Deixa com a gente, pode deixar! Vamos segurar esse pagode e não vamos deixar cair!
No quintal da nossa quadra, juntamos mesas floridas e cadeiras coloridas. As cervejas já estão estalando, estupidamente geladas. Os petiscos, do sacanagem à batata calabresa, as delícias que você gosta, quase prontos. A feijoada, com aquele tempero certo, já está no fogo. E tudo isso aos cuidados das nossas queridas tias quituteiras!
Chega junto e se ajeite, porque hoje vamos fazer uma verdadeira farra para te celebrar, do jeito que você sempre quis. Para isso, já testamos o som, afinamos as cordas e separamos a caixa de fósforo, a garrafa de vidro, o garfo e o prato para serem feitos de tamborim. Ai da gente se não houvesse a magia do firma na palma da mão, dos desafios versados, do verbo afiado e do instrumento improvisado.
Veja, nêga! O dia não se zangou! Nesse cenário caseiro, a luz que incide sobre o espaço é a da Lua prateada, por quem tanto esperamos. Hoje, ela abrilhanta a roda que formamos para esse ritual.
Preta menina, vem pra cá, pois nessa noite você não é a doméstica ou a lavadeira do lar, nem a vendedora de linguiças. Hoje, você será por todas elas em uma só voz.
Solta esse sorriso que tanto nos faz feliz, pois é noite de canto, de dança e de saudação. Coloca teu vestido mais bonito, aquele brilhoso e reluzente. Ah, e não se esqueça dos brincos, do medalhão e do colar!
Suas amigas baianas imperianas, antes mesmo do samba começar, foram as primeiras a chegar. Todas muito garbosas, vestidas no rendão branco, enfeitadas com os balangandãs de ouro. Rodando, elas vêm suave, batendo as folhas pelos quatro cantos e trazendo o asé para o terreiro do nosso pagode. Elas benzem a nossa quadra, saudando sua Mãe Oxum, que, da cachoeira, te banha com sua água sagrada, que pode ser de beber, mas também de rezar. E assim elas cantam:
Okolofé, mamãe! kolofé-lorun!
Ayê yê eô! Ayê yê eô, Mamãe Oxum!
Depois, a seu pedido, elas acendem as velas do santuário da nossa quadra, aquele lá no alto, logo na entrada. Também colocam balas, cocadas e guaraná para Cosme, Damião e Doum. Bejirooó, oni Ibeijada! Salve os erês, a criançada, para os quais doces e brinquedos você sempre fez questão de dar! Em seguida, elas preparam o manto do teu Pai Xangô, no qual você se curva. Kabecilê Kaô!
Preta, tô ligado que seu santo sempre foi forte! E é por isso que você ainda manda colocar por todo canto do nosso pagode a espada de São Jorge, a mesma espada que você tem atrás da porta, ferradura da sorte, bem como o bom galho de arruda e a eterna proteção dos seus orixás. Bendita seja a sua força e a sua fé, mulher!
Depois das rezas, oferendas e axés, o pagode já pode começar!
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A nossa quadra está de portas abertas! Para animar a galera que vem chegando, é um tal de chora cavaco, toca a viola, brinca o pandeiro, tudo só para avisar que a festa vai começar e vai ficar legal.
A verdade é que, embora tenha quem prefira o partido alto, outros o samba de terreiro, todos amam o verdadeiro samba da Raça Brasileira, aquele que sai do fundo do peito e arruma na voz um jeito de se apresentar.
Aos poucos, a roda vai crescendo, ganhando corpo. E pode ficar tranquila, que você não será pega desprevenida! Dessa vez, não vai ter ninguém barrado na portaria! O seu time completo, os mais chegados, todos vão pagodear.
Assim, chega gente de tudo quanto é lugar: os vizinhos mais próximos lá do Morro da Galinha Dois, onde você se viu crescer e sonhou que um dia iria chegar lá — e, olha só, chegou! Os amigos do Botequim do Império e o pessoal do Cacique de Ramos também vieram balançar o coreto, para fazer dessa noite como aquelas em que, à sombra da tamarineira, você versava com Arlindo, Zeca, Guineto e outros bambas.
Até a companheira Clementina já está sentadinha no seu lugar, e o malandro Bezerra disse que quer te desafiar, porque, mulher que versa como você, está difícil aparecer na gira.
Também chegam partideiros de todos os cantos da cidade, improvisando no desafio, como o Guará, seu poeta do morro, que fez a cuíca chorar — mas de alegria, é claro.
E o povo surge com todo tipo de desejo: Quem quer encontrar um amor? E quem quer esquecer um dissabor? E se só quiser renovar as amizades?
Então, se apruma, moça, pois todos estão esperando o seu improviso com aquelas palavras que só você sabe tirar. Vem abrir os trabalhos e cantar, pois é aqui, neste samba versado, meio embolado, que a tristeza adormece e todos tomam um banho de felicidade.
Vem, chega miudinho! Vamos juntos relembrar seus cantos: desde a sua tardia gravação até o seu último grito de mulher periférica, representante das vozes oprimidas, dos batuques versados. Hoje, não vai ter pedra no seu caminho e muito menos espinho, pois essa noite é sua, sangue bom que só revelou a realidade social nua, crua, feridas abertas dos subúrbios às baixadas, entranhas expostas de um povo que tem fome e só quer ser feliz, nem que seja por uma noite. É… é você que, nos pagodes da cidade, em noites vadias de encanto, embrasava corpos, remendava corações partidos e lembrava a todos que negro é raiz.
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Ô, nega, você apareceu! Sua cor reluzente já até ganhou apelido: é Pérola, cuja voz rouca e potente provoca aquele arrepio. E à medida que você mostra quem é a dona do pedaço, a palma da mão ganha o compasso do teu famoso é é é… Nessa hora, os personagens que você tanto cantou surgem para te render homenagem.
Das espreitas do pagode, chega o bondão do famoso 33, para sublimar nossa gandaia em poesia, com a brejeira menina de laço de fita batucando na marmita, vendedores, cartomantes e repentistas.
Do outro lado da roda, lá nas bandas do bar, no canto do terreiro, se manifesta, após matar três garrafas bebendo no bico, a moça que adora armar um fuxico. Ela pagou foi é mico — e como vacilou. Ela cambaleou, quase caiu, mas se levantou. E como diz o ditado que se lê na plaqueta e muito se ouve à mesa, você, vendo a cena, logo mandou: Se você bebe para esquecer… por favor, pague antes de beber! O povo respondeu com a palma da mão: Bebeu caiu, levantou, pagou e saiu. Ainda puxou um coro pra ela: Ah menina, você bebeu demais! Menina, como você bebeu! E acredita que nela ainda deram um banho com água de poço — saiu como nova —, e ninguém mais a viu? Pois é, a verdade é que todo bêbado sabe o seu rumo!
No meio da roda, grita a cabrocha, que provoca o malandro, perguntando se é isso que ela merece. Ela afirma que um dia, ele, o otário, trata ela direito, e, no outro, ele amanhece pelo avesso. Mal sabe o malandro que, se ele bobear, é ele que pode chorar. Nós avisamos ou você avisa em uma das suas canções?
O canto varando noite adentro, o banjo sorrindo dedilhado e as palmas das mãos trazendo a harmonia para essa festança. E o tantan, o ganzá e o tamborim, nivelando a vida em alto astral, dão o tom: a ordem é cantar samba aqui, samba ali, samba lá, cantar o samba da partideira que esquenta o corpo com o seu improviso certeiro. É, mulher, você fez esse partido alto esquentar!
No meio da noite, pra rapaziada você falou que estava com um desejo maluco de comer chuchu com camarão. Mas logo gritaram, mandando a real: “Preta, desce do palco, o camarão tá caro pra chuchu!” E você fez que nem o seu encrenca: ficou na vontade e se contentou com aquilo de sempre, mais cana e limão.
Aí, você pegou a sua toalhinha de rosto, limpou o seu suor e soltou a famosa frase: “Hey meu povo, vão todos tomar no…!” Um lá laialá, laiá, laiá, acompanhou a sua frase, e as vozes ecoam alto o teu refrão.
E seus convidados não param de chegar, provando que você é bamba mesmo!
Aquele todo enfeitado não é o Boogie-Woogie? O danado fez questão de vestir sua roupa mais colorida.
Do nada, brotou, com seu carango joinha e muita grana, uma outra amiga, que sempre sonhou em morar na Vieira Souto, ou em Copacabana: a gostosa, a gata, a musa garota Zona Sul! Com o seu sonho juvenil, veio sambar e se divertir nessa coisa nossa.
Estava tudo certo, estava tudo bom, e você, que sempre ganhou na rima, arruma os cabelos pretos e só observa os partideiros da vez. E tem malandro na fila esperando, só para mandar o seu recado. Até que aparece um sujeito metido a compositor, que, além de pegar a viola sem permissão, ainda quebrou a garrafa com o ferrinho do agogô, arrumando a maior confusão. Foi o verdadeiro pomba-rolou! Bem que você avisou, todo o pagode tem um igual: é só abrir o boca de ferro!
Rainha do partido alto, e malandra que sempre foi, você já sabe que a casa tá ficando cada vez mais cheia, com toda cara que o pagode vai tumultuar. E entre uma rima e outra, o sarau é interrompido por uma grande confusão! A Dona Cebola ficou invocada e deu uma tapa no Seu Pimentão! Então você, gritando no microfone, pediu ao povo ordem: “Vou chamar o seu delegado que é o jiló de amargar! Acho bom isso acabar, acho bom isso acabar!”. Depois da bagunça, que mais parecia a Feirinha da Pavuna, a mesma que você letrou, o pagode voltou a tocar. E o que sobrou de mim e para mim? Só o bagaço da laranja!
De supetão, você pediu silêncio a todos. Sua voz grave, embargada, anuncia que esse é o nosso samba que resiste a todo preconceito. Com os olhos marejados, é o momento de lembrar de Catatau, que pediu clemência, mas não teve perdão do soldado, que, muito desorientado, não pôde evitar o mal. Tudo aconteceu lá no Morro do Vidigal, entre becos e vielas, e você denunciou cantando esse protesto. É, ninguém se ligou no fato de que os animais irracionais conseguem conviver, mas os humanos, não. Mas que situação, hein? E você já tinha avisado!
O refestelo está muito gostoso! Com aquele seu jeitinho, você abre a roda do pagode e faz questão de apresentar a sua grande amiga — e até diz que ela parece muito contigo — a Maria da Silva Tristeza, que só tinha alegria nos três dias de folia.
E a nêga Maria, ao som da batucada, logo que chegou, um sorriso dos lábios brotou: Maria cantava, Maria chorava, Maria sorria! E trocou, uma vez mais, a sua tristeza por uns momentos de alegria, exatamente como você fez durante toda a sua vida, sem deixar de criar os seus filhos e sem deixar o pagode cair.
***
Batendo cada vez mais forte na palma da mão, a roda gira em torno das mesas e começamos então a ver uma luz do repente, de uma estrela cadente que passou por aqui. E todos em uma só voz cantam bem alto e evocam: Deixa comigo, deixa comigo, deixa que eu seguro o pagode e não deixo cair! Sem vacilar, e sem me exibir, só vim mostrar o que aprendi.
É por tudo isso que nós, da Sociedade Recreativa Escola de Samba Lins Imperial, nesta noite de carnaval, fazemos essa festa e cantamos nosso samba de enredo para você, a diva que sempre seguiu a lei do pagode: versou, porque podia, e somou sem subtrair. Você, que não é diamante, nem esmeralda. Também não é turmalina, nem mesmo rubi. Você, que por onde passa, até hoje deixa saudades: seu nome é Pérola Negra e estará sempre por aqui…
Salve Jovelina Pérola Negra!
Texto e revisão: Edu Gonçalves, Igor Damásio, Mateus Pranto e Raphael Homem.
Músicas citadas no texto: “Luz do Repente”, “Feirinha da Pavuna”, “Bagaço da Laranja”, “Sorriso Aberto”, “Filosofia de Bar”, “O Dia se Zangou”, “Pomba Rolou”, “Elos da Raça”, “Boogie-Woogie da Favela”, “Sonho Juvenil – Garota Zona Sul”, “Catatau”, “Menina, Você Bebeu”, “É Isso Que Eu Mereço”, “Malandro Também Chora”, “Banho de Felicidade”, “Sorriso de Banjo”, “Camarão com Chuchu”, “33, Destino Dom Pedro II”, “Água de Poço”, “Poeta do Morro – Guará”, “Maria Tristeza”, “Água de Cachoeira”, “No Mesmo Manto”, “Santo Forte”, ”Liberdade Plena”, “Precipício”.
Referências
BRUNO, Leonardo. Canto de rainhas: O poder das mulheres que escreveram a história do samba. Editora Agir, 2021.
DAVIS, Angela. As mulheres negras na construção de uma nova utopia. Disponível em: <www.geledes.org.br/as-mulheres-negras-na-construcao-de-uma-nova-utopia-angela-davis/>. Acesso em: 24 abr. 2023.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo, Boitempo, 2016.
MOURA, R. M. No princípio era a roda. Um estudo sobre samba, partido-alto e outros pagodes. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
PARTIDEIROS. Direção: Carlos Tourinho e Clóvis Scarpino. Rio de Janeiro: TVC Produções Cinematográficas, 1978. 13 min., color., 35 mm.
PARTIDO alto. Direção: Leon Hirszman. Rio de Janeiro: Embrafilme, 1982. DVD Leon Hirszman 04 (22 min.), Videofilmes, color., 16mm.
WERNECK, Jurema. O samba segundo as Ialodês: Mulheres negras e cultura midiática. Tese de doutorado apresentada ao programa de pós-graduação em Comunicação da UFRJ. Rio de Janeiro, 2007.