Isabel e das elites abolicionistas, como se as populações escravizadas não tivessem suas próprias experiências. O Bembé não diz isso”, afirmou Ana Rita.
Essa outra memória foi sustentada por lideranças religiosas que transformaram a festa em ato de disputa do 13 de maio. Pai Tidu, que conduziu o Bembé entre as décadas de 1950 e 1990, enfrentou o período de proibição e perseguição, garantindo que a celebração não desaparecesse. Depois dele, Pai Pote ampliou a luta: além de zelar pela liturgia, passou a articular o reconhecimento do Bembé como patrimônio, no Brasil e no mundo.
Na visão da pesquisadora, o movimento negro muitas vezes recusou a data, vista como conservadora. Mas o Bembé reorganiza essa memória: não é a tutela branca, é a celebração de uma liberdade conquistada com luta. “Quando João de Obá pega a comunidade dele e finca uma bandeira branca, está fincando o candomblé da liberdade”, resume Ana Rita.
Patrimônio e salvaguarda
O esforço para garantir a continuidade do Bembé não se dá apenas no campo ritual, mas também no político. Pai Pote, herdeiro da festa, foi quem liderou a articulação para que o Bembé conquistasse reconhecimento institucional. Em 2012, a celebração foi registrada como Patrimônio Imaterial da Bahia, em processo que teve como referência a pesquisa de Ana Rita Machado. Em 2019, nova mobilização de comunidades e lideranças ampliou o reconhecimento: o Bembé se tornou Patrimônio Imaterial do Brasil pelo IPHAN. Desde 2020, Pai Pote pleiteia junto à UNESCO o título de Patrimônio Imaterial da Humanidade.
“Nunca imaginava que esse trabalho se tornaria um ponto de referência, um ponto de diálogo com o Poder Público para buscar políticas para o Bembé”, disse a pesquisadora.
Em 2024, essa trajetória se consolidou com a criação do Centro de Referência do Bembé, sediado em uma casa cedida pela prefeitura e vinculado à Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Coordenado por Ana Rita, o espaço tem como missão preservar a memória da festa e articular políticas públicas em torno dela.
Além de pesquisadora do bembé, Ana Rita Machado também é reconhecida como Iyá Egbé por 45 comunidades de terreiro ligadas ao Bembé, o que lhe confere o papel de conselheira: “Eu sou Iyá Egbé por conta de um cargo, mas preciso respeitar aqueles que vêm antes de mim e que conhecem a liturgia. O Bembé é uma coisa muito séria sob o ponto de vista litúrgico e da história das populações negras”.
Encontro com a Beija-Flor
A possibilidade de virar enredo de escola de samba sempre rondou a festa. Pai Pote chegou a receber propostas de cinco agremiações de fora do Rio, mas recusou. Intuía que caberia a uma agremiação carioca levar o Bembé para à avenida. O convite da Beija-Flor confirmou essa intuição.
Em Santo Amaro, a notícia foi recebida com festa pela comunidade: “Santo Amaro está numa felicidade só, que não é uma felicidade eufórica. As pessoas da cidade receberam isso da melhor maneira que você possa imaginar”, revelou Ana Rita. Quando a equipe da escola visitou a cidade, os moradores brincavam: “Olha a Beija-Flor aí, gente!”.
Em Nilópolis, durante o início da disputa de samba para o Carnaval 2026, Ana Rita viveu a emoção que chamou de encontro ancestral: “Quando eu vi aquelas pessoas cantando daquela maneira, foi um encontro ancestral. Sabe aquele encontro que estava marcado pela ancestralidade para que dois irmãos se abraçassem com amor e carinho e entendessem o que é essa trajetória histórica. Nilópolis me emocionou profundamente”.
Para ela, o desfile não pode deixar de trazer João de Obá, Iemanjá, Oxum e Xangô, guardiões da festa. E o que mais impressionou Ana Rita Machado foi o entendimento da equipe. “Pelos sambas que tenho ouvido e pela seriedade da equipe que veio pesquisar, acho que a mensagem maior seja de alegria e de amor. É contar a história de quem somos nós, as contribuições que damos a esse país e a importância que essas populações têm para transformá-lo em algo melhor”, declarou.