“Quem sou eu? Quem sou eu?” O refrão principal do samba de enredo de 1994 do Acadêmicos do Grande Rio, “Os santos que a África não viu”, composto por Helinho 107, Rocco Filho, Roxidiê e Mais Velho, começava com uma saudação ao “Povo de Rua”, conjunto de entidades das religiões afro-brasileiras que expressam cruzamentos e hibridações culturais. Este universo tão complexo voltará a ser abordado pela escola, no próximo Carnaval, quando a comunidade de Duque de Caxias cantará, na Marquês de Sapucaí, diferentes facetas daquele que é popularmente considerado o “mais humano dos orixás”: Exu.

Mostrar ao público um pouco do “espírito do enredo” foi a ideia dos carnavalescos, Gabriel Haddad e Leonardo Bora, quando propuseram à agremiação caxiense a feitura de um ensaio fotográfico que ocupasse diferentes espaços do barracão, na Cidade do Samba, e, através das lentes da agência FotoLegenda / Joana Coimbra, captasse a “essência” do que será mostrado no Sambódromo. Leonardo Bora explica a proposta: “Depois do cancelamento do Carnaval de 2021 e diante da potência de um enredo que fala de corpos expansivos, livres, festivos, que brincam nas ruas e se manifestam nas encruzilhadas, pensamos que seria importante explorar espaços abertos, sem o compromisso de mostrar as fantasias com poses perfeitas e luz artificial. Nos interessava mais entender o espírito do enredo nas dobras e nos movimentos das roupas, nas expressões das pessoas, nos detalhes, nas sombras. Os olhares dos fotógrafos, muito sensíveis, captaram essas sutilezas.”

As fantasias selecionadas para o ensaio expressam um pequeno pedaço do que a Grande Rio mostrará na Avenida. Haddad destaca um ponto importante: “As pessoas que foram fotografadas efetivamente participam do Carnaval da Grande Rio, como o ator e dançarino Rodrigo Bahiano, que representou Joãozinho da Gomeia na Comissão de Frente do último desfile. Algumas, inclusive, participaram do processo de feitura das fantasias, caso do aderecista Lucas Corassa, que vestiu a roupa da Pomba-Gira Cigana, desenhada para a ala LGBTQIA+ da escola. Também é o caso das aderecistas Thuane Araújo e Wellington Szaniesky e do pintor de arte Cety Soledad, que tem uma produção artística incrível, na música e nas artes visuais”.

Além dos citados, participaram do ensaio o designer Antônio Gonzaga, autor da identidade visual do enredo da Grande Rio, artista plástico e membro da equipe de criação dos carnavalescos, a cineasta Érica Supernova e o modelo Murillo Ferreira. A maquiagem é de Guilherme Camilo e as fantasias foram confeccionadas pelo ateliê de Bruno César. É preciso destacar, ainda, a participação de estagiários da Escola de Belas Artes da UFRJ, que trabalharam no barracão da tricolor de Caxias pelo segundo ano. Alguns deles, inclusive, foram alunos de Leonardo Bora, que foi professor da EBA-UFRJ e considera fundamental essa troca: “É preciso que se abram cada vez mais espaços para o diálogo entre o dito “mundo acadêmico” e o Carnaval – no caso, os barracões das escolas de samba, academias tão poderosas. São incontáveis os saberes e os modos de fazer que circulam por um barracão. A universidade de hoje é bastante diferente daquela de 60 anos atrás. Entendemos que o estágio é uma ótima oportunidade para estimular a diversidade e a pluralidade de ideais.”

O que também é uma continuidade com relação ao desfile vice-campeão do último Carnaval é o combate à intolerância religiosa que tem como alvo as manifestações sagradas de origens afro-brasileiras. O racismo religioso, que propaga preconceitos contra as religiões de matrizes africanas, contribuiu para a demonização da figura de Exu, algo que será abordado de maneira indireta, conforme explica Haddad, ao comentar a simbologia das roupas: “O enredo já parte do pressuposto de que Exu não é o “diabo do teatro colonial”, como diz a nossa sinopse. A denúncia está na subversão desse olhar e na afirmação da grandiosidade e complexidade dessa energia. As fantasias dizem que Exu é vibração, cor, movimento, força, potência, circularidade. A ótica é outra. Não se trata de um enredo histórico, mas de uma celebração daquilo que o Luiz Antonio Simas chama de “visão exusíaca de mundo”. Os fundamentos do candomblé, as pluralidades da umbanda, os brincantes e foliões que ocupam e disputam as ruas, as trocas nas feiras, as relações de Exu com o carnaval e as artes em geral, as vozes dos excluídos de um projeto de “civilização” baseado no lucro, na competição, na exploração do outro. Numa “normalidade” que considera “louco” quem não se enquadra em um padrão e que rejeita o que considera “lixo”. Afinal, que “lixo” é esse?”

O historiador e antropólogo Vinícius Natal, um dos autores da pesquisa do enredo, enfatiza os aspectos levantados pelo carnavalesco: “Essas vozes nos ensinam outras filosofias e outras formas de pensar e viver o mundo. Quando Elza Soares canta “Exu nas escolas”, ela está defendendo a importância de se levar esse complexo de saberes para espaços que historicamente excluíram as cosmogonias amefricanas, como dizia Lélia Gonzalez, de seus cadernos. Nós entramos nesse debate e mostramos que o racismo religioso pode se manifestar nas menores coisas, como quando alguém sentencia, em tom de crítica negativa e sem uma leitura cuidadosa, que o nosso enredo é “muito pesado”.”

A Grande Rio foi sorteada para ser a quinta escola a desfilar na segunda-feira de Carnaval, com o enredo “Fala, Majeté! Sete chaves de Exu.” Sobre os trabalhos e o cenário atual, os carnavalescos concluem: “Enquanto sambistas e foliões, desejamos que a ciência triunfe sobre o negacionismo e que possamos desfilar com alegria e segurança, depois de tanto sofrimento. Acompanhamos os debates científicos e os seus desdobramentos e trabalhamos com base nessas orientações. Os ataques ao Carnaval muito nos entristecem. São estranhos esses tempos em que é preciso dizer o óbvio, mas seguimos fazendo arte.”

Ficha técnica:

Fotografias: Agência FotoLegenda e Joana Coimbra

Modelos: Antônio Gonzaga, Cety Soledad, Érica Supernova, Lucas Corassa, Murillo Ferreira, Rodrigo Bahiano, Thuane Araújo e Wellington Szaniesky

Maquiagem: Guilherme Camilo e equipe

Confecção das fantasias: Bruno César e equipe (Bernard Souza, Carla Vanessa, Edemilson Fernandes, Lucas Corassa, Marcelo Oliveira, Nete Cândido, D. Nilza, Sheila Martorelli, Thuane Araújo, Wellington Szaniesky)

Estagiários da Escola de Belas Artes da UFRJ: Igor Nascimento, Joana D’Arc Prosperi, Jovanna Souza, Rafael Torres, Sophia Chueke, Theo Neves

Carnavalescos: Gabriel Haddad e Leonardo Bora

Equipe de criação: Antônio Gonzaga, Patryck Thomaz e Vinícius Natal

Direção de Carnaval: Thiago Monteiro

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